O litoral do Brasil dos anos 30 na visão de um viajante alemão

Lançado pela Editora da USP, “Viagem Atlântica” traz as anotações de viagem do escritor Ernst Jünger, que visitou o País em 1936

 24/08/2022 - Publicado há 2 anos
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Fotomontagem com a capa do livro Viagem Atlântica, de Ernst Jünger, publicado pela Editora da USP (Edusp) – Arte: Ana Júlia Maciel/Jornal da USP

Em 1936, a bordo do navio Monte Rosa, o escritor alemão Ernst Jünger (1895-1998) percorreu o litoral brasileiro, desembarcando em vários portos e visitando as cidades portuárias. As anotações que fez em seu diário de viagem estão registradas no livro Viagem Atlântica, que a Editora da USP (Edusp) acaba de publicar. Publicado originalmente em 1947 com o título Atlantische Fahrt, o livro ganha agora a primeira tradução para o português, assinada por Marcos Ribeiro, que também é o autor da apresentação.

Embora curto — são apenas 110 páginas —, o livro de Jünger chama a atenção pelas discussões bastante atuais que propõe. Por exemplo, o escritor alemão critica a mecanização da memória proporcionada pela fotografia. “As fotografias e as filmagens dos passageiros chegam ao ponto culminante no momento em que o navio passa muito perto da margem, quase a tocando. Durante esse momento, que deveria ser inteiramente dedicado à união do olho com as coisas, as pessoas se ocupam com tais esquemas de captura e seus aparelhos”, declara o autor.

Ernst Jünger – Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons

Ao desembarcar no Pará, Jünger reflete sobre questões raciais no País após observar os diferentes tons de pele dos trabalhadores pelas ruas de Belém. O alemão nota que as pessoas com cargos menos respeitados possuíam, no geral, pele mais escura. “Aqueles que portavam ferramentas eram de um negro ebâneo, enquanto aqueles que os supervisionavam exibiam uma cor que correspondia a algo como um bom café com leite. Significativamente mais claro era um funcionário que por momentos inspecionou o estado do trabalho, e provavelmente ainda mais claros aqueles que se sentavam nos escritórios”, diz. “A propósito, o termo negro é rigorosamente proibido — ninguém quer ser de cor.”

Jünger comenta, com certo orgulho, que as mais importantes realizações da civilização brasileira — como arranha-céus, palácios do governo, sistemas de distribuição de água, portos e aeroportos — remetem à realidade de países estrangeiros. No início do século 20, os efeitos da colonização na América começavam a ser discutidos e os primeiros sintomas de uma globalização ganhavam destaque. O autor alemão, no entanto, possuía uma visão crítica à crescente universalização. Ao escrever que “o arsenal da exploração passa, assim, a ser considerado como mais significativo do que a riqueza e cultura do país ao qual é acrescentado”, Jünger apresenta uma ideia precoce do que viria a se concretizar nas décadas seguintes: o apagamento das individualidades a favor de uma cultura global única, pautada pela produção e pelo consumo capitalista.

Entre críticas sociais e observações referentes ao comportamento humano, o escritor também encontra tempo para comentar suas impressões sobre a gastronomia local. Jünger experimentou diversos frutos tropicais, como mamão, manga, abacaxi branco e “laputilha” — fruta não identificada pelo tradutor, que, em nota de rodapé, diz acreditar que se trata do sapoti, cujo nome teria sido ouvido por Jünger e registrado de forma errônea em seu diário.

As interpretações de Marcos Ribeiro são de utilidade à leitura. Em certo trecho do livro, Jünger experimenta uma espécie de rum similar à “aguardente obtida do melaço da beterraba”. A nota do tradutor indica que, possivelmente, o alemão se referia à cachaça, bebida proveniente da fermentação e destilação do caldo de cana.

Em uma passagem curiosa, Jünger reflete sobre o ritmo atarefado típico do europeu e conclui que, no Brasil — local onde o impulso para as atividades espirituais se reduz, bem como a disposição para a leitura —, o estilo de vida “cômodo” e tranquilo apresenta benefícios à saúde. Para o autor, seria uma troca: “uma vitalidade superior, acompanhada de um enfraquecimento da espiritualidade”. Em São Paulo, Jünger visitou o Instituto Butantan. O alemão descreveu a demonstração de extração do veneno e alimentação das cobras com o mesmo nível de encantamento de quem acaba de assistir a um espetáculo: “O processo tem algo de perturbador, algo de ilusão de óptica”.

Viagem Atlântica aborda também a questão da imigração ilegal no Brasil. Jünger conta que um de seus companheiros de viagem, ao qual se referia apenas como “St”, decidiu não retornar a bordo. “Havia nele, sobretudo, um sentimento favorável à dignidade humana, o sentido da liberdade e inviolabilidade da pessoa humana, num país no qual turbulências internas não são raras”, escreve. Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, houve um aumento do fluxo migratório da Europa para a América, algo que o autor previu corretamente em Viagem Atlântica.

Para o escritor alemão, o Brasil parecia reconhecer as reivindicações individuais de seus cidadãos e respeitar sua integridade, ainda que tal mentalidade nem sempre se convertesse na realocação de recursos pelo governo para ajudar os mais necessitados. Ele cita como exemplos positivos o direito ao atendimento médico gratuito e a perspectiva de enriquecimento no País, que ainda possuía riquezas naturais em abundância. “Isso confere à vida um grau de liberdade que, na velha Europa, não mais pode ser alcançado.”

O autor também abusa de metáforas e outras figuras de linguagem, que dão por vezes um tom poético a seu texto. Para descrever a copa das árvores que observou no Rio Pará, por exemplo, Jünger afirma que “elas forneceriam boas folhas de videira para a nudez de um belo Titã”. Como o livro não inclui fotos ou outro tipo de registro visual da viagem, as descrições alegóricas do escritor facilitam a compreensão do cenário retratado.

Conhecido pela pluralidade de sua extensa bibliografia, que inclui livros sobre guerras, viagens, filosofia, insetos, ampulhetas, sonhos e drogas, Jünger também se dedicou à atividade militar e à entomologia (ciência que estuda insetos), foi esteta, editor, bibliófilo e ativista político ao longo de seus 102 anos de vida. “O viajante teve uma dessas vidas cuja contemplação pode lançar suspeitas sobre a mediocridade da nossa”, destaca Marcos Ribeiro na apresentação. Ferido 14 vezes durante a Primeira Guerra Mundial, Jünger recebeu a maior condecoração alemã e foi considerado herói de guerra. A experiência resultou no livro Tempestades de Aço, um relato cru sobre seu dia a dia como soldado, que viria a se tornar sua obra mais consagrada. 

Viagem Atlântica, de Ernst Jünger, tradução de Marcos Ribeiro, Editora da USP (Edusp), 136 páginas, R$ 42,00


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