Um ato – e a democracia brasileira entrou em sua noite mais longa

Decretado há exatos 50 anos, o AI-5 deu fim às liberdades individuais, cassou mandatos políticos, instituiu a censura e sedimentou de vez a ditadura no País

 12/12/2018 - Publicado há 5 anos
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Anúncio em cadeia nacional: à mesa o ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, e o locutor da Agência Nacional Alberto Curi  anunciam o AI-5 no salão principal do Palácio Laranjeiras – Foto: Reprodução / Agência Estado

 Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” A frase, já bem conhecida, foi dita pelo então ministro do Trabalho Jarbas Passarinho durante a 43ª reunião do Conselho de Segurança Nacional em dezembro de 1968 – e é bem representativa. Porque ao debaterem durante aquele encontro o texto final do quinto ato institucional que o governo militar iria baixar, todos os 24 homens presentes naquela reunião vetusta – sob a liderança do marechal-presidente Arthur da Costa e Silva – estavam mandando “às favas” não só os escrúpulos de consciência, mas a própria democracia brasileira, já bem dilapidada desde 31 de março de 1964. Quando o ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, e o locutor oficial Alberto Curi leram pela TV para um País perplexo e amedrontado o texto do AI-5 na noite daquele dia 13 de dezembro de 50 anos atrás, uma sexta-feira, a mais pesada e plúmbea noite baixava sobre o País. Uma noite que iria durar dez anos.


Discurso de Luís Antônio da Gama e Silva, ministro da Justiça, justificando o Ato Institucional nº 5 e leitura do Ato

Áudio via Wikimedia Commons


Um ato, 12 artigos, 15 parágrafos. Era essa a receita para que a ditadura finalmente arreganhasse os dentes e, lembrando o jornalista Elio Gaspari, deixasse de ser “envergonhada” e passasse a ser “escancarada”. Em linhas gerais, o AI-5 deu a Costa e Silva e ao regime uma série de poderes para reprimir opositores: fechar o Congresso Nacional e outros legislativos, cassar mandatos eletivos, suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, intervir em Estados e municípios, decretar confisco de bens por enriquecimento ilícito, estabelecer a censura prévia e suspender o direito de habeas corpus por crimes políticos – na verdade, qualquer cidadão corria o risco de ser enquadrado como criminoso político, bastava não rezar pela cartilha do governo. Aí, a prisão sem habeas corpus poderia durar até 60 dias, sendo que nos dez primeiros, o preso ficava incomunicável.

O Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, marcou o início do período mais duro da ditadura militar (1964-1985) – Documento: Arquivo Nacional via Wikimedia Commons / Domínio público (Clique na imagem para ampliar)

Naquela mesma reunião, Passarinho – que morreria em junho de 2016, aos 96 anos – ainda tentou tampar o sol com um bambolê, dourando a pílula e negando, para depois confirmar, o caminho ditatorial. “Sei que Vossa Excelência repugna, como a mim, e creio que a todos deste conselho, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples, mas parece que claramente é esta que está diante de nós”, começou, tergiversando, o coronel-ministro. “Eu seria menos cauteloso que o próprio ministro das Relações Exteriores, quando diz que não sabe se o que restou caracteriza a nossa ordem jurídica como não sendo ditatorial, eu admitiria que ela é ditatorial”, afirmou ele, referindo-se ao banqueiro e chanceler Magalhães Pinto que, do alto de sua mineirice, preferia não enxergar o que estava diante dos olhos de todos.

Costa e Silva – Foto: Governo do Brasil / Galeria de Presidentes via Wikimedia Commons / Domínio público

Falou-se no começo deste texto que os 24 presentes na reunião do CSN mandaram à favas a democracia. Vale uma correção: um outro mineiro, o jurista e vice-presidente Pedro Aleixo não concordou, em um primeiro momento, com a decretação do AI-5. Temia o que ele representaria. “O senhor está com medo de mim, dr. Pedro?”, perguntou Costa e Silva. “Do senhor, não. Tenho medo é do guarda da esquina”, respondeu, com toda a razão, Aleixo. Afinal, a partir daquele dia, toda esquina, real ou imaginária, passaria a ter um guarda carrancudo – metafórico ou não – a espreitar cada ato cidadão. Essa posição democrática de Pedro Aleixo lhe custou caro. Quando, no ano seguinte, Costa e Silva se afastou do governo devido a um AVC – que viria logo a matá-lo –, o vice-presidente foi impedido pelos ministros militares de assumir o governo. Foram eles, os ministros militares – Aurélio de Lyra Tavares, do Exército, que cometia versos sob o pseudônimo de “Adelita”; o almirante Augusto Rademaker, que viria a ser o vice-presidente de Emílio Médici; e o ministro da Aeronáutica, Márcio de Sousa Melo – que assumiram o poder, na figura torta de uma “junta militar”. Duas décadas mais tarde, durante a promulgação da Constituição de 1988, o deputado Ulysses Guimarães desassombradamente lhes fez uma última referência, chamando-os de “os três patetas”.

Boicote e fechamento do Congresso

Como em um acidente de avião, quando a catástrofe não acontece por apenas um motivo, o AI-5 também não foi motivado por um único fato. Costuma-se dizer, de forma até rasa, que o que motivou o governo a decretar o malfadado ato foi um discurso quase pueril do jovem jornalista e deputado federal Márcio Moreira Alves. Às vésperas do Dia da Independência, Marcito – como era chamado – conclamou, do alto da tribuna do Congresso, que a sociedade não comemorasse a data. “Creio ter chegado, após os acontecimentos de Brasília, o grande momento da união pela democracia. Este é também o momento do boicote”, começou ele. Para ir, aos poucos, aumentando o tom.

“As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile. Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas.”

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Dramatização do discurso de Márcio Moreira Alves – Vídeo: publicado por História à la carte via Youtube

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Esse foi um dos estopins. O governo pediu licença ao Congresso para processar Marcito. O Congresso negou. E, paralelo a isso, havia as revoltas estudantis, as passeatas – a dos Cem Mil havia acontecido em junho –, greves pipocando pelo País e o crescimento da resistência ao regime com a luta armada e o surgimento de grupos como a Aliança Libertadora Nacional, a ALN de Carlos Marighela, e a Vanguarda Popular Revolucionária, a VAR-Palmares do ex-capitão Carlos Lamarca. Foram todos esses elementos que alimentaram a fera do AI-5, com o discurso carbonário de Márcio Moreira Alves servindo como muito bem-vindo pretexto. Afinal, o Congresso foi fechado, e só reabriria suas portas para, em outubro de 1969, deputados constrangidos ungirem o nome de Emílio Garrastazu Médici como novo general-presidente.

“Tempo negro. Temperatura sufocante”

Nos dias que antecederam imediatamente a promulgação do AI-5 e nos dias seguintes, muitos órgãos de imprensa ainda tentavam, de uma forma ou outra, digerir aquela nova realidade. No próprio dia 13 de dezembro, o jornal O Estado de S. Paulo não mediu as palavras e traduziu, em seu editorial, o sentimento de todos, antecipando o que viria: “Instituição em frangalhos” era o título que Júlio de Mesquita Filho, o “Doutor Julinho”, havia escrito. Os militares não gostaram nem um pouco daquilo.

Já no dia 14, o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, achou uma outra saída. Em sua primeira página, digamos, bem-comportada, o JB manchetava: “Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado”. Verdade. Mas, mais verdade ainda estava na previsão do tempo, no canto alto à esquerda da primeira página. Ali estava um verdadeiro editorial disfarçado de teor meteorológico: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”.

JB traz na manchete “bem-comportada” a decretação do AI-5: “Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado” e a íntegra do Ato Institucional nº 5 – Foto: Detalhe / Fac-símile / JB (Clique na imagem para ver o fac-símile completo)

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E estava mesmo. Os “fortes ventos” não tardaram a colher suas vítimas. A primeira lista de cassados saiu em 30 de dezembro de 1968, com 11 deputados nela – obviamente, Márcio Moreira Alves fazia parte. A segunda lista, de 19 de janeiro de 1969, foi mais abrangente: dois senadores, 35 deputados federais, três ministros do STF (entre eles Evandro Lins e Silva) e até um ministro do Supremo Tribunal Militar, Peri Constant Bevilacqua. Segundo Costa e Silva, ele dava “habeas corpus demais”. Na USP, não foi diferente. Em abril de 1969, 24 professores foram aposentados compulsoriamente. “O Ato Institucional nº 5 confirmava um novo ordenamento jurídico capaz de garantir uma aparência legal a procedimentos ilegítimos. Essa ‘nova legalidade’ garantiu ao aparato institucional brasileiro novas formas de encobrir perseguições”, escreveu a professora Janice Theodoro em artigo publicado aqui no Jornal da USP .

Detalhe da primeira página: ao lado do logotipo da capa do jornal, metáforas alusivas à previsão do tempo: “Tempo negro, temperatura sufocante, o ar está irrespirável, o país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras”, e ao Dia dos Cegos – Foto: Detalhe / Fac-símile / JB.

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O Ato Institucional nº 5 e seu significado histórico

O AI-5 só seria revogado no final de 1978, por emenda constitucional, nos estertores do governo de Ernesto Geisel. Em seus dois primeiros anos, o Ato atingiu cerca de 1.390 pessoas. E só aí pode-se dizer que ele teve um teor “democrático”: de três ministros do STF, aposentados à força, a dois auxiliares de portaria do Ministério do Trabalho; de cinco senadores a um encanador do Exército. Ninguém escapou da ceifadeira institucionalizada do regime.

Que a partir de janeiro de 1979 deixou de existir, no começo do governo de João Baptista Figueiredo, o último dos generais encastelados no Palácio do Planalto, aquele que disse que “prenderia e arrebentaria” quem fosse contra a abertura política. Justamente Figueiredo que, em janeiro de 1969, ainda coronel, escreveu em uma carta para Heitor Ferreira, secretário particular de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, um resumo atilado do que estava acontecendo. “Os erros da Revolução foram se acumulando e agora só restou ao governo ‘partir para a ignorância’”.  Ele estava coberto de razão.

Pesquisa iconográfica: Moisés Dorado / jornal.usp.br

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