Relato de viagem árabe do século 10 é lançado no Brasil

“Viagem ao Volga” será lançado nesta quinta-feira, dia 9, em São Paulo, com participação de professor da USP

 07/08/2018 - Publicado há 6 anos
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Detalhe da primeira edição em português de Viagem ao Volga – Foto: Divulgação

“A história deste livro é como a de um grande viajante. Ela se inicia entre os anos 921 e 922 d.C. ou 309 e 310 H.”

A frase acima é extraída da apresentação do livro Viagem ao Volga – Relato do Enviado de um Califa ao Rei dos Eslavos (Editora Carambaia), que será lançado nesta quinta-feira, dia 9 de agosto, às 19h30, na Casa Plana, em São Paulo, durante o debate Literatura Árabe e Relato de Viajantes, conduzido pelo professor Mamede Jarouche, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. As datas informadas se referem, respectivamente, ao calendário cristão e ao calendário islâmico, que conta o ano 1 a partir da Hégira – “migração”, em árabe, nome que se dá à fuga de Maomé de Meca para Medina no ano de 622 d.C. -, simbolizada pela letra H.

Escrito no século 10 pelo viajante Ahmad Ibn Fadlān e traduzido diretamente do árabe – sua versão original foi mantida na obra, que é bilíngue –, Viagem ao Volga cobre um trajeto de 4 mil quilômetros, que durou quase um ano, em uma expedição que vai de Bagdá rumo às terras do Norte, até um assentamento viking às margens do rio Volga – reino dos búlgaros, atual Cazã, na Rússia (leia texto abaixo). A tradução é de Pedro Martins Criado, formado em Árabe e Português pela FFLCH, onde atualmente faz mestrado em Literatura Árabe sob orientação do professor Jarouche.

Publicado pela Editora Carambaia, edição de Viagem ao Volga é bilíngue (árabe-português) – Foto: Divulgação

A literatura árabe de viagem, mais que um gênero literário, adentra na realidade histórica, geográfica e literária pouco conhecida pela cultura ocidental. Desde o século 9, os árabes se mostraram interessados em conhecer outros domínios, mas de fato esse interesse só viria a se intensificar a partir do século 10.  Viajantes diversos, missionários, mercadores, emissários oficiais, geógrafos e historiadores se aventuraram em novas terras em busca de informações e conhecimento.

Segundo o professor Jarouche, esse gênero se desenvolveu na Idade Média e está diretamente relacionado à ampliação da cultura árabe. “Antes do islã, os árabes estavam confinados na Península Arábica. No século VII, devido à amplitude do islã – que se expandiu pela Europa, Ásia e África –, o povo se dá conta da vastidão do planeta e surge a necessidade de conhecer outros lugares. Começam então a aparecer inúmeros relatos de viagem, viagens por terra, por mar”, explica Jarouche. O professor ainda lembra que há relatos que mostram o interesse do muçulmano por regiões de seu próprio império, como Meca, um lugar de peregrinação.

Foram muitos os relatos publicados, mas muitos se perderam, informa Jarouche. “Não havia publicação no sentido moderno. A introdução da tipografia foi tardia no mundo árabe. Eram registros manuscritos, a maior parte editada e traduzida do árabe para outras línguas”, afirma.

O professor Mamede Jarouche, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – Foto: Matheus Araújo / IEA

Entre os autores mais importantes, o professor cita Ibn Jubayr e Ibn Battuta, viajantes que foram do Ocidente para o Oriente. Também destaca outros dois nomes, o viajante e geógrafo persa Ibn Rusteh e o historiador e geógrafo Almascūdī, que descreveram de forma mais detalhada os povos do norte e o trabalho de conversão ao islã.

Ainda hoje a literatura de viagem é comum em todas as culturas, mas, segundo o professor, em especial na literatura árabe, não tem a mesma importância daqueles registros antigos, quando havia pouca escrita. O valor está em lançar luz e fazer pensar sobre a inserção dos árabes no mundo. “São relatos de costumes, das curiosidades, da geografia, mas, principalmente, centrados no aspecto humano”, diz Jarouche.

Viagem ao Volga combina testemunho e registro

Trecho do livro Viagem ao Volga – Foto: Divulgação

Tudo começou no ano 921, quando Almaš Ibn Yalṭwār, o rei dos eslavos, envia uma carta ao califa Almuqtadir Billāh solicitando apoio para a propagação da lei e da fé islâmicas. O livro trata do período em que um representante do califado – Ahmad Ibn Fadlān – relata a trajetória de sua comitiva durante a missão diplomática. Com texto visual, depoimentos orais e caráter documental, além do fato de o próprio Ibn Fadlãn se incluir constantemente na narrativa, o relato combina testemunho e registro.

Viagem ao Volga vai descrevendo os lugares por onde ele passa, como se fosse uma espécie de relatório oficial. Acredito que era maior do que foi publicado, já que várias folhas se perderam. Sua importância está no fato de que é a primeira descrição que se tem do povo russo”, informa o professor Jarouche sobre a narrativa que permaneceu desconhecida por mais de mil anos.

Mapa da viagem de Ahmad Ibn Fadlān (acima), que percorre um trajeto de 4 mil quilômetros, numa expedição que vai de Bagdá rumo às terras do Norte, até um assentamento viking às margens do rio Volga – Foto: Divulgação

Segundo o tradutor Pedro Martins Criado, que assina o Prefácio da obra, o relato foi utilizado, no século 13, como fonte de pesquisa pelo biógrafo e geógrafo muçulmano de origem bizantina Yāqūt Alḥamawī para escrever sua enciclopédia geográfica Muc jam Albuldān (Dicionário de Países). Mas somente em 1923 foi descoberto no Irã um conjunto de manuscritos do século 13, contendo quatro livros, entre eles uma versão incompleta desse relato.

Capa do livro Viagem ao Volga – Foto: Reprodução

“O que se extrai de seu testemunho não é um registro burocrático ou uma narrativa convencional, mas um relato da perspectiva de um viajante extremamente observador”, escreve o tradutor no Prefácio. “A travessia do frio, o corpo de um gigante e os hábitos dos povos que Ibn Faḍlān encontrou pelo caminho, entre outros, são alguns dos pontos que chamam atenção pela riqueza de detalhes. O maior destaque entre as vívidas descrições, certamente, é nada menos que o único testemunho ocular conhecido de uma cerimônia funeral viking, cuja prática já estava em declínio na época”, conta.

Considerado fonte histórica medieval acerca do norte e leste europeus, o relato até hoje inspira produções culturais. Sua repercussão mais difundida é o romance histórico Eaters of the Dead: The Manuscript of Ibn Faḍlān Relating His Experiences with the Northmen in A.D. 922 (lançado no Brasil com o título Devoradores de Mortos), do escritor norte-americano John Michael Crichton, publicado em março de 1976. Também foi adaptado para o cinema em 1999, como O 13º Guerreiro, dirigido por John McTiernan, com Antonio Banderas como Ibn Faḍlān e a participação do egípcio Omar Sharif. Em 2007, ganhou um seriado de 30 episódios, Saqf Alc Ālam (O Teto do Mundo), transmitido pela televisão síria e dirigido por Najda Ismāc īl Anzūr, em uma narrativa que se alterna entre o momento histórico da viagem ao Volga e o presente.

O livro Viagem ao Volga – Relato do Enviado de um Califa ao Rei dos Eslavos, de Ahmad Ibn Fadlān, será lançado nesta quinta-feira, dia 9 de agosto, às 19h30, na Casa Plana (Rua Fradique Coutinho, 1.139, Pinheiros, em São Paulo), com a participação do professor da USP Mamede Jarouche.


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