Um atento olhar sobre a mídia, da cultura pop às fake news

Entre entretenimento e informação, livro de pesquisadores de grupo da ECA-USP reúne estudos sobre a Mídia na contemporaneidade

 14/01/2021 - Publicado há 3 anos
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Fotomontagem: Camila Paim/ Jornal da USP sobre imagens de divulgação do filme Mulher-Maravilha e série La Casa de Papel e capa do livro Narrativas Midiáticas
Mayra Gomes, professora e organizadora do projeto – Foto: Arquivo / ECA

Por que torcemos pelo sucesso do roubo da Casa da Moeda da Espanha, na série La casa de papel, e o que isso revela sobre nossos valores? O que o filme Mulher-Maravilha nos diz sobre o discurso feminista na mídia? E como o vilão de Coringa pôde mobilizar afetos nas redes sociais? As respostas para essas e outras tantas perguntas no campo da linguagem, narrativa e do discurso na mídia contemporânea são visadas nos estudos publicados no livro Narrativas Midiáticas: crítica das representações e mediações, organizado por Rosana de Lima Soares e Mayra Rodrigues Gomes, professoras da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e líderes do MidiAto, grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas. A obra comemora os 10 anos do grupo ao reunir e ampliar 16 pesquisas apresentadas durante o III Simpósio Linguagem e Práticas Midiáticas, em abril de 2019. 

Rosana de Lima Soares, professora e organizadora do livro – Foto: Arquivo / ECA

“A publicação tem especial importância por apresentar não apenas textos reunidos em torno de uma temática, mas também a própria trajetória das investigações do MidiAto ao longo desses anos”, diz Rosana. A professora explica ainda que apesar de tratar-se de artigos acadêmicos, o grupo se empenha em divulgar as Ciências Humanas para além do público da Universidade e usa da cultura de forma ampla para dialogar com todos aqueles que se interessam pelo atual debate sobre as mídias nas sociedades contemporâneas. O projeto rompe com as tradicionais divisões entre entretenimento e informação para, nas palavras de Rosana, pensá-las de modo integrado, seja em produções ficcionais, seja naqueles de cunho jornalístico.

No artigo Os chamados e as aventuras em nossos tempos, ou das personagens que privilegiamos, Mayra analisa as diferenças entre as duas versões, a de 1965 e de 2018, do filme Perdidos no Espaço, para estudar as etapas da Jornada do Herói, isto é, os estágios da estrutura narrativa comum às histórias com as quais nos identificamos. Já para entender sobre a figura do herói, ela explora as personagens da série La Casa de papel,  exibida pela primeira vez na Espanha em 2017,  na qual ladrões com um passado de transgressões planejam um roubo à Casa da Moeda espanhola. Apesar do ato criminoso, os personagens têm o apoio dos espectadores na medida em que estes se conectam à narrativa.

Série La Casa de Papel – Foto: Netflix/ Divulgação

Ela destaca a figura do anti-herói, presente há muito tempo nas histórias que nos motivam, assim como no clássico conto de Robin Hood, personagem que também rouba e, mesmo desprovido das qualidades morais de um herói, gera identificação por parte dos leitores. Mas, para que entender as histórias e os personagens que nos motivam? “Trata-se de apreender a natureza dos heróis por quem torcemos para que vençam ou que, pelo menos, saiam ilesos ao final de sua jornada, na suposição de que, assim, captaremos os modos de ser, os valores compartilhados a um tempo e lugar”, esclarece Mayra.

A partir disso, a autora busca entender a realidade do mundo, assim como seus discursos e valores, ao se basear na ideia de que as arquiteturas dos enredos podem servir como eixo de leitura para a sociedade, porque “não contamos histórias do nada e não nos investimos em personagens e em seus modos de ser sem que laços estreitos nos entrelaçam”. “Assim o retrato de alguém que motiva identificações, é também o retrato de sua cultura”, completa. 

Mayra ainda destaca a adequação das narrativas ao seu tempo, ao avaliar as mudanças na representação da composição e dinâmica do núcleo familiar central na narrativa da primeira versão de Perdidos no Espaço em comparação com o remake. Há grandes diferenças em termos de representações sociais, sobretudo das mulheres, que não estavam delineadas nos anos 1960, avalia.

Outro texto que também aborda a mulher na mídia é intitulado Os limites dos feminismos midiáticos: feminismos e questões de gênero em Mulher-Maravilha, da Natalia Engler Prudencio, jornalista formada pela ECA. O artigo apresenta o panorama de sua pesquisa de mestrado que visa, a partir do longa-metragem Mulher-Maravilha, de 2017, dirigido por Patty Jenkins, analisar a adoção dos discursos feministas na cultura midiática contemporânea. O feminismo antes visto como ridículo, passa a ser descolado e entre a popularização, estereotipificação e o esvaziamento, a Natalia se baseia nos estudos de Rosalind Gill e Angela McRobbie para avaliar as implicações desse movimento.

Cena do filme Mulher-Maravilha – Foto: Warner Bros/ Reprodução

Além do filme de maior bilheteria já dirigido por uma mulher até então, “a própria existência de Mulher-Maravilha pode ser encarada como uma espécie de marco em termos de representação e representatividade de gênero em Hollywood, a começar pelo fato de ser o primeiro longa metragem de super-heróis com uma protagonista feminina desde 2005, ainda que Hollywood venha apostando fortemente no gênero desde 2008, quando foi lançado Homem de Ferro. Foi também o primeiro filme de super heróis dirigido por uma mulher neste mesmo período e o maior orçamento já comandado por uma cineasta mulher até aquele momento (excluindo-se animações),”afirma. 

O texto examina a visibilidade da questão feminista na mídia, pelas aparentes conquistas do longa e simultâneas campanhas de gênero no mundo. As campanhas MeToo e Time’s Up após denúncias de assédio e abuso sexual contra grandes nomes da indústria do cinema, o discurso de Patricia Arquette no Oscar de 2015, a carta de Jennifer Lawrence sobre desigualdade salarial e o discurso de Viola Davis no Emmy sobre oportunidades para mulheres negras, são alguns marcos desse momento destacados no artigo. No Brasil, a chamada Primavera Feminista,  foi o cenário de campanhas como  Meu Primeiro Assédio, Agora É que São Elas e Meu Amigo Secreto, e protestos contra o projeto do político Eduardo Cunha. 

O livro se adapta ao espaço virtual em forma de e-book e conta com um link de acesso a para o programa de podcast da MidiAto, na apresentação de cada texto, pelo qual é possível ter o contato com as temáticas tratadas pelo formato audiovisual. Segundo Rosana, isso é parte do compromisso do grupo com a inovação, não apenas em termos de conteúdos, mas também de formas expressivas voltadas para mídias digitais online, principalmente em meio à desinformação nas redes sociais. 

No episódio número 11 do programa no podcast, Natalia conta a motivação  do mestrado. “Em 2015 eu comecei a perceber que as discussões sobre gênero, representatividade e o lugar das mulheres no cinema começaram a surgir com uma grande frequência. E, em 2017, com a proximidade do lançamento do filme da Mulher-Maravilha, o que eu observei no meu dia a dia de cobertura de cinema foram discussões pegarem fogo. O filme foi um catalisador muito forte não por acaso”, afirma.

Ainda no que envolve as mulheres e a mídia no cenário audiovisual, Representação da maternidade em “Como nossos pais”, de Juliana Malacarne de Pinho, também jornalista pela ECA, explora a figura materna na sociedade brasileira pela análise do filme Como Nossos Pais (2017), dirigido por Laís Bodanzky. Já Representações de assédio sexual no documentário Chega de FiuFiu, a pesquisadora Vivyane Garbelini Cardoso analisa o longa-metragem brasileiro Chega de FiuFiu, de Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão, em paralelo com a pluralidade de visões sobre a experiência das mulheres e os feminismos atuais. 

Helô D’Angelo, sobre o filme Coringa – Helô D’Angelo/ Rperodução

De volta ao cinema de Hollywood como estudo da mídia, a repercussão dos afetos gerados sobre o vilão do filme Coringa, de 2019, nas redes sociais são temas do artigo nomeado A mobilização de afetos por meio das construções discursivas do personagem Arthur Fleck e da sociedade de Gotham no filme Coringa, de Larissa Rosa. O ensaio identifica as construções discursivas do personagem Arthur Fleck e da sociedade da cidade fictícia de Gotham, além de analisar comentários de um quadrinho que mobilizou parte do público na defesa do personagem no Twitter da autora da publicação.

Outros ensaios ainda tratam das questões mais próprias do jornalismo como estudo da mídia. Em “Batalha do pequeno coração valente”: O jornalismo e as crianças com problemas cardíacos, de Renata Carvalho da Costa da ECA e Juliana Doretto, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, reportagens das emissoras  Globo e Record são usadas para discorrer sobre o melodrama, a heroicização e do forte apelo emocional ao representar crianças cardiopatas. Já em Convenções do estilo jornalístico em proto-fake news: entre padronizações, réplicas, emulações, paródias e fraudes, a disseminação de fake news na última década é analisada em textos que simulam a recente padronização da linguagem jornalística pelos professores Eliza Bachega Casadei, da Escola da  Escola Superior de Propaganda e Marketing, e Ivan Paganotti, da Universidade Metodista de São Paulo.

O livro Narrativas Midiáticas: crítica das representações e mediações,do grupo de pesquisa MidiAto da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, está disponível gratuitamente neste link.


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