Volta, 2011, xilogravura em cores – Obra de Ana Calzavara – Foto: Reprodução
…
As paisagens em movimento que Ana Calzavara observa das janelas do ônibus, do ateliê, da travessia pelas montanhas, mares, cidades, seguem um caminho infinito. Transforma as cores, as linhas em gravuras que imprimem no espectador o gesto do artista despertando a sensibilidade para as nuances das lembranças, a contemplação do cotidiano e a arte do invisível.
São essas imagens que a artista reúne no livro Ana Calzavara: Entremeios, da Editora da USP (Edusp). A edição é a 23ª da coleção Artistas da USP, que destaca importantes nomes da arte contemporânea.
.
“Cabe ao artista um papel de vigília entre o que se projeta e o que se pode concretizar, numa espécie de arbitragem entre o excessivamente vago do plano das ideias e a carnalidade cheia de fulgor dos pigmentos e instrumentos de trabalho”, observa Claudio Mubarac, artista e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que assina a apresentação do livro. “Assim, o patetismo dos materiais pode transformar em figuras aquilo que a visibilidade quer fazer perdurar. Ana Calzavara: Entremeios, por intermédio das modelagens do desenho e da cor, inicia-se como uma educação pela fresta, numa tentativa de fazer das obras armadilhas para os sentidos.”
.
Entremeios refere-se a um modo de olhar,
indica um lugar, um estar, um percurso…
.
Gravuras, pinturas, fotografias… O leitor folheia o livro e se depara com as obras como se estivesse caminhando entre diversos lugares e tempos. Como bem lembra Mubarac, elas são armadilhas para os sentidos. E a própria Ana Calzavara define a sua arte e orienta o leitor/espectador no subtítulo do livro. “Entremeios refere-se a um modo de olhar; indica um lugar, um estar, um percurso: ‘estado intermediário entre dois extremos; espaço, coisa ou tempo entre limites’. Portanto, entremear implica ‘pôr de permeio’, misturar, intervalar”, explica.
.
Ana fez mestrado e doutorado em Poéticas Visuais na Escola de Comunicações e Artes da USP. Teve a orientação de mestres como Mubarac, Evandro Jardim, João Luiz Musa, Paulo Pasta, Jorge Coli, Leon Kossovitch, Rodrigo Naves, Sônia Salzstein. Mas o olhar para a arte começou quando era criança, com a delicadeza da obra Cais com Homens Descarregando Barcas de Areia, pintada em 1888 por Van Gogh. Uma passagem que a artista conta no livro: “Uma das lembranças mais vívidas de minha infância – e se a retorno aqui é porque penso em seus desdobramentos no presente – é uma imagem com a qual convivi durante anos e, embora gostasse muito, desconhecia sua procedência. Ela ficava na parede bem à frente do piano de casa e, enquanto tocava, costumava olhá-la. Ela me era particularmente útil no estudo árido das escalas ou em trechos mais árduos de algumas partituras, quando se tornava consolo e incentivo. Durante anos, essa rotina repetiu-se”.
.
Só tempos depois, a artista identificou aquela reprodução perdida nas mudanças de casa da família em um livro sobre Van Gogh. A cor, as pinceladas, as nuances da paisagem teceram, entre outras memórias, a história dos entremeios de suas gravuras, pinturas, fotos. “A experiência de ter convivido quase diariamente e durante muito tempo com uma determinada imagem e ter criado com ela um laço afetivo foi também, acredito, determinante na minha escolha profissional”, conta. “Acho que o que eu sempre procurei como artista, sobretudo ao pintar, era encontrar a mesma intensidade, presença e beleza contidas nessa imagem que me acompanhara na infância e juventude.”
.
Não seria o próprio ato de olhar o horizonte um desejo não revelado
de perseguir aquilo que de nós inevitavelmente se perde?
.
O livro reúne textos dos críticos Cauê Alves e Alberto Martins e uma entrevista a Fabrício Lopes. A artista também escreve as suas impressões sobre a arte e o mundo que refletem em seu processo criativo. Cita a infinitude que Petrarca descobre ao seu redor ao subir o monte Ventoux. “Não seria o próprio ato de olhar o horizonte um desejo não revelado de perseguir aquilo que de nós inevitavelmente se perde?”, questiona. “Vestígios, indícios. O fora de foco. Aquilo que meus olhos e minha memória já não alcançam.”
.
As imagens, no entanto, desvelam esse horizonte. Têm a sua força narrativa como os trilhos que cortam os caminhos do mar na xilogravura de 2009 ou as montanhas tingidas com o vermelho do sol ou o azul do anoitecer nas paisagens sobre madeira de 1995. Ou no autorretrato Você pode ver em seus olhos. Uma imagem silenciosa marcada pelas linhas da xilogravura. Um rosto que se revela na arte contemporânea brasileira.
….
…
.
Ana Calzavara: Entremeios, 23º livro da coleção Artistas Brasileiros da USP, Editora da USP (Edusp), 252 páginas, R$ 72,00.
…