Revista do IEB, número 85, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, 207 páginas. Disponível neste link.
"Revista do IEB" faz diagnóstico do Brasil de ontem e de hoje
Desigualdade social, racismo, negacionismo e o confronto entre o pensamento de Gilberto Freyre e de Florestan Fernandes são alguns dos temas discutidos na edição 85 da publicação
Capa da Revista do IEB, número 85 - Ilustração IEB
Começa com o direito à moradia. A noite é quente na periferia da zona leste de São Paulo. Litrões de cerveja e uma novena de São Sebastião. O prédio da Igreja Católica ainda no tijolo, sem reboco. Jogadores de futebol de várzea. Uma empresa privada empenhada na regularização fundiária de uma área ocupada. Irmãos e corres do PCC. Integrantes do movimento social e pesquisadores na mesa do bar.
Esses são os elementos com que Gustavo Prieto e Elisa Favaro Verdi apresentam seu trabalho etnográfico no número 85 da Revista do IEB, a mais recente edição da publicação quadrimestral do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Prieto, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Elisa, pós-doutoranda no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), integram o conjunto de autores de uma edição explosiva. Desigualdade social, racismo, negacionismo, invisibilidade feminina: o diagnóstico de um Brasil de ontem e de hoje que insiste em fechar os olhos para sua barbárie particular. Uma sociedade surrada, meio desnutrida, que ainda precisa pegar uma estrada bastante longa para fazer valer o slogan “democracia”.
“Irmãos na Terra Prometida: crime, igreja e regularização fundiária em São Paulo” é um relato sobre a violência da urbanização na periferia da capital paulista. Prieto e Elisa contam como um movimento social de bairro, Igreja Católica, crime organizado e empresas privadas se articulam na gestão do espaço urbano, transacionando zonas de atuação e transformando o direito à moradia em negócio. A propriedade da terra virando parte do processo de capitalização fundiária. Escrito com o sabor das boas narrativas etnográficas, o texto faz da descrição vibrante plataforma para análise das relações conflitivas em espaços marcados pela violência.
Continua na sala de aula. Da quebrada para o campus, segue a luta. A próxima batalha é contra o negacionismo, o descrédito em relação à ciência – sobretudo as ciências humanas – e a desvalorização dos professores. Quem escreve é Amanda Raquel Rodrigues Pessoa, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), e Isabel Maria Sabino de Farias, professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Em “Negacionismo e educação: implicações e desafios à formação de professores na pós-graduação stricto sensu”, as autoras defendem a importância da pesquisa acadêmica para capacitar professores da educação básica no combate aos ataques à ciência que encharcaram a sociedade em tempos recentes.
Coleção Isa Aderne, Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP)
Negacionismo que vicejou em um país incapaz de romper o modelo social caracterizado por um capitalismo hipertardio e dependente, cristalizado em um Estado burguês oligárquico-senhorial, lembram Amanda e Isabel. Em sua faceta recente, assediado pelo ultraconservadorismo econômico e social que levou a extrema direita ao poder, com suas bandeiras negacionistas e necropolíticas.
É nesse pesadelo de filme B que os movimentos reacionários montaram suas narrativas, nas quais liberdade de expressão, pensamento crítico e conhecimento científico são colocados em xeque e virados do avesso, enquanto professores e pesquisadores tornam-se o Judas malhado nesse perpétuo Sábado de Aleluia. “Uma onda de negação ao conhecimento e de desrespeito ao diferente intensifica-se e passa a compor acentuada expressão no cenário de atuação profissional do professor”, escrevem as autoras.
Diante desse quadro, pesquisa e reflexão oriundas de programas de pós-graduação stricto sensu surgem, na visão de Amanda e Isabel, como estratégias para rebater tais discursos na educação e na formação de professores. Não há espaço para falsas isenções ou imparcialidades: o projeto educacional de que tratam as autoras é socialmente referenciado e de caráter emancipatório. É preciso investir na formação crítica dos professores da educação básica, aprofundando as conexões entre teoria e prática, deixando de lado o pragmatismo alavancado pelos movimentos conservadores e ampliando a autonomia dos profissionais da educação.
“O que se defende é uma sólida formação docente, pautada em conhecimento científico, filosófico, estético, ético e político em articulação orgânica com a teoria e a prática”, escrevem Amanda e Isabel. “E isso requer pensarmos o conhecimento científico não como um fim em si, mas como um instrumento de superação, de contrarreforma no processo de produção de conhecimento, contrapondo-se a qualquer forma de discurso que não contribua para enxergar a realidade.”
Agora é na Universidade de São Paulo mesmo. Mesa de bar na ZL, sala de aula, Cidade Universitária. Em todo lugar os embates estão postos, aponta a Revista do IEB. Ainda que alguns confrontos surjam em formas mais sutis. Estamos agora entre as erudições do Departamento de Filosofia da USP e as aulas de uma ilustre professora (que poderia ser ainda mais ilustre, conforme veremos).
Entre tais meandros, Taisa Palhares se aventura e compõe o artigo “O legado invisibilizado do pensamento de Gilda de Mello e Souza”. Professora de Estética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Taisa recupera a trajetória intelectual e acadêmica de Gilda e defende seu pioneirismo em diversos níveis de seu campo de estudos.
Uma das primeiras mulheres formadas na USP, em 1939, Gilda graduou-se em Filosofia aconselhada pelo primo Mário de Andrade. Foi assistente do professor e sociólogo francês Roger Bastide de 1943 a 1953 e se tornou responsável pela cadeira de Estética do Departamento de Filosofia da USP. Foi a primeira mulher professora no departamento e a fundadora dessa área na Universidade. Com esse currículo, seria de se esperar que Gilda fosse presença recorrente nos cursos de graduação e pós-graduação da área.
A realidade, contudo, é outra. De acordo com Taisa, o lugar de Gilda na história da estética tradicional é ao mesmo tempo um “não lugar”. Graças ao seu deslocamento da visão canônica da disciplina e um interesse menos alinhado aos grandes temas do campo. Pouco interessada nos clássicos e nos debates abstratos, Gilda elegeu a modernidade e a análise do concreto como seus temas. A moda do século 19, por exemplo, que foi tema de sua tese de doutorado.
Chegamos aos livros. Batalhar no campo das ideias – o que inevitavelmente leva ao concreto – também é o centro das preocupações de Gustavo Zullo, doutor pela Unicamp. Em seu artigo, o empenho do autor é contrapor dois projetos de democracia para o Brasil antagônicos, elaborados por duas das maiores intelectualidades que o País viu no século 20: Gilberto Freyre e Florestan Fernandes.
De um lado está o patriarcalismo e a democracia étnica do autor de Casa Grande & Senzala, postos a serviço de um projeto conservador para a nação. De outro, o entendimento do processo de exclusão racial em operação desde a colônia, não superado com a chegada da República e a substituição da estrutura estamental de senhores e escravos pela sociedade de classes com seus patrões e empregados, burguesia e proletariado.
“Projeto e antiprojeto para a democracia no Brasil: o antagonismo entre Gilberto Freyre e Florestan Fernandes” é o título. Zullo apresenta a proposta freyreana de articulação entre um novo pacto federativo e controle social na década de 1930, em sintonia com as medidas autoritárias colocadas em movimento com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. E analisa também, como contraponto, a desconstrução do mito racial de Freyre e sua narrativa histórica por Florestan Fernandes, que a partir dos anos 1950 esteve empenhado no fortalecimento de um consciência revolucionária direcionada para a democracia e soberania nacional.
Freyre teve um papel fundamental na modernização do racismo, escreve Zullo, tornando a convivência com a cultura negra mais permeável sem, contudo, acabar com seu caráter segregacionista. Seu passado idealizado colocava senhor e escravo coexistindo em harmonia e suas soluções apontavam para a integração dos oposicionistas mantendo sua subalternidade. Para o Brasil das primeiras décadas do século 20, vivendo o crescimento das populações urbanas e, consequentemente, dos conflitos sociais, a receita de Freyre passava pela manutenção de seu patriarcalismo de contos de fadas, substituindo a figura dos senhores de escravos pelo Estado centralizador, responsável por tutelar as massas operárias e apaziguar os conflitos sociais.
Nesse sentido, a estabilidade das estruturas de poder durante os anos 1930 reuniria não apenas a atuação oficial do Estado, mas um disciplinamento da população branca como agente da segregação racial.
A tradição patriarcal se consolidava no mercado de trabalho, que admitia o negro sem mitigar as condições de desigualdade. Era a democracia que procurava manter os elementos do patriarcalismo colonial, tentando assegurar às elites o poder e a docilidade dos trabalhadores.“A democracia proposta por Freyre representava, acima de tudo, a adaptação da segregação típica da sociedade escravista construída no Brasil durante a colonização, e que se estendera até o fim do Império, para o regime republicano”, escreve Zullo.
O projeto de Florestan não poderia estar mais distante disso. Nada de convivência e confraternização entre senhores e escravos, patrões e empregados, dominantes e subalternos, um Estado de harmonia que precisava ser restaurado. Isso era um falseamento da história construído por Freyre, uma tentativa de congelar a descolonização.
“A realidade que ele denunciava era a de uma formação histórica fundamentada na segregação que resistia à mudança com unhas e dentes, o que a cada nova etapa histórica se adaptava com o intuito de autopreservação”, indica o autor.
Para Florestan, classe e raça se aproximam. A segregação racial permeia a vigência do regime de classes no Brasil. Os papéis criados durante o período colonial se desdobraram em uma sociedade de classes racial e socialmente segregada. Se para Freyre a modernização brasileira expressava um desgaste da democracia, que precisava ser restaurada, para Florestan simplesmente nunca houve algo que se assemelhasse à democracia no País. A entrada do Brasil no capitalismo dependente e no regime de classes não teria alterado os fundamentos antissociais de dominação.
“A dimensão escravista do senhor de terras não desapareceu por completo com a emergência do burguês, assim como a mercantilização do trabalhador no regime de classes não rompeu até o fim e até o fundo com o padrão de exploração do trabalho escravo”, escreve Zullo.
Assim, não era a aliança entre proletários e a burguesia “nacional” e “progressista” que deveria estar na pauta dos trabalhadores, conforme propunha a posição nacional-desenvolvimentista em voga na época, mas sim uma revolução em moldes comunistas. E, ao mesmo tempo, era preciso considerar o negro como pedra angular do processo revolucionário. “A revolução brasileira de Florestan necessariamente requeria o aprofundamento da educação popular antirracista, inclusive no intuito de educar o movimento sindical, e a sua integração a uma agenda anti-imperialista, o que fatalmente a levaria a posturas anticapitalistas e democráticas”, pontua o pesquisador.
De volta à revista. Epílogo. Há um Brasil que afirma, enfim, sua complexidade – nas ruas, nas universidades e nos livros. Corações e mentes em disputa, nas diferenças de que somos feitos, como diz o título do Editorial da revista. Diferenças que compõem uma democracia justamente quando são respeitadas de maneira integral, o que significa reconhecer as insuficiências ainda por resolver.
A escritura de uma casa própria na Vila da Vitória segue materialmente a argumentação de Florestan Fernandes, cujas palavras são irmãs dos apontamentos de Amanda e Isabel na defesa de uma formação crítica para os professores. Variações de uma estética pobre, que se detém na importância ruidosa do cotidiano. Estudos brasileiros, sem dúvida.
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