Tecnologia é inerente ao humano e marcada pela ambivalência, diz catedrática

Professora Lucia Santaella encerra período na Cátedra Oscar Sala dedicado ao estudo da Inteligência Artificial centrada no humano

 25/04/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 26/04/2022 as 16:46
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Foto: Fotomontagem de Guilherme Castro com imagens de Pixabay e IEA/USP

 

Após um ano, Lucia Santaella está se despedindo de seu período frente à Cátedra Oscar Sala, iniciativa do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP em parceria com o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). Lucia, que é professora titular do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, foi a primeira pessoa a ocupar a cátedra, cuja proposta é orientar e patrocinar o intercâmbio multidisciplinar para o conhecimento da internet e de suas ferramentas. Nesta segunda-feira, dia 25, ela foi substituída no cargo pelo professor Virgílio Almeida (leia mais aqui).

Ao Jornal da USP, Lucia explica que o centro de suas preocupações durante sua passagem pela cátedra foi pensar um modelo novo de interdisciplinaridade, que se deslocasse dos formatos tradicionais da estrutura universitária. “No ponto de desenvolvimento da ciência, do conhecimento e da tecnologia em que estamos, embora continuem necessariamente existindo especializações, a emergência da Inteligência Artificial (IA) está provocando verdadeiras simbioses entre aquelas que tradicionalmente eram chamadas de two cultures, segundo S.P. Snow“, explica a professora. “A IA centrada no humano está nos alertando para o fato de que estão se dissolvendo as fronteiras entre as chamadas hard sciences, ciências aplicadas, ciências sociais e humanidades.”

A professora Lucia Santaella – Foto: IEA/USP

Para encontrar esses novos modelos de interdisciplinaridade, Lucia escolheu para os trabalhos da cátedra pensar a simbiose entre humanos e tecnologias, com o foco na Inteligência Artificial. “A IA está se disseminando por todas as tecnologias subsidiárias e todas as atividades humanas. Os tecnofóbicos podem insurgir-se contra isso quanto quiserem. O crescimento paradoxal da inteligência encontra-se na corrente sanguínea do Sapiens, desde que a espécie começou a falar”, comenta a catedrática. “Dada minha formação, na qual faltam as ciências hard, com exceção de um pouco de conhecimento na biologia, tomei como fio condutor um dos grandes temas do momento, a Inteligência Artificial centrada no humano. Mas era preciso ir além das propostas ainda muito presas aos avanços técnicos de Machine Learning e Deep Learning e, no que diz respeito ao humano, ir além de preocupações ainda restritas à questão social da transformação do trabalho. Os impasses são mais vastos.”

Lucia conta que sua tese começa pela expulsão de qualquer pensamento que considere as tecnologias como corpos estranhos ao humano. “Ao contrário, porque fala, o ser humano é tecnológico de saída”, afirma a professora. “Já disse Freud que o ser humano é um ser desnaturado, no sentido de estar na natureza e fora dela ao mesmo tempo, uma ideia que foi também desenvolvida por Morin, no Enigma do Homem, sob o nome de brecha antropológica. Conforme as tecnologias avançam e se sofisticam, elas vão ao mesmo tempo expandindo as contradições e paradoxos que o Sapiens sempre carregou consigo. No estágio em que hoje estamos, a brecha antropológica se dilatou, os efeitos colaterais das tecnologias pululam e eles se acumulam a uma velocidade tal que fica difícil encontrar caminhos de superação no mesmo ritmo.”

Segundo a catedrática, um ponto nevrálgico desses efeitos colaterais, enfrentados tanto pelas sociedades em geral quanto pelo psiquismo humano, envolve a deterioração da biosfera sob efeito do “capitaloceno” – um termo que Lucia julga mais acertado do que antropoceno. Além dele, os aspectos negativos da Inteligência Artificial e a disseminação da mentira e da desinformação, que converte em pesadelo o antigo sonho da democratização da palavra, são outras das contradições que precisam ser encaradas.

Diante desses desafios, a postura de Lucia não é, contudo, pessimista, e a maneira como os trabalhos da cátedra foram organizados afirmam a vontade de encontrar caminhos. “Não podemos mergulhar nas distopias e nos afogarmos nelas. É preciso buscar o equilíbrio da balança. A característica mais marcante das tecnologias desde que elas começaram a se instalar na era eletromecânica, acentuando-se cada vez mais, encontra-se na ambivalência. É preciso encontrar no outro lado da balança a potência do defrontamento. Afinal, não se pode entregar os pontos para a pulsão de morte. Eros tem que assumir o seu protagonismo.”

Tendo isso em mente, Lucia partiu do tema da Inteligência Artificial centrada no humano como uma espécie de guarda-chuva para tópicos organizados de maneira contrapontística. Seu interesse, conforme conta, foi pensar a transdisciplinaridade em novas bases, defender os valores fundamentais da democracia, pensar a governança e a segurança frente às contradições das redes e refletir sobre os direcionamentos possíveis para a sustentabilidade em um mundo em crise.

“Optei por processos para o avanço do conhecimento, em lugar de uma série de eventos que são ocasionais e não deixam muitas raízes”, explica a professora. “Para garantir a interdisciplinaridade, os subtemas foram pensados em contrapontos que pudessem, de modo controverso, fazer frente às contradições e dilemas que nos afetam hodiernamente. Ou seja, pensar com e pensar contra, melhor ainda, pensar plural.”

Desse modo, os trabalhos da cátedra se debruçaram sobre assuntos como o expansionismo tecnológico e a seguranças nas redes, a relação entre capitalismo de vigilância e a cidadania planetária, os riscos à ética e à democracia em contraponto ao fortalecimento da IA na cultura e na criatividade e o debate envolvendo o antropoceno e as novas ecologias políticas. Além desses subtemas, que ocuparam cada um dos meses de atividades, Lucia comenta que a cátedra também deu atenção a questões mais pontuais, como o marco legal da Inteligência Artificial e o metaverso. Para todos esses debates, um time de personalidades intelectuais brasileiras, incluindo docentes de várias unidades da USP, foi convocado, gerando grupos de estudo que incluíam pesquisadores de várias frentes.

Foto: Pixabay

 

“O que me parece bastante relevante e inovador nos trabalhos da cátedra é que as ilustres palestras funcionaram como estopins para o desenvolvimento de um ambiente de inteligência colaborativa, livre das hierarquias engessadoras que são comuns no sistema universitário”, comenta. “Buscando fugir das práticas convencionais, os subtemas das palestras prolongavam-se em um programa de pesquisa dentro de um grupo de estudos que foi desenvolvido na cátedra. Fizemos uma chamada para a criação desse grupo e, por razões que podem ser explicadas pelo prestígio do IEA, tivemos quase 200 inscritos, dos quais foram selecionados 60. Os critérios de seleção foram pautados pelo princípio da diversidade: de área de formação, de nível de formação, de gênero, de área regional no Brasil. Formou-se assim um grupo excepcionalmente brilhante, participativo, heteróclito.”

Lucia cita ainda, como uma dos pontos altos das atividades que coordenou, o encontro organizado para discutir alguns livros lançados recentemente, cujos conteúdos dialogam com os objetivos da cátedra: Políticas da Imagem, da professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Giselle Beiguelman, Superindústria do Imaginário, do professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e superintendente de Comunicação Social da USP Eugênio Bucci, Sociedade Incivil, do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Muniz Sodré, e Cidadania Digital, do também professor da ECA Massimo Di Felice. Trabalhos que podem ser associados em uma visão integrativa, segundo a professora.

“Por trás do fascínio que produzem, hoje as imagens transformaram a captura do olhar em mercadoria, constituindo-se em cifras de tensões e disputas econômicas e políticas”, formula Lucia. A extração de dados pessoais, de bom gosto ofertados pelos usuários das redes sociais da internet, configura uma estética da vigilância que alimenta, pelas vias do inconsciente digital, a superindústria do imaginário. Surgem assim novas formas do capitalismo de dados, de vigilância, de plataformas, infocapitalismo, neocolonialismo de dados, cuja variedade de nomes busca atingir um só alvo: perscrutar as astúcias invisíveis de seu funcionamento. Caem por terra os ideais do velho civilismo liberal, cedendo passagem a um novo ‘iliberalismo’ em uma sociedade incivil que carrega consigo inquietantes ameaças à estabilidade da democracia e das instituições em regiões diversas do planeta.”

A catedrática prossegue a reflexão. “Cabe a ideia de um deslocamento das placas tectônicas sob nós, dadas as transformações de grande monta na produção social das subjetividades e na constituição de esfera pública. O ritmo vertiginoso da evolução digital, a par das mudanças climáticas, levou à derrocada das ontologias essencialistas e à necessidade não só de reconfiguração das condições habitativas do humano, mas também da nossa própria ideia de humano. Uma nova noção de cidadania digital transorgânica, sem sujeito e sem objeto, emerge nas arquiteturas infomateriais das ecologias das redes.”

Finda sua passagem pela cátedra, Lucia conta que agora prepara a edição de uma coletânea composta pelos textos dos convidados para as palestras dadas no decorrer do ano, além de trabalhar na elaboração de um dossiê previsto para publicação em revista. “Temos que investir em frutos que se livrem da corrosão que o tempo provoca na memória, especialmente em um País como o nosso, que investe e celebra a dissipação da memória, tanto a memória benéfica quanto a maléfica. Isso é muito triste, pois não há presente que possa sonhar com um futuro melhor quando o passado é colocado no esquecimento”, finaliza a catedrática.


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