Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Reprodução/Cidade (Dis) Sonante

São Paulo de todos os sons: dos cacarejos até a boemia dos cafés cantantes

As culturas sonoras da cidade dos séculos 19 e 20 são apresentadas no livro Cidade (Dis) Sonante, de José Geraldo Vinci de Moraes

 12/12/2022 - Publicado há 1 ano

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Guilherme Castro

Enfrentar os sons da cidade com as vozes dos vendedores no centro da cidade, as britadeiras pelas ruas e as buzinas de automóveis é um desafio para os ouvidos. Agora imagine voltar no tempo e ouvir também os ritmos dos relinchos, zurros, mugidos e cacarejos de centenas de animais.

O livro Cidade (Dis) Sonante: Culturas Sonoras em São Paulo (Séculos XIX e XX), organizado por José Geraldo Vinci de Moraes e lançado pela Editora Intermeios, traz o panorama sonoro de São Paulo orquestrado pelas vozes dos trabalhadores ambulantes nas ruas centrais e também pelos relinchos, mugidos, latidos e cacarejos dos animais. São os sons da cidade oitocentista e da metrópole com a diversidade de culturas sonoras – dos diferentes sotaques dos imigrantes até o ritmo das músicas que se espalhavam pelo centro afora – que o professor Moraes organiza com muito bom ouvido, sensibilidade, conhecimento e pesquisa nas 406 páginas do volume.

Quando o leitor começar a ler o livro, irá voltar no tempo para ver e ouvir o coração da cidade. Moraes, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica: “O início do século 20 registrou uma inusitada metamorfose no horizonte sonoro contemporâneo. Nos grandes centros urbanos o regime de produção e recepção dos sons estava em transição para uma outra ordem associada a novas culturas e sensibilidades sonoras, sem que isso significasse demover completamente as antigas práticas em uso. A cidade de São Paulo apareceu como um privilegiado laboratório de elaboração cultural desse incrível processo modernizador.”

O professor José Geraldo Vinci de Moraes - Foto: Reprodução/FFLCH-USP

Na apresentação, o professor José Geraldo Vinci de Moraes lembra o compositor, cantor, ator e humorista Jararaca, em 1930, que, com o parceiro Belisário Couto, gravou um disco na gravadora Columbia. “Um lado continha o fonograma Caipiras de Aeroplano e o outro, o registro intitulado Rádio Pá Virada. Nessa época ainda era muito comum a gravação de pequenas histórias que contavam de maneira bem-humorada as profundas transformações que se materializam nos centros urbanos, produto dos impactos da ciência e tecnologia no dia a dia das pessoas.” Uma discussão que, segundo o professor, era central no debate cultural da época, apresentando-se também na literatura, teatro, música, imprensa, meio acadêmico e nas jovens indústrias fonográfica e radiofônica.

A história da cidade (dis)sonante segue em oito capítulos. E, o mais interessante, no mesmo tom resgata histórias do cotidiano em um ritmo que envolve o leitor. A edição reúne textos dos pesquisadores André Augusto de Oliveira Santos,  Flávia Prando, Giuliana Souza Lima, Juliana Péres González, Nelson Aprobato Filho (USP),  Paulo Castagna (Unesp) e Virginia de Almeida Bessa (USP, Unicamp, Universidade Aberta de Portugal e Universidade Paris Nanterre). 

“A maioria dos salões mantinha suas orquestrinhas ou solistas no saguão de entrada ou nos palcos, ocupando-os com seus sons.”

No primeiro capítulo, Moraes cita as mudanças que os paulistanos viviam em seu cotidiano, que ele define como “bastante inquieto e efervescente”. Observa: “Entre a metade do século 19 e os primeiros anos do século 20, as médias e grandes cidades apresentaram uma explosão desses novos circuitos de entretenimento, sobretudo os noturnos, em que a música estava geralmente presente. Atentos às novas circunstâncias, os jornais locais tratavam de apresentar essa incrível diversidade de acontecimentos”.

Café cantante em Sevilha - Foto: Reprodução/Cidade (Dis) Sonante

Uma diversidade que se refletia nas páginas dos jornais, que registravam uma cultura em rápida transformação. “A maioria dos salões mantinha suas orquestrinhas ou solistas no saguão de entrada ou nos palcos, ocupando-os com seus sons. Os cafés, confeitarias, cafés-cantantes e botequins também formavam uma outra rede de lazeres noturnos que se expandia velozmente, se associando muitas vezes a outros circuitos. Em todos eles, a música estava presente.”

Como bem descreveu Mário de Andrade no poema A Escalada, referindo-se aos sons de São Paulo: “Toca a banda do Fieramosca: Pa, pa, pa, pum! Toca a banda da polícia: Ta, ra, ta, tchim!”. 

“Nessa composição que mesclou e contrapôs registros modernos e outros de raízes rurais, os sons produzidos direta ou indiretamente pelos animais ocuparam espaço acústico de destaque.”

No capítulo 2, Juliana Péres Gonzáles aborda o comércio fonográfico em São Paulo. No capítulo 3, Giuliana Souza Lima também traz as experiências de escuta nas primeiras décadas da radiofonia paulistana. 

A pesquisa de Nelson Aprobato Filho pontua as zoosonoridades urbanas, com os animais e seus sons da São Paulo de meados do século 19 às primeiras décadas de 20. “Nessa composição que mesclou e contrapôs registros modernos e outros de raízes rurais e coloniais, os sons produzidos direta ou indiretamente pelos animais ocuparam espaço acústico de destaque. A cidade dos animais tinha as suas  particularidades sonoras que se compunham com as novas sonoridades tecnológicas”, relata o professor. “Alguns desses sons animais estavam mais próximos dos ruídos e das dissonâncias. Outros, porém, compunham-se de sons, ritmos e harmonias de exuberante e melodiosa musicalidade. Eles chamaram a atenção do prefeito Antônio Prado naquele mesmo ano de 1903 em que foi aprovada a construção do Theatro Municipal de São Paulo.”

Adoniran Barbosa e os engraxates ambulantes paulistanos. Revista Flash, maio de 1953 - Foto: Reprodução/Cidade (Dis) Sonante

A trajetória do compositor português André da Silva Gomes (1752-1844) na cidade oitocentista é um dos temas de Paulo Castagna, professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), no capítulo 5. O autor resgata a atuação do músico como regente, organista, professor de latim e homem público. E ressalta: “O músico não foi mencionado em nenhum dicionário português ou brasileiro de músicos anterior ao século 20. O conhecimento a respeito desse compositor, durante o século 19, foi principalmente registrado em jornais e visivelmente centralizado na Catedral de São Paulo”.

“O número de teatros e cineteatros em São Paulo atingiu seu ápice em 1928, quando chegou a 23. Além do incremento numérico, essas salas passaram a contar com uma nova configuração espacial.”

Uma Babel nos Palcos: Teatro Musicado na Cidade de São Paulo (1914-1934), de Virginia de Almeida Bessa, destaca a cultura musical como elemento central na cidade entre os últimos anos do século 19 até as duas primeiras décadas do século 20. “O número de teatros e cineteatros em São Paulo atingiu seu ápice em 1928, quando chegou a 23. Além do incremento  numérico, essas salas passaram a contar com uma nova configuração espacial, adensando-se em torno das vias Celso Garcia e Rangel Pestana, no bairro do Brás, onde se concentrava a população operária e imigrante da cidade, o que revela o aumento da demanda por diversões entre esse grupo social.”

Virgínia explica que o número de salas só começou a decrescer a partir dos anos 1930, em função da concorrência com o cinema sonoro, que havia chegado à cidade três anos antes. Conta sobre o surgimento do teatro ambulante com barracão de madeira desmontável e transportável, atendendo à demanda por teatros de diversas trupes paulistas.

Capa do catálogo Di Giorgio - Foto: Reprodução/Cidade (Dis) Sonante
Capa do catálogo Di Giorgio - Foto: Reprodução/Cidade (Dis) Sonante
Jacobino e seu violão Di Giorgio com detalhes em madrepérola na caixa - Foto: Reprodução/Cidade (Dis)Sonante

Flávia Prando descreve o violão paulistano com seu repertório e práticas do início do século 20. “Com o crescimento das práticas violonísticas na cidade, na primeira década do século 20, São Paulo já articulava as condições para que diversas fábricas e construtores do instrumento se instalassem. Nesse período, foram inauguradas três fábricas de violão: a Tranquillo Giannini, em 1900, a Casa Del Vecchio, em 1902, e a Romeo Di Giorgio, em 1980.”

O livro se encerra com a história de Barbosinha, Entre Malocas, Engraxates e Demônios, sobre o célebre cantor e compositor Adoniran Barbosa, nome artístico de João Rubinato. Escrita por André Augusto de Oliveira Santos, contextualiza a trajetória do compositor com as ondas radiofônicas e o cotidiano da cidade de São Paulo. “Foi atuando como humorista, sob a direção de Osvaldo Moles, que ele se popularizou na Rádio Record, interpretando esquetes cômicas inspiradas justamente nas personagens das ruas, como os engraxates, jornaleiros e vendedores ambulantes”, relata o autor. “A tão sonhada fama como compositor, sob o nome artístico de Adoniran Barbosa, só aconteceria mais tarde, no começo dos anos 50, com o êxito da canção Saudosa Maloca, na interpretação do grupo vocal Demônios da Garoa.”

A canção se popularizou por todo o País, foi o primeiro sucesso nacional de Adoniran Barbosa. “Inspirada em personagens paulistanos de carne e osso, Saudosa Maloca foi composta na rua, enquanto ele caminhava da sua casa para os estúdios da Rádio Record.”

Capa do livro Cidade (Dis) Sonante — São Paulo (Séculos XIX e XX), organização José Geraldo Vinci de Moraes - Foto: Divulgação

Cidade (Dis) Sonante: Culturas Sonoras em São Paulo (Séculos XIX e XX), de José Geraldo Vinci de Moraes (organização), Editora Intermeios, 406 páginas, R$ 67,00 


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