Respostas para impedir o fim do mundo

Livro de antropólogo da USP aborda sensibilidades negras e indígenas em busca de justiça e reparação histórica

 16/02/2023 - Publicado há 1 ano
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Livro viaja da floresta para o litoral passando por uma metrópole distópica em busca de visões de mundo alternativas – Foto: Divulgação

 

Como romper os ciclos de abuso econômico, opressão, preconceito e degradação ambiental que parecem apenas se aprofundar conforme a humanidade tateia pela Terra? Para Pedro Cesarino, a resposta para essa pergunta de 1 milhão de dólares está em ouvir a voz das alteridades atacadas e efetivar a justiça que elas merecem.

Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Cesarino mobiliza conhecimento e sensibilidade antropológicos para abordar as subjetividades dessas alteridades em A Repetição. Obra de ficção que apresenta duas novelas inspiradas nos pensamentos indígenas e afrodiaspóricos, o volume acaba de chegar às livrarias pela Editora Todavia.

Pedro Cesarino – Foto: Reprodução

O que une as histórias de A Repetição é uma espécie de marasmo de um mais do mesmo assinalado pela opressão e suas consequências. O cotidiano, mais ou menos trágico, mais ou menos desolador, surge como um tempo que se altera lentamente, retomando padrões e se transformando a partir de suas sutilezas. A primeira impressão do leitor é de estar acomodado sobre uma roda que gira lentamente e a partir da qual só depois de muito tempo pode-se perceber a alteração da paisagem.

Isso, entretanto, não significa uma ode ao tédio ou a resignação diante da ordem das coisas. Porque a mudança, embora lenta, existe. E, quando acontece, instaura um cenário de estranhamento e potências sobrenaturais, revelando que a solução para a repetição, muitas vezes, pode estar além das forças corriqueiras.

Em uma das novelas do livro, intitulada O Mentiroso, que é inspirada num acontecimento verídico do povo Yine, que habita o baixo rio Urubamba, no Peru, vemos os indígenas atados ao ciclo de dependência, expectativa e exploração que monopolizou a história da conquista europeia do Novo Mundo. O protagonista, significativamente chamado Américo, volta para sua aldeia depois de uma temporada de trabalho precário junto aos brancos. Após cuidar da saúde de animais doentes, ser emprestado entre um patrão e outro, dormir coberto apenas por folhas de jornal e aguentar pregações religiosas, Américo se depara com as transformações advindas do contato: a sujeira se acumulando nos cantos das malocas, os rádios insistindo em músicas sobre amores e traições.

De volta ao seu povo, reencontra um velho tio, outrora considerado como um bobo ou louco, mas agora elevado à condição de profeta. Graças à sua capacidade de ler os jornais dos brancos, Totanauá faz seu povo acreditar na chegada de uma canoa de aço vinda do céu, que trará alimentos e mercadorias para livrar a todos das privações e do trabalho.

Américo, que sempre se interessou pelo comportamento errático do tio, tenta aprender com Totanauá a arte de ler os jornais, sem sucesso. Ao mesmo tempo, o correr dos dias sem que nada aconteça leva à impaciência da comunidade, colocando em risco a própria vida do profeta. No final, a repetição acaba se afirmando para o protagonista, ainda que reste para o grupo a visão de uma saída a partir da aceitação do pensamento do outro. Um pensamento que pode intimidar, assustar e parecer incrível, mas que justamente por isso encerra a possibilidade de mudança.

A Dívida – a outra novela publicada em A Repetição -, que se ancora em estudos sobre história e arqueologia do litoral norte de São Paulo e cosmologia africana, delineia um cenário distópico no qual o cotidiano é organizado pelos efeitos do Evento, um acontecimento inspirado na pandemia de covid-19. Tomando proporções de catástrofe, o Evento deixou como legado corpos se empilhando nas ruas, medidas severas de isolamento social e uma atmosfera de decadência, acentuada por uma divisão aguda entre riqueza e pobreza e um senso de desesperança. Arranha-céus envidraçados se isolam no céu, enquanto as sarjetas são território da luta pela sobrevivência e apartamentos vazios exalam os odores de seus mortos.

Como herança perene do Evento, traumas psíquicos, insônia e pesadelos afligem a população de uma região identificada apenas como o Território. É aí que entra M., um velho professor universitário aposentado, afrodescendente, com habilidade de compartilhar os sonhos daqueles que vêm lhe pedir ajuda.

Quando suas próprias lembranças de infância se cruzam com as imagens das pessoas que acolhe, M. acaba descobrindo a história do tráfico escravo da região, que diz respeito não apenas à sua família, mas a toda a sociedade. O que parecia apenas caridade pontual vai revelando, assim, as origens profundas da tragédia que caiu sobre o Território.

“Quero dizer que a praga é muito mais vasta e mais antiga do que parece, que ela tem uma origem”, explica M. em determinado momento da novela. “Apenas uma compensação retiraria as pessoas do estado de calamidade em que se encontram. Assim elas poderiam se reerguer e aos poucos recuperar a ordem da Terra.”

A calamidade não é assunto apenas dos vivos, indica Cesarino. Ela é resultado de camadas e camadas de injustiça e tragédia não reparadas, que inquietam os mortos, deixam marcas nos corpos dos vivos e contribuem para a destruição da própria existência. Não é possível pensar em soluções para as repetições trágicas do dia a dia apenas sob um ponto de vista.

Não basta a ciência, não basta a erudição, não basta a certeza impávida do homem branco. As respostas devem vir tanto do mundo que podemos ver ao abrir os olhos quanto das realidades que exigem sensibilidades mais sutis e demandam reparação e justiça. A questão é entender isso antes que acabemos de vez com essas sensibilidades.

A Repetição, de Pedro Cesarino, Editora Todavia, 146 páginas, R$ 64,90.

 


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