Tratado de Versalhes marcou nova fase do capitalismo, diz professor

Firmado há 100 anos, acordo entre nações buscou impedir hegemonia econômica da Alemanha, segundo docente da USP

 26/06/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 28/06/2019 às 23:20
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O Palácio de Versalhes à época da assinatura do tratado: firmado em 1919, acordo entre nações impôs à Alemanha dívidas que o país só terminou de pagar em outubro de 2010  – Foto: Domínio público via Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0

O Tratado de Versalhes foi assinado no dia 28 de junho de 1919, em Paris, na França – há exatos 100 anos, portanto -, celebrando um acordo de paz entre os países envolvidos na Primeira Guerra Mundial. Ele entrou em vigor em 10 de janeiro de 1920, colocando um ponto final nas hostilidades iniciadas em 1914 entre as potências europeias, suas colônias e aliados ao redor do mundo. O tratado devolveu a paz ao continente e determinou que a Alemanha arcasse com todos os prejuízos causados pela guerra, principalmente as perdas financeiras. Os alemães o chamaram de “Ditado de Versalhes”, já que não houve nenhuma possibilidade de o país negociar as condições para a paz definitiva, gerando um sentimento de derrota e de humilhação em toda a população alemã, além de intensa crise econômica e social. Apenas em outubro de 2010 a Alemanha quitou a dívida imposta pelo Tratado de Versalhes.

Segundo o professor Everaldo de Oliveira Andrade, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o tratado foi assinado em uma situação peculiar, na derrota dos grandes impérios do centro – Austro-Húngaro, Alemão e Otomano. “Na verdade, o Tratado de Versalhes é parte de um conjunto de tratados. É o mais conhecido, mas houve outros tratados com outros países derrotados que impuseram uma série de dificuldades para que esses países se recuperassem rapidamente dos efeitos da Primeira Guerra Mundial”, afirma.

Para o professor, essa demora em entrar em vigor, somente seis meses depois da sua assinatura, deve-se ao período revolucionário que a Alemanha vivia. “A Revolução de 1919, pouco lembrada, é fruto direto da guerra. Foi um período de grande instabilidade, em que foram proclamados os sovietes na Alemanha, e também da morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, líderes revolucionários assassinados pelas forças da extrema direita”, relata.

Manifestação na Alemanha contra o Tratado de Versalhes, chamado pelos alemães de “Ditado de Versalhes” – Foto: Domínio público via Wikimedia Commons

Além disso, diz Andrade, há uma série de divergências entre os próprios vencedores. “Há uma insistência da França de que o tratado impusesse pesadas perdas e reparações de guerra à Alemanha, em uma tentativa de atrasar o seu desenvolvimento econômico, que já era bem superior nesse período em relação à própria França e a outros países europeus”, informa. Segundo ele, a França, mais do que resolver a questão da guerra e conseguir a paz, buscava o revanchismo, utilizando o tratado como uma forma de impor, a longo prazo, uma derrota mais profunda ao desenvolvimento e a uma futura hegemonia econômica da Alemanha na Europa.

Para o professor, “nenhum tratado de paz do vencedor contra o derrotado é justo, porque não existe guerra justa de fato”. Em sua opinião, o Tratado de Versalhes não é um tratado de paz, e sim uma expressão de uma nova fase do capitalismo. “Uma fase de guerra e revoluções, em que há um acirramento das disputas pelo mercado mundial. Inglaterra e França buscavam aniquilar seu rival econômico, que era a Alemanha”, explica, acrescentando que o tratado representa uma fase de ruptura com uma situação anterior, em que o capitalismo ainda não havia se consolidado. “Uma fase de conflitos cada vez maiores, que vão desembocar na Segunda Guerra Mundial, e depois em outras tensões permanentes no mundo na história contemporânea.”

Segundo Andrade, não foi o tratado que levou à depressão econômica. “Já existia uma situação de crise econômica que gerou a própria guerra. São tensões que não se resolvem na Primeira Guerra e vão se refletir no futuro”, afirma. “Mas é uma crise do capitalismo, uma crise profunda que se revela na depressão econômica e na ascensão da União Soviética, em uma revolução que ocorre no meio da Primeira Guerra Mundial, em fevereiro de 1917, na Rússia, que destrói não só o império russo mas a própria república, quando é proclamado o socialismo e depois a União Soviética”, diz, informando ainda que essa crise tem um novo round em 1929, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York. Para o professor, o tratado é reflexo dessa crise e da tentativa das potências vencedoras não só de impor a sua ordem política, através da Liga das Nações, mas de destruir a possibilidade de recuperação da Alemanha.

A Liga das Nações

O Tratado de Versalhes, sob os auspícios do presidente norte-americano Woodrow Wilson, do primeiro-ministro britânico David Lloyd George e do primeiro-ministro francês Georges Clemenceau, instituiu a Liga das Nações, órgão internacional que atuaria como regulador da situação política do mundo, a fim de evitar futuras guerras. Apesar de ser um dos principais negociadores do tratado, o Congresso dos Estados Unidos não ratificou o documento nem aderiu à Liga das Nações, firmando um acordo bilateral com os alemães pelo Tratado de Berlim, de 1921. A Liga fracassou porque não dispunha de um poder executivo forte, e sua dissolução oficial ocorreu em abril de 1946. Sua sucessora, a Organização das Nações Unidas (ONU), já havia iniciado suas atividades em outubro de 1945.

“A Liga das Nações foi construída sobre a base de uma situação muito instável. Apesar de França, Inglaterra e Estados Unidos vencerem a guerra, a Alemanha não foi ocupada militarmente, seu exército não foi derrotado, gerando uma situação irresolvida”, comenta Andrade. “Não havia uma base política nem um acordo com as grandes potências, o que acabou ocorrendo com a fundação da ONU, que teve a participação da União Soviética.” Como lembra o professor, a Liga das Nações não envolvia a União Soviética. “Pelo contrário, houve uma união entre países vencedores e vencidos para esmagar o Estado soviético que estava nascendo.”

No dia 28 de junho de 1919, Alemanha é obrigada a assinar o Tratado de Versalhes – Foto: Domínio público via Wikimedia Commons

O professor ainda conta que a União Soviética, após a Revolução de 1917, passou por uma guerra civil, de 1918 a 1922, e a Liga das Nações não tinha autoridade política e moral para impedir essa ação. Ele também fala sobre o papel dos Estados Unidos: “Embora o presidente Wilson defendesse uma série de pontos importantes, ele foi derrotado internamente por uma política isolacionista dos Estados Unidos nesse período, fragilizando a possibilidade de a Liga das Nações ter um resultado positivo”.

“Essa experiência tem um reflexo evidente na história das relações internacionais, porque mostrou que um tratado humilhante – contra a Alemanha, depois contra o Império Austro-Húngaro e contra o próprio Império Otomano – não favorecia a reorganização do Estado e acabava gerando uma instabilidade política maior.” Segundo o professor, de alguma maneira, o tratado acabou colaborando para uma década de 20 ainda instável. “Os efeitos do Tratado de Versalhes na crise de 1929 foram mais profundos à medida em que se colocavam obstáculos quase intransponíveis para que a Alemanha pudesse se recuperar plenamente da derrota e do caos econômico provocado pela Primeira Guerra Mundial.”

Nazismo e Segunda Guerra Mundial

O professor questiona a relação entre o nazismo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial como consequência do Tratado de Versalhes. Segundo ele, há várias questões em jogo. “O nazismo expressa uma tensão interna da sociedade alemã. É uma reação da pequena burguesia contra a possibilidade de uma revolução socialista na Alemanha. Representa uma reação exacerbada e radical da burguesia e do capital alemão contra o risco iminente de uma insurreição operária em um momento de crise econômica e social profunda na Alemanha, na década de 30, pós-crise de 29, que foi agravada, sim, se levarmos em consideração outros fatores, pelo Tratado de Versalhes.”

Porém, na opinião do professor, não há um fio de ligação direto entre o tratado e o nazismo, mesmo porque em outros países há fenômenos que ocorreram antes até da crise de 1929 como o fascismo italiano, em 1922, e logo a seguir, como a Falange Espanhola (1933-1934) e outros movimentos de extrema direita que se desenvolveram em outros países. “O nazismo tem esse componente de tentar ser uma resposta, e é uma situação de desespero de um setor da sociedade alemã que busca uma solução mágica, que acaba levando à tragédia da Segunda Guerra Mundial”, comenta, acrescentando que a Segunda Guerra Mundial é uma continuidade das tensões que não foram resolvidas na Primeira Guerra Mundial.

“Tensões essas que estão ligadas às disputas pelos mercados mundiais”, reitera. “Não à toa, os três países que compõem o Eixo – Alemanha, Itália e Japão – são países em que o capitalismo não havia atingido sua plenitude no final do século 19, situação que é acelerada pela intervenção do Estado, que concentra recursos para que o capitalismo se desenvolva”, completa. “Mas eles chegam atrasados no banquete de disputa do mercado mundial, e a Segunda Guerra é a tentativa desses países de disputar e arrancar da Inglaterra, da França e, principalmente, dos Estados Unidos a hegemonia sobre o controle do mercado mundial.” Para o professor, esse talvez seja o principal fio de ligação entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. “E o Tratado de Versalhes expressa essa impossibilidade da paz em um momento em que o capital das grandes corporações e dos grandes países imperialistas disputa o mercado mundial. É um tratado de paz que não sela a paz, mas sinaliza a continuidade da disputa da era de guerra e de revoluções que foi o século 20”, conclui.


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