“Multiartista, compositor, escritor, voz de forte e sutil presença no cenário político-cultural, Chico desenhou retratos do Brasil em som, letra e gesto.” É assim que o editorial da nova edição da Revista do IEB – publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – se refere a Francisco Buarque de Holanda. A nova edição da revista – de número 88 – traz um dossiê sobre o cantor, compositor, dramaturgo e escritor, por ocasião dos seus 80 anos, completados em junho passado. Com sete artigos de diferentes autores, o dossiê analisa, de forma crítica, a produção musical, literária e teatral de Chico Buarque. Lançada no dia 6 passado, a publicação está disponível gratuitamente, na íntegra, neste link.
Retratos do Artista: Chico Buarque, 80 Anos é o título do dossiê publicado na nova edição da Revista do IEB, organizado por Daniela Vieira dos Santos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcos Lacerda, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Walter Garcia, da USP. Os sete artigos do dossiê — de autores ligados a universidades de São Paulo, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul – mostram como as obras de Chico Buarque, tanto no período da ditadura civil-militar (1964-1985) como na atualidade, dialogam entre si e com a sociedade.
O primeiro artigo, “Que tal um samba?” e suas camadas, é um bom exemplo do que o dossiê se propõe a fazer. Ao fazer o que declara ser uma “leitura ideológica” de Que tal um samba? (Chico Buarque e Hamilton de Holanda, 2022), a professora Adélia Bezerra de Menezes, da USP, compara essa canção com outra composição de Chico Buarque, Quando o Carnaval chegar (1975). Para ela, Quando o Carnaval chegar é uma “canção de repressão”, e visa a um futuro de liberdade em que o que é proibido não será mais — assim como canções famosas de Chico Buarque no contexto da ditadura, como Cálice (1973) e Apesar de você (1970). Que tal um samba?, por sua vez, se propõe a sair de uma situação negativa e explora o que pode ser feito mesmo diante desse cenário.
A canção de 2022 relembra, também, a ligação entre elementos relacionados à alegria e à cultura do brasileiro, como o samba, o carnaval e o futebol, e a contribuição dos afro-brasileiros para essa cultura, sem deixar de pontuar que essa contribuição nasce em um contexto de escravidão. A autora enfatiza que “nada do que Chico escreve é por acaso”, ao explicar que o “tempo feio” ao qual a letra da música se refere remete ao governo Jair Bolsonaro (2018-2022), à pandemia de covid-19 e ao genocídio dos povos indígenas, eventos recentes vividos pelo País. O artigo se propõe a assumir que o Brasil vive, sim, uma realidade diferente daquela da década de 1970, mas que ainda há muitos problemas, inclusive de origem colonial — como o racismo sistêmico, com foco no Rio de Janeiro —, a serem resolvidos, sendo necessário “ir à luta”, como na letra da canção.
O artigo seguinte, Ficção, história e sociedade na literatura de Chico Buarque (uma sinopse), sai da música e vai para a literatura. Em sua análise, Edu Teruki Otsuka, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, destaca o fato de que a obra literária de Chico Buarque tem como rotina, desde os anos 1990, apontar para a fragmentação e a despolitização da sociedade brasileira como um todo. Na visão de Otsuka, Estorvo (1991) mostra como uma “sociedade que não é mais tensionada internamente por um impulso transformador” se ajusta “ao horizonte raso da realidade existente”, concluindo que “a passagem histórica da exceção da ditadura para a chamada normalidade democrática foi acompanhada de um significativo processo de despolitização”.
O comportamento da sociedade brasileira segue sendo tema da literatura de Chico Buarque em Eu, o outro e “Essa gente”: um dilema de identidade no romance de Chico Buarque, por Lucas Faial Soneghet, pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sob a ótica do romance Essa Gente, de 2019, Soneghet faz uma análise profunda de suas personagens para aplicar o conceito de “desfaçatez de classe” — originalmente cunhado pelo crítico literário Roberto Schwarz para se referir a Brás Cubas, personagem de Machado de Assis — a Duarte e Maria Clara, protagonistas do romance.
A trama de Essa gente aborda, entre outras questões do Brasil contemporâneo, a ascensão do conservadorismo e do credo evangélico pelas classes mais populares e o lugar da classe média na sociedade. Maria Clara, por exemplo, sente-se inferior ou superior às pessoas conforme a classe social que elas ocupam, enquanto Duarte não se sente pertencente nem ao ambiente da elite nem ao da periferia. Diante de “irrupções autoritárias que cortam períodos de avanço democrático”, Soneghet reforça que acaba não havendo, necessariamente, uma oposição entre conservadores e progressistas. Esse cenário enfatiza uma frustração que é de Chico Buarque e de muitos integrantes da classe artística de sua época, que viram seu projeto estético político falhar e a busca por transformações significativas deixar de ser o foco, em todas as classes. Nesse contexto, o racismo é presente socialmente, ainda que “à moda brasileira: eufemizada e sugerida”, e ignorado conforme a conveniência e o status social ou profissional de quem o pratica. Duarte, por exemplo, não se vê como “mulato” ou “afrodescendente” devido à posição social que ocupa, e só é reconhecido explicitamente assim após sua morte.
O País continua em foco no artigo “Iracema voou” para a América… e o Brasil?. No texto, Daniela Vieira dos Santos, da Unicamp, analisa Iracema voou, segunda das 12 faixas do álbum As cidades, lançado por Chico Buarque em 1998. A canção narra a trajetória de Iracema, mulher cearense que foi para os Estados Unidos em busca de melhores condições de vida — algo que, devido à crise econômica no Brasil, foi bastante comum nos anos 1990. Chico Buarque conta essa história de forma crítica: estabelecendo um diálogo com Iracema, romance de José de Alencar de 1865, que conta a história de uma mulher indígena que se envolve com um colonizador português e tem um filho com ele, o compositor explora as diferentes formas de dominação às quais as duas Iracemas se submetem.
O fato de que a Iracema emigrante não fala o inglês, tem um emprego precarizado e ainda assim quer ficar nos Estados Unidos é, na análise de Daniela, um retrato social de muitos brasileiros que reproduzem os sonhos da classe média, estimulados por produtos midiáticos, sem necessariamente ter meios para alcançá-los. “Iracema ‘voa’ não para se encontrar com a modernidade já consolidada dos países centrais, mas para se colocar como muitos daqueles que, desajustados e subalternizados, recebem a parte que lhes cabe’’, escreve.
O teatro é tema de A arte como testemunho: texto, cena e contexto em “Roda viva” (1967-1968). Nesse artigo, a professora Miliandre Garcia, da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), esmiúça a primeira e mais marcante peça escrita por Chico Buarque: Roda viva. A produção, que fugia aos padrões de teatro engajado da época por seu caráter de “comédia musical”, é citada como um “risco” corrido por Buarque, que, àquela altura, já era um cantor reconhecido. Roda viva aborda a hipocrisia de setores conservadores da sociedade brasileira, que escolheram, ao longo do processo civilizador, ignorar a existência de certas formas de opressão por conveniência própria. A escolha pelo teatro, em vez da música ou da literatura, não foi à toa. Segundo a análise de Miliandre, o teatro do século 20 cumpriu o papel “de expressão genuína da identidade nacional e veículo de comunicação com o público mais amplo”, papel que a literatura havia cumprido no século anterior. A comédia musical simboliza, então, o diálogo presente entre música popular e teatro, ainda que com objetivos diferentes.
Se com a música a busca era por ter um “público mais amplo, potencializado pela aproximação com a televisão, porém não necessariamente crítico, no teatro Chico Buarque buscava um público mais seleto, porém politizado”. Partindo da ideia de criticar a conversão do “povo” em “público” — uma vez incorporado à sociedade do consumo e não mais agente de transformação social —, Chico Buarque escreveu uma peça que, na visão de Miliandre, tem elementos da mitologia grega, bem como da Via Sacra de Jesus Cristo, além de criticar a indústria do consumo e a alienação cultural do brasileiro em um contexto de ditadura e de influência estadunidense. Esse perfil, à época de lançamento da peça, fez com que Roda viva fosse alvo de críticas conservadoras — a maioria delas direcionadas ao diretor da peça, José Celso Martinez Corrêa —, materializadas em agressões físicas a membros do elenco. A professora ressalta, no entanto, que incomodar era um dos planos do diretor com a produção.
Outro reflexo da modernização brasileira está presente no samba-canção As vitrines, do álbum Almanaque (1981). Elaborada por meio de relatos de devaneios, a composição passa tanto pela poesia popular como pela poesia moderna. Nas palavras de Walter Garcia em Um lírico no desvario do capitalismo: “As vitrines”, de Chico Buarque, “o lirismo de As vitrines é a expressão não exatamente daquilo que o sujeito vê, mas sim do que imagina, tema ou deseja; de coisas que o sujeito se põe a criar a partir do momento em que a mulher, aos seus olhos, sumiu encoberta por letreiros publicitários, um ‘signo associado ao mesmo tempo à modernidade e ao consumo’”. As vitrines serve como mais um exemplo de que, mesmo diante da censura, cinema, editoras e indústrias participaram do processo de expansão cultural.
A literatura volta a ser tema de discussão no artigo As pontas esgarçadas da vida em “Órfãos do Eldorado e Leite derramado”, de Tatiana Prevedello, pós-doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nele, Tatiana estabelece uma comparação entre duas obras, Órfãos do Eldorado (Milton Hatoum, 2008) e Leite derramado (Chico Buarque, 2009). Entre as semelhanças está a presença de um narrador pouco confiável, voz masculina cuja família um dia teve poder político, além do uso de outros recursos literários que geram incerteza no leitor.
Além do dossiê sobre Chico Buarque de Holanda, a nova edição da Revista do IEB explora outros assuntos nas seções Artigos, Criação, Documentação e Resenhas.
A seção Artigos tem três textos: A questão social como investimento, empresas e políticas sociais no Brasil (por Livia de Tommasi, da Universidade Federal do ABC), Os fornos quentes, de Reinaldo Guarany Simões: sobrevivência, exílio e melancolia (por Marcos Aparecido Lopes, da Unicamp, e Rogério Silva Pereira, da Universidade Federal de Grandes Dourados e da PUC-Minas), e Arte e ofício: a trajetória do escultor e fundidor Roque de Mingo em São Paulo na primeira metade do século XX (por Rafael Dias Scarelli, da USP). O primeiro discute as políticas sociais no setor empresarial, o segundo estuda o romance autobiográfico Os fornos quentes, do ex-guerrilheiro Reinaldo Guarany Simões, exilado na Alemanha Ocidental nos anos 1970, e o terceiro analisa a forma como o escultor e fundidor Roque de Mingo (1890-1972) se inseriu no campo artístico paulistano saindo de uma origem humilde, no início do século passado.
A revista traz, ainda, um ensaio sobre uma obra recém-descoberta de Graciliano Ramos, Os filhos da coruja (1923), escrito pelo professor Thiago Mio Salla, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que faz um diálogo entre o livro e propostas pedagógicas do educador Paulo Freire (1921-1977).
Na seção Resenhas, a revista traz dois artigos, um sobre o livro O realismo na literatura juvenil: Odette de Barros Mott e a denúncia social (Lenice Bueno, 2023), escrito por Carlos Pires, da UFRJ, com enfoque na “identificação e articulação das principais linhas de força da literatura contemporânea para crianças e jovens no Brasil”, e outro sobre Anos de chumbo e outros contos (Chico Buarque), 2021. Assinado por Juliane Vargas Welter, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), essa resenha sobre o livro de Chico Buarque destaca os principais pontos da estreia do escritor no gênero literário curto.
A nova edição da Revista do IEB (número 88), que traz o dossiê Retratos do Artista: Chico Buarque, 80 Anos, está disponível gratuitamente, na íntegra, neste link.
*Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado