Que impactos a pandemia teve na sociedade e na política brasileira?

A pesquisa mundial Valores em Crise é tema do novo dossiê da “Revista USP”, que será lançada na segunda-feira, dia 13, às 9 horas, durante seminário on-line

 09/12/2021 - Publicado há 2 anos
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Foto extraída da Revista USP, nº 131

 

A tragédia mundial gerada pela crise do coronavírus levou a World Values Survey Association a formular o projeto Valores em Crise, estabelecendo um consórcio de pesquisadores de cerca de 20 países com o objetivo de estudar a permanência ou a mudança de valores morais durante o período da pandemia, do início à fase de recuperação. A principal questão era descobrir como a pandemia afeta os valores das pessoas, ou seja, se as pessoas mudam suas convicções e comportamentos sob o impacto da crise. Além disso, em quase todos os países do mundo, a pandemia colocou governos e lideranças políticas no centro das decisões para o enfrentamento da crise, gerando questões de relevância política que colocaram em xeque a democracia. Os resultados brasileiros dessa pesquisa estão no novo dossiê da Revista USP, Pandemia: Valores em Crise, organizado por José Álvaro Moisés (professor do Instituto de Estudos Avançados da USP) e Diego Moraes (pesquisador do Instituto Sivis), responsáveis pela aplicação da pesquisa no País. A edição 131 da publicação será lançada nesta segunda-feira, dia 13 de dezembro, das 9h às 12h30, durante seminário transmitido ao vivo pelo canal do IEA. A versão on-line da revista estará disponível na home do Jornal da USP também a partir do dia 13.

Segundo os organizadores, a pesquisa traz perguntas relevantes não só para a sociedade em geral, mas para o mundo da política. “Governos e lideranças políticas foram chamados – e cobrados – a dar explicação de seu desempenho em face dos desdobramentos da tragédia provocada pela pandemia, e isso assumiu uma conotação política extremamente relevante em alguns países, a exemplo do caso brasileiro, com as reações de seus cidadãos diante do governo do presidente Jair Bolsonaro, cuja orientação em face da crise foi caracterizada desde o início como ‘negacionista’ e responsável, em grande medida, por omissões que provocaram a morte de mais de meio milhão de vítimas do vírus”, afirmam na apresentação do dossiê. Isso ocorreu, como informam, em um contexto em que a maioria dos cidadãos brasileiros tem se pronunciado favorável ao regime democrático, mas, paradoxalmente, é extremamente crítica em relação a instituições fundamentais como o Congresso Nacional e os partidos políticos. “São sinais de como a cultura política vigente influencia a dinâmica de funcionamento da democracia brasileira. Nas democracias, com efeito, se a legitimidade for colocada em risco, aumentam as chances de as mudanças políticas violarem o Estado democrático de direito, seja a partir de revolução, de golpe ou de ações de desconstrução institucional, a exemplo do que líderes populistas têm feito em países como a Hungria e a Venezuela. Por isso, não espanta que o fenômeno das crises políticas e institucionais seja tão significativo para explicar o sucesso ou o fracasso dos regimes democráticos”, analisam.

José Álvaro Moisés – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Como afirma Moisés, em entrevista ao Jornal da USP, a importância desta pesquisa para um diagnóstico da saúde das democracias ao redor do mundo é enorme. “Já há alguns anos, diversos estudiosos têm apontado que vivemos num período de recessão democrática, com mais nações deixando de fazer parte do grupo de democracias liberais do que ingressando nele.” A pandemia e a crise do coronavírus introduziram uma nova variável nesta equação, o que, segundo ele, leva à seguinte pergunta: essa experiência dramática mais nos aproximaria ou mais nos distanciaria do regime democrático? “O que temos observado no mundo todo é que, infelizmente, a crise do coronavírus tem contribuído muito para o aumento das desigualdades, inclusive em termos de valores democráticos”, constata.

Moraes aponta que “países que tinham uma cultura democrática mais forte parecem tanto ter sido mais hábeis no enfrentamento da crise quanto ter renovado seus recursos cívicos com a pandemia, com maior solidariedade e confiança entre as pessoas. Já países deficitários em termos de cultura democrática parecem ter sofrido mais para endereçar os desafios da pandemia, com um adicional de perda cívica nos momentos mais conturbados da crise: por exemplo, com maior desconfiança das instituições e maior disposição dos cidadãos para relativizar a democracia a fim de resolver os problemas”.

 

Processo da pesquisa

A parceria entre o Instituto Sivis e o IEA/USP surgiu a partir de um convite pessoal a Moisés para integrar a equipe, mas, como conta o próprio professor, a pesquisa tem relação direta com o foco do Grupo de Pesquisa da Qualidade da Democracia do instituto, coordenado por ele, e por isso foi estabelecida uma colaboração para a análise dos dados e produção de conteúdo acadêmico e científico. Moisés ainda informa que o dossiê da Revista USP é o primeiro produto desta parceria, que também contou com a contribuição de diversos pesquisadores de renome nos estudos de democracia e cultura política brasileira.

Foto extraída da Revista USP, nº 131

 

Além disso, apesar do núcleo comum de questões sobre a experiência das pessoas com a pandemia e seus valores morais, os diferentes grupos de pesquisa de cada país também são livres para introduzir novas questões e direcionar a pesquisa para determinada área, como assegura Moraes. “No caso da pesquisa brasileira, por exemplo, há um maior enfoque em questões-chave para entender a valorização da democracia entre os cidadãos, já que este é um tema central para o Instituto Sivis e para a agenda de pesquisa do Grupo de Pesquisa da Qualidade da Democracia do IEA/USP”, explica.

Metodologicamente, a pesquisa se vale da abordagem de painéis longitudinais a fim de investigar as mesmas pessoas nas diferentes etapas da pandemia. A primeira onda da pesquisa, realizada via painel on-line entre maio e junho de 2020, coletou um total de 3.543 respostas, e uma segunda onda, aplicada entre janeiro e fevereiro de 2021, obteve respostas de 1.929 indivíduos que já haviam respondido ao primeiro questionário, com uma taxa de retenção de 55%. Segundo Moraes, uma terceira onda foi aplicada no último trimestre de 2021, mas os dados não estão contemplados nesse dossiê. “Para que os resultados da pesquisa tivessem minimamente uma representatividade e capacidade de generalização para a população brasileira como um todo, utilizamos a abordagem de amostragem por cotas para garantir que algumas distribuições sociodemográficas básicas da sociedade brasileira fossem reproduzidas no nosso painel de respondentes. Para tanto, utilizamos as variáveis de sexo, escolaridade, faixa etária e região de moradia. Evidentemente, na primeira aplicação da pesquisa essas características sociodemográficas da população nacional estavam muito bem representadas no nosso painel, mas, na medida em que avançamos para as ondas seguintes, alguns indivíduos acabaram por deixar o painel por razões que fogem do nosso controle, o que gerou certo desbalanceamento de tais características. Contudo, isso já é algo esperado neste tipo de metodologia, e devo dizer que a taxa de retenção de respondentes que obtivemos no painel foi muito satisfatória, o que nos dá tranquilidade para fazer análises assertivas”, relata.

“Os resultados obtidos pela pesquisa são muito ricos e diversos”, afirma o professor da USP. Segundo Moisés, em termos gerais, alguns pontos que valem ser destacados são os seguintes: em primeiro lugar, embora em um primeiro momento estivesse prevalecendo a percepção de maior solidariedade entre as pessoas durante a pandemia, houve uma queda considerável do porcentual daqueles que veem mais solidariedade do que hostilidade entre as ondas da pesquisa – de 51,7% na primeira onda para 39,1% na segunda e 38,7% na terceira. “Como vemos em alguns artigos do dossiê, a questão do capital social e dos laços fortes entre as pessoas é fundamental para a vigência de uma cultura democrática. Neste sentido, parece que perdemos uma oportunidade de fortalecer estes laços na pandemia via ações mais sistemáticas da política pública e da sociedade civil”, revela.

Para Moraes, um outro aspecto que merece destaque é que a confiança nas mídias tradicionais experimentou uma leve queda na terceira onda da pesquisa, sendo que a visão de que mídias tradicionais e mídias sociais são igualmente confiáveis angariou maior adesão (mais de 50% da amostra na onda 3). Este dado, diz o pesquisador, aponta os desafios para os meios de comunicação mais tradicionais, como rádio e TV, que no passado exerciam um importante papel de guardiões das democracias.

Dossiê Pandemia

“Será que as crises, sobretudo essas de proporções gigantescas (malgrado a insistência fanfarrona nas cloroquinas e ‘gripezinhas’), têm mesmo esse poder de mudar os valores das pessoas, incluindo suas convicções, crenças, comportamentos?”, questiona o jornalista Jurandir Renovato no editorial da Revista USP. As respostas vêm em sete artigos que compõem o dossiê, e que serão apresentados durante o seminário, seguidos de debates entre os participantes e o público. Valores emancipatórios, personalidade e a pandemia de covid-19, de autoria de Ednaldo Ribeiro, Julian Borba e Lucas Toshiaki Archangelo Okado, que abre o dossiê, trata das prioridades valorativas individuais, além de mostrar como as diferenças de personalidade desempenham papel importante na forma como as pessoas lidam com mudanças. Na sequência, Valores morais e de autoexpressão: pós-materialismo em/na crise?, de Henrique Carlos de O. de Castro, Daniel Capistrano e Sofia Isabel Vizcarra Castillo, analisa o impacto da mudança nas condições de existência material (sanitárias e econômicas) causada pela pandemia de covid-19 na estabilidade dos valores materialistas e pós-materialistas no Brasil.

Foto extraída da Revista USP, nº 131

 

A vacinação é tema discutido por Lorena G. Barberia e Isabel Seelaender Costa Rosa em De que maneira a ideologia afeta a disposição em se vacinar contra o Sars-Cov-2?, mostrando que desde o início da pandemia de covid-19 houve grande interesse acerca do papel intermediário exercido pela política e da maneira pela qual ela afeta decisões governamentais e individuais sobre o desenvolvimento e a procura por vacinas, bem como da implementação da vacinação. Outro destaque da publicação, Confiança na mídia durante a pandemia de covid-19 no Brasil: adesão às mídias tradicionais e digital, aspectos socioeconômicos e a intersecção com a avaliação de governo, de Michele Goulart Massuchin e Emerson Urizzi Cervi, analisa a adesão às mídias tradicionais e digital, aspectos socioeconômicos e a intersecção com a avaliação de governo. Já A confiança em um governo de crise e retrocesso, de Rachel Meneguello e Fabíola Brigante Del Porto, discute “se e como” a experiência da crise sanitária provocada pela pandemia de covid-19 no Brasil, bem como a “resposta” à crise dada pelo governo Bolsonaro, altera a relação de confiança dos cidadãos com o governo.

Em Brasil pós-pandemia – Reconstruindo o capital social e uma cultura política assertiva, Marcello Baquero e Jennifer Morais examinam o impacto da pandemia na construção de capital social institucional negativo (governo-sociedade) e no tipo de cultura política que emergirá no futuro. E, fechando o dossiê, Sobre a fragilidade da democracia brasileira diante da crise do coronavírus, dos organizadores Diego Moraes e José Álvaro Moisés, reflete em que medida a legitimidade democrática no Brasil tem sido afetada pelas experiências econômicas e sanitárias com a crise pandêmica e o que esperar da qualidade da democracia brasileira no futuro próximo.

O seminário Impactos da Pandemia do Coronavírus será realizado na próxima segunda-feira, dia 13 de dezembro, das 9h às 12h30, com transmissão ao vivo pelo canal do IEA. Gratuito, sem necessidade de inscrição. Mais informações neste link.

 Ainda na Revista USP

Além do dossiê Pandemia: Valores em Crise, a Revista USP traz outras seções. A seção Textos abre com Marx, as classes sociais e o enigma do capítulo 52, por José Nun, advogado, escritor, ensaísta e ex-ministro da Cultura da Argentina (2004-2009), em que aborda o mistério “sempre renovado” sobre por que o escritor deixou inacabado, ao fim de somente quatro parágrafos, o capítulo sobre as classes sociais com o qual encerra o volume I de O capital. “Minha hipótese é que, precisamente ao começar a escrever o capítulo sobre as classes sociais, percebeu que não poderia ignorar a existência de um problema que questionava uma parte central de sua estrutura teórica e que não conseguiu resolver porque, tal como estava apresentado, não tinha solução”, afirma Nun, demonstrando seu argumento ao longo do ensaio.

Islamofobia de gênero e reflexos na saúde mental de mulheres muçulmanas é assunto de Isabella Macedo e Francirosy Campos Barbosa. Pouco estudada no Brasil, a islamofobia é um fenômeno crescente no mundo ocidental e também no Brasil, e tem sido foco de pesquisas do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias), do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. Segundo as autoras, a intolerância anti-Islã está presente em território brasileiro tanto em espaços públicos como privados e principalmente em redes sociais. “Há um desconhecimento sobre a religião islâmica por grande parte da população brasileira, que é fortemente influenciada por grandes mídias, que costumam tratar a religião muçulmana negativamente, contribuindo para o estabelecimento e perpetuação de estereótipos sobre os muçulmanos”, apontam.

A seção Arte, que fecha a edição da Revista USP, reúne os trabalhos de Regina Silveira, artista e também professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Com texto de Leila Kiyomura e fotos de Atílio Avancini, A arte que resiste ao poder e à violência apresenta sua trajetória de mais de seis décadas, que “vai pelo tempo, registrando o golpe militar de 1964, os 21 anos da ditadura e o poder armado de hoje, que se apropria e destoa do verde e amarelo”; em paralelo ao ensino do “infinito das cores em preto-e-branco, sombras e luz, realidade e fantasia, percepção e criatividade”.


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