Quem é o ser humano Vladimir Herzog?

A resposta está na Nova Ocupação do Itaú Cultural, que revela os sonhos do fotógrafo, cineasta, jornalista e pai

 29/08/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 30/08/2019 as 20:06
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A entrada da Ocupação Vladimir Herzog, no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

A verdadeira história de Vladimir Herzog tem muitos ideais, projetos e humanidade no horizonte. É esse jornalista, professor, cineasta, fotógrafo, pai dedicado e amigo que deixa suas impressões em inúmeras fotos, roteiros, filmes, reportagens, depoimentos e cartas que o Instituto Vladimir Herzog e o Itaú Cultural revelam.

Conhecer a vida de Vladimir Herzog é uma ventura. A vítima, o herói, o mito vão além do símbolo contra a ditadura. A pessoa real tem uma história que poucos conhecem. Uma vida interrompida aos 38 anos, pontuada pela sensibilidade e consciência humana.

“Pela primeira vez, todos vão poder conhecer o meu pai, não o mito”, diz Ivo Herzog, o filho mais velho de Vlado. “Vão saber quem era a pessoa. Observar a sua dedicação em outros caminhos, como o do cinema. Ver o seu projeto de filmar a história de Canudos e também as cartas que trocava com os amigos, suas fotos e atuação em outras áreas.”

Ivo tinha 9 anos e o irmão André 7, quando o pai morreu no dia 25 de outubro de 1975, assassinado pela ditadura militar então em vigor no País. “A exposição trouxe muitas coisas que eu também não conhecia. Tinha a lembrança dos nossos passeios na praia, no sítio. Mas a pesquisa que foi desenvolvida pelas equipes do instituto e do Itaú Cultural trouxe detalhes importantes do ser humano, sempre preocupado com o social.”

Os filhos e a viúva Clarice acompanharam de perto a montagem da exposição. A Ocupação Vladimir Herzog está em todo o espaço do Piso 2 do Itaú Cultural. “A mostra entrelaça e dialoga com o percurso da vida e da obra de Herzog, desde o dia em que ele nasceu, 27 de junho de 1937, em Osijek, na Iugoslávia, atual Croácia”, conta Luís Ludmer, curador do Instituto Vladimir Herzog. “Chegou a São Paulo com a sua família para escapar do antissemitismo e se naturalizou brasileiro. Formou-se em Filosofia pela USP e, além de jornalista renomado, passou a lecionar na Escola de Comunicações e Artes da USP.”

 A mostra joga luz na vida e obra do repórter, editor, fotógrafo, historiador e o potencial cineasta.”

 

“Quem é esse cara? Apresentar Vladimir Herzog foi o nosso desafio. A mostra joga luz na vida e obra do repórter, editor, fotógrafo, historiador e o potencial cineasta”, explica Claudiney Ferreira, que integra a equipe de curadores do Itaú Cultural. “Junto com o Instituto Vladimir Herzog, buscamos a vida e os projetos de Vlado em diversos acervos do País.”

Para revelar os caminhos e o pensamento de Vlado, foram realizadas pesquisas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no jornal O Estado de S. Paulo, na Fundação Padre Anchieta, na Cinemateca Brasileira, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e em acervos da família e de amigos.

O resultado desse trabalho é uma vida que começa a fluir quando o visitante atravessa as cortinas de voil onde estão impressas as fotos de Vlado.

São imagens de gente que ele fotografou em suas andanças pelo sertão da Bahia. Fotos coloridas e em preto e branco dos filhos pequeninos, de Clarice feliz, de crianças brincando de roda. Vlado, o pai e o repórter, o poeta e o idealista, o sonhador e o mestre, estão ali atrás da Pentax, manuseando a grande angular e a teleobjetiva, flagrando cenas sensíveis como a de uma senhora idosa ganhando um beijo na testa de um jovem garboso. Não há como deixar de se emocionar diante dessas paisagens de rua ou no convívio com a família. A mala onde guardava a máquina fotográfica e as lentes está exposta em uma caixa de vidro. Na legenda, a explicação: “Vlado cultivava um olhar particular sobre paisagens, objetos e pessoas”.

“Meu filho não voltará, mas seu bom nome não ficará manchado, seu desaparecimento não foi em vão para o País”, escreveu dona Zora, mãe de Herzog.

 A exposição está dividida por núcleos. No familiar, há também fotos de Vlado criança. Entre as cartas expostas, há duas especiais. A primeira foi escrita pelo pai do jornalista, Zigmund Herzog, em 1968. Pode ser ouvida em um áudio com a voz do escritor Milton Hatoum. A mensagem de Zigmund traduz sua consciência social. Conta para o filho o drama de sua família durante a Segunda Guerra Mundial. O texto da carta descrevendo a realidade é uma referência para o olhar do jornalista. Outra carta foi gravada pela atriz Eva Vilma em 2009. Foi escrita por dona Zora, mãe de Herzog, em 1978. “Meu filho não voltará, mas seu bom nome não ficará manchado, seu desaparecimento não foi em vão para o País.” A carta foi endereçada ao juiz Márcio José de Moraes, que, na época, enfrentou a ditadura admitindo que o jornalista não havia se suicidado, como sustentavam os militares, mas morreu sob tortura.

Os curadores do Itaú Cultural e do Instituto Vladimir Herzog tomaram o cuidado de não expor as imagens do jornalista morto. A mostra destaca as impressões da luta que continua. As reportagens, os textos no jornal O Estado de S. Paulo, no final da década de 1950, e a sua produção na revista Visão também estão na exposição. Os visitantes fazem questão de ler. São textos fundamentados e ainda atuais. Parecem descrever a realidade de hoje, como a manchete “A crise da cultura brasileira”, escrita por Herzog e pelo jornalista Zuenir Ventura. O texto logo abaixo da manchete anuncia: “Alguns sintomas graves estão indicando que, ao contrário da economia, a nossa cultura vai mal e pode piorar se não for socorrida a tempo. Quais são os fatores que estariam criando no Brasil o chamado vazio cultural?”.

A paixão de Vlado pelo cinema e o sonho interrompido de filmar o projeto Canudos destacam-se na mostra. O público pode apreciar Marimbás, seu primeiro e único documentário, de 1960. Os pesquisadores mapearam também a participação do jornalista na Cinemateca Brasileira, na série de documentários Caravana Farkas, coordenada pelo fotógrafo Thomas Farkas.

“Quando foi morto, ele estava pronto”, diz Clarice ao falar do futuro de Vlado como cineasta. Na época, ele trabalhava na pesquisa do roteiro do filme sobre Canudos e Antônio Conselheiro. Ficou várias semanas no sertão da Bahia, fotografando e conversando com os sobreviventes. Um roteiro que deixou no horizonte. “Se alguém ainda teria a ideia de filmar? Não sei. Quem sabe?”, diz Ivo Herzog.

 A Ocupação Vladimir Herzog está no Itaú Cultural, na avenida Paulista 149, Piso 2, próximo à Estação Brigadeiro do Metrô, de terça a sexta-feira, das 9h às 20h (permanência até as 20h30), e aos sábados, domingos e feriados, das 11 às 20 horas. Classificação indicativa: 12 anos. Mais informações pelos telefones (11) 2168-1777. Em cartaz até 20 de outubro.

 

As lições de Herzog estão no Jornalismo da USP

Na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Vladimir Herzog é uma referência como professor e jornalista. Entre os amigos que o acompanharam tanto nas redações como nas aulas na USP está Cremilda Medina. O Jornal da USP registra o seu depoimento, que resgata também as “tempestades” do período da ditadura, que culminou com a morte de Vlado. Traz ainda o depoimento do então estudante Rodolfo Carlos Martino, hoje professor e jornalista graduado pela ECA, que lembra as lições do mestre para os jovens jornalistas.

Páginas de jornais da época da ditadura militar fazem parte da ocupação - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 Cremilda Medina, jornalista e professora de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – “Saúdo a atual exposição de vida em homenagem a Vlado (1937-1975), porque a crueldade da morte é uma ferida para não se revolver. E, nessas iniciativas que relembram a presença entre nós, posso testemunhar o Vladimir Herzog na direção do telejornalismo da TV Cultura de São Paulo. Um ano antes do fatídico 1975, entrei na redação como editora de reportagens especiais, a convite de Walter Sampaio (1931-2002). Já então se anunciavam tempestades para o primeiro semestre do ano seguinte, quando Sinval Medina foi cassado na USP e saímos em sua solidariedade. Walter Sampaio, então chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da USP, Paulo Roberto Leandro (1948-2015) e eu. Deixamos quatro vagas na docência da ECA (uma delas foi ocupada por Vlado.)

Quando Walter Sampaio, pioneiro do telejornalismo no Brasil, foi substituído pelo já experiente jornalista Vladimir Herzog na Cultura, eu imaginava que logo perderia, para começar, o cargo de editora de Especiais, o que seria normal em troca de equipes. Mas não. O convívio com a chefia e outros editores de sua confiança correu com naturalidade e camaradagem.  Até outubro de 1975, os oito minutos de especiais que editava para o telejornal da noite mobilizavam a manhã e a tarde com prazerosa pesquisa, pauta, captação da reportagem e edição, em que frequentemente Vlado participava com solidário interesse jornalístico. Compartilhávamos ousadias estéticas na composição do “documentário” do dia. Ele, com sua experiência da BBC, e eu, com a prática da reportagem interpretativa que desenvolvera na pesquisa A Arte de Tecer o Presente (registrada em meu primeiro livro, em 1973), fazíamos verdadeiros debates sobre o aprofundamento jornalístico em tempos de censura e ameaças físicas de repressão.

Foi tal a interação entre o cargo de editora de temas nacionais e a chefia do telejornalismo que Vlado encaminhou uma proposta de aumento salarial, que seria muito bem-vindo no meu orçamento. Ao receber a resposta das autoridades superiores, ele me chamou no seu modesto gabinete e, entre perplexo e preocupado, me perguntou o que acontecera comigo politicamente, pois recebera de volta do Palácio dos Bandeirantes não a aceitação do aumento, mas a imediata ordem de demissão. Trocamos informações a respeito dos acontecimentos de abril e maio de 1975 e o que sobressaía era a primeira greve universitária nacional após 1968, que se iniciara na ECA com a cassação de Sinval Medina (tema já relatado à Comissão da Verdade da USP). Flash inesquecível: Vlado, ao executar a ordem superior, põe as mãos na cabeça, olha pra mim com tristeza e diz entre dentes: ‘Desconfio que este é o primeiro golpe de outros que virão’.

Pouco mais de uma semana depois, Vladimir Herzog seria assassinado nos porões do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo, órgão de repressão da ditadura.

Ainda desempregada, acompanharia a multidão da Praça da Sé na histórica Missa Ecumênica, no mesmo sentimento de dor coletiva e, em particular, como jornalista e colega de trabalho de 1974 a 1975, com uma ferida a cicatrizar.”

A Ocupação Vladimir Herzog, no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 Rodolfo Carlos Martino, professor e jornalista – “Lembro que soube da morte de Vladimir Herzog após assistir ao espetáculo Brasileiro, Profissão Esperança, de Vianinha. Os atores Paulo Gracindo e Clara Nunes não se mostravam confortáveis em cena. Estavam visivelmente emocionados. Havia um clima de profunda tristeza e, diria, indignação nas falas de cada um. Imaginávamos, na plateia, que algo não estava nos conformes, mas não sabíamos exatamente o quê. Ao fim da sessão, os aplausos.

As cortinas se fecham. Tornam-se a abrir e os protagonistas curvam-se em agradecimento. Clara Nunes não contém o choro. Paulo Gracindo dá um passo à frente e nos informa sobre a triste notícia: ‘O jornalista Vladimir Herzog morreu hoje no DOI-Codi em São Paulo’.

Herzog, o nosso professor de Telejornalismo, editor responsável pelo Jornal da Cultura, que ia ao ar tarde da noite. Mesmo assim, chegava cedo na USP para as primeiras aulas da manhã. Exigia o mesmo comprometimento por parte dos alunos.

Recordo o dia em que nos pautou para um trabalho no fim de semana. Um grupo de alunos ameaçou reclamar. Herzog não deixou por menos. Avisou: ‘Quem quiser ser jornalista tem de encarar os desafios que a profissão nos impõe. Se não for assim, é melhor procurar outra coisa para fazer na vida’.

Falou e disse.

Não havia formalismo nem pose de dono da verdade. Apenas nos deu a exata noção do que deveria ser um dos pilares do ofício e que, decididamente, não estava ali só de passagem…”

Livros sobre Vladimir Herzog em exposição na ocupação - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Fotos feitas por Herzog

Espaço na ocupação com fotos produzidas por Herzog - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Foto: Vladimir Herzog / Acervo Instituto Vladimir Herzog
Foto: Vladimir Herzog / Acervo Instituto Vladimir Herzog
Foto: Vladimir Herzog / Acervo Instituto Vladimir Herzog
Foto: Vladimir Herzog / Acervo Instituto Vladimir Herzog

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