"Elas nunca vão para Moscou porque, se forem, elas matam Moscou. Chegar a Moscou é a morte”, comenta a diretora Aline Filócomo - Foto: Reprodução/MaGon

"Elas nunca vão para Moscou porque, se forem, elas matam Moscou. Chegar em Moscou é a morte”, comenta a diretora Aline Filócomo - Foto: Reprodução/MaGon

O mundo do trabalho hoje à luz das ideias de Tchékhov

Em cartaz no Teatro da USP, “Moscou para Principiantes” se inspira em “As Três Irmãs” para refletir sobre expectativas de vida

 23/08/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Luiz Prado

Arte: Adrielly Kilryann

No amanhecer do século 20, três irmãs sufocadas pelo provincianismo da Rússia czarista sonhavam com o retorno para Moscou. Mais de cem anos depois e com um oceano de distância, três mulheres sobem a um palco no Brasil para refletir sobre suas próprias Moscous particulares, estabelecendo uma (não tão) imprevisível conexão entre seus sonhos e contextos. Esse nexo de tempos, anseios e histórias de vida é o que propõe Moscou para Principiantes, espetáculo escrito e dirigido por Aline Filócomo, que faz temporada no Teatro da USP (Tusp) até 18 de setembro.

Inspirada em diálogos de As Três Irmãs, texto de 1900 de Anton Tchékhov (1860-1904), a produção de Aline costura e embaralha trechos da obra do dramaturgo russo com diálogos de dois grupos de mulheres: três artistas de teatro e três aposentadas na terceira idade, que ganham vida nas atuações de Natacha Dias, Paula Arruda e Rita Grillo. Com concepção de cenografia, figurino, iluminação e sonoplastia que remete às bonecas russas conhecidas como matrioskas – famosas por abrigarem em seus corpos versões cada vez menores de si mesmas –, o espetáculo mostra ao público tríades que carregam dentro de si outras tríades: três tempos, três conjuntos de mulheres e três vozes femininas distintas.

Cenografia, figurino, iluminação e sonoplastia da peça remetem às bonecas russas conhecidas como "matrioskas" - Foto: Divulgação/MaGon

De acordo com Aline, que é formada em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e integra a Cia Hiato, as primeiras ideias para a peça surgiram em 2015. Ao se reunir com Natacha, Rita e a também atriz Fernanda Stefanski para a elaboração de um novo projeto, o texto de Tchékhov entrou na pauta. Logo, o sonho das irmãs Olga, Irina e Macha de voltar para Moscou começou a mostrar paralelos com suas próprias expectativas. “Qual seria a nossa Moscou?”, conta a diretora. “Como chegar lá e o que nos motivava a trabalhar, trabalhar e trabalhar? Estávamos revendo nossas carreiras e anseios profissionais, buscando redirecionar a vida para o que nos importava. A identificação estava muito clara.”

Aline teve a ideia de registrar e transcrever as conversas do grupo e, com o tempo, percebeu que as discussões sobre projetos profissionais e perspectivas pessoais formavam a própria estrutura para uma peça. “Enquanto digitava essas transcrições, notei que cometia vários erros ortográficos e que algumas dessas palavras faziam sentido, geravam outros significados. Comecei a não corrigir mais, deixar todos os erros para ver no que ia dar, e o resultado ficou muito interessante. As palavras são ressignificadas, recontextualizadas e ampliam o sentido do texto. Foi um jogo bem instigante para mim e acho que é interessante também para o público.”

Essa, entretanto, foi apenas a primeira etapa do processo dramatúrgico, conforme explica a diretora. O encaixe definitivo entre suas expectativas e a obra de Tchékhov veio durante uma oficina que ministrou para mulheres aposentadas da terceira idade. Utilizando o mesmo procedimento de estimular conversas e depois transcrevê-las, Aline encontrou o que considera ser a chave de seu texto.

Aline Filócomo - Foto: Reprodução/Instagram

A diretora Aline Filócomo - Foto: Reprodução/Instagram

“Até aquele momento, sentia que Tchékhov estava ali, mas faltava alguma coisa. Elas me deram a chave que estava precisando, uma frase que se aproximava do universo do autor: ‘o hoje eu faço amanhã’. Isso amarrou o texto”, comemora a diretora. Aline explica que, a partir da frase, sua compreensão das motivações das irmãs russas ficou mais clara, dando novo sentido para sua dramaturgia.

“Por que elas não vão para Moscou? É só pegar o trem”, instiga a diretora. “Uma das mulheres da oficina me disse: ‘Antes eu queria fazer tudo ao mesmo tempo, mas agora sempre deixo uma coisa para amanhã, porque é uma maneira de permanecer mais um pouquinho aqui’. Isso arrematou. Esse ‘hoje eu faço amanhã’ de forma nenhuma é algo pessimista. Não leio Tchékhov assim. Elas nunca vão para Moscou porque, se forem, elas matam Moscou. Chegar a Moscou é a morte.”

Essa experiência com as mulheres da terceira idade, continua Aline, veio ao encontro das inquietações das artistas, pautadas pela ideia de que sobreviver do trabalho se tornou, hoje, sobreviver ao trabalho. “Estamos em um momento de muita produção. É produzir, produzir, produzir. É trabalhar, trabalhar, trabalhar. Mas precisamos pensar qual é o tipo dessa produção, para quem ela é, a quem serve. Como artistas, acabamos entrando na lógica do capitalismo. Não deveríamos fazer o contrário? Não sei responder, essa é uma questão para mim também.”

Passado, presente e futuro se contêm na peça inspirada em Tchékhov - Foto: Reprodução/MaGon

Todas essas inquietações – das artistas, das aposentadas e das três irmãs – compõem um texto em camadas que ganha vida na encenação a partir da ideia das matrioskas. Assim como uma boneca está dentro da outra, passado, presente e futuro se contêm no trabalho das atrizes, que fluem entre esses múltiplos papéis, entre diálogos de Tchékhov e as transcrições feitas por Aline. “Às vezes vemos as três irmãs, as três idosas ou as três atrizes batendo um papo sobre o projeto. As fronteiras estão borradas, como a figura das bonecas russas.”

A montagem no Tusp marca a estreia nos palcos de Moscou para Principiantes, que já havia tido sua dramaturgia publicada em 2020 pela Editora Javali. Acompanhando a temporada, nos dias 26 de agosto e 2 de setembro, após as apresentações, a pesquisadora Dedé Pacheco, doutora em Artes Cênicas pela ECA, conduzirá duas conversas com os espectadores, estimulando os olhares sobre a obra.

“Sinto que a peça requisita o público para algum lugar. Ela o coloca para trabalhar, no bom sentido”, pontua Aline.

A peça Moscou para Principiantes fica em cartaz até 18 de setembro, de quinta-feira a sábado, às 20 horas, e domingos, às 18 horas, no Teatro da USP, o Tusp (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, em São Paulo, próximo às estações Higienópolis-Mackenzie e Santa Cecília do Metrô). Classificação: Livre. Duração: 55 minutos. Ingresso: R$ 20,00 (inteira). Ingressos podem ser obtidos neste link ou na bilheteria do Tusp, com antecedência de uma hora
Mais informações: telefone (11) 3123-5222.


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