No século 16, o jesuíta Luís Frois, que viveu no Japão entre 1565 e 1597, observou que a roupa do Ocidente apresenta pelo lado de fora o que se tem de melhor, enquanto no Japão o mais sofisticado para os sentidos vem por dentro, ou seja, a seda, finíssima, que fica em contato com a pele – Foto: Montagem de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre fotos de Bruno Aguirre e Ihor Saveliev via Unsplash

"Um quimono guarda, em si mesmo, uma forma de ver a vida"

No Oriente, a percepção do corpo é desenvolvida desde a mais tenra idade, a começar da roupa

19/06/2020 Por Janice Theodoro da Silva

Primeiro passo matinal: escolher entre uma roupa social ou permanecer de pijama. Depois de 20 dias de quarentena observo, ao acordar, a mesma preferência: um moletom. Penso: não vou ver ninguém, é mais confortável, mais fácil de lavar e não precisa passar.

Segundo passo: exercitar os neurônios. Escolhi como estratégia, para animar o meu dia a dia, relembrar os anos em que morei na China e dei aulas no Japão. O coronavírus 19 tem que ter alguma utilidade. Por exemplo, servir para rememorar o que eu aprendi na década de 90, as dificuldades e, especialmente, a solidão linguística. O cantonês é muuuuito difícil.

Quando cheguei no Japão, tinha um sonho antigo: conseguir um quimono usado por japonesas do tempo da minha avó. Queria um objeto com história, afinal sou historiadora, sonhava com um quimono repleto de memórias japonesas.

Contei o meu sonho para o professor japonês e amigo, responsável pelo convite para dar aulas em Tóquio. Ele conseguiu, falando com familiares, reencontrar em um baú antigo vários quimonos e separou dois deles usados pela sua falecida mãe.

Janice Theodoro da Silva é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – Foto: USP Imagens

Foi um presente inesquecível. Quando abri as caixas, bem embaladas como só os japoneses sabem fazer, encontrei esse pedaço de sonho. Abri lentamente os pacotes, fui conversando com ele, pedindo explicações sobre cada um dos detalhes. Notei que, para vestir e amarrar a linda faixa, precisaria de várias aulas. Eu sou bem desajeitada, pouco japonesa.

Quando cheguei no Japão, eu tinha um sonho antigo: conseguir um quimono usado por japonesas do tempo da minha avó, cheio de memórias japonesas.

Por exemplo: o tecido de fora carrega um lindo desenho, uma obra de arte, mas o fio não é muito macio. O tecido de dentro, o forro, é seda pura, muito delicado, adorável de vestir.

Luís Frois, padre jesuíta que viveu no Japão entre 1565 e 1597, com andanças em Macau e Goa (1548), observou, no século 16, que a roupa do Ocidente apresenta pelo lado de fora o que se tem de melhor. Já no Japão, observava ele, o que se tem de mais sofisticado para os sentidos vem por dentro, ou seja, a seda, finíssima, em contato com a nossa pele é forro, e dela pouco ou nada se vê.

Essa maneira de viver e ver as coisas nos ensina muito. No Ocidente valorizamos o espírito e a inteligência. A roupa carrega o que desejamos mostrar para o outro e nos preocupamos pouco com o bem-estar do corpo, matéria nem sempre bem percebida e tratada. No Oriente, a começar pela respiração, a percepção do corpo em todos os detalhes é desenvolvida desde a mais tenra idade, o conhecimento do mundo parte do corpo.

Esse olhar se projeta também para a ciência. Com tecnologia, descrição e observação podemos ver, sentir e descrever melhor a natureza e nela os homens, os vírus e as bactérias. A produção de saber, de conhecimento, pode seguir trilhas diversas, dependendo do foco da pesquisa, do lugar onde ela pretende se aprofundar.  Muitas culturas e línguas juntas caminham mais rápido em direção a conhecimentos complexos.

Terceiro passo: mais uma vez descobrimos, olhando para o quimono e para o moletom, que a humanidade pode ser uma e una.

Janice Theodoro da Silva é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.