“O corvo” estreia em 2021 no Festival Amazonas de Ópera

Obra baseada no poema de Edgar Allan Poe é de autoria do compositor Eduardo Frigatti, doutor pela USP

 09/12/2020 - Publicado há 3 anos
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Arte sobre desenhos da animação para a ópera "O Corvo" - Divulgação

O Festival Amazonas de Ópera (FAO) apresentará na sua próxima edição – que será realizada em versão on-line entre 24 de abril e 9 de maio de 2021 – a estreia da ópera O Corvo, de autoria do compositor paranaense Eduardo Fabricio Luciuk Frigatti, com libreto baseado na tradução que Machado de Assis fez do poema homônimo de Edgar Allan Poe. “É a primeira grande peça que compus após a defesa do meu doutorado”, diz Frigatti, que neste ano se doutorou em Composição pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sob orientação do professor Silvio Ferraz de Mello Filho. “Portanto, muito da minha pesquisa e conhecimento que adquiri na USP reverbera nessa obra.”

Natural de Cidade Gaúcha, localizada no noroeste do Paraná, Frigatti estudou piano e violino com sua mãe, que comandava uma pequena escola de música na cidade de Cianorte, também no Paraná, onde ele cresceu. Apesar de nunca ter abandonado esses instrumentos, foi ao violão que se dedicou como instrumentista. Criar sempre esteve presente na sua vida, como revela. “Meus pais relatam que sempre gostei de inventar, imaginar. O gosto pela composição me chegou com força surpreendente na adolescência. Pequenas peças para piano, violão e violino, canções. Sempre me acompanharam e me agradaram minhas pequenas criações, que compartilhava com os amigos.”

Desenho da animação para a ópera “O Corvo”

Mas foi só após concluir dois cursos de graduação, em Musicoterapia e em Música, ambos na Universidade Estadual do Paraná (Unesper), que ele resolveu assumir seu lado de compositor. “Já tinha composto várias obras e vencido um prêmio, quando decidi estudar composição formalmente com o professor Maurício Dottori”, informa, acrescentando que Dottori se tornou seu orientador no curso de mestrado, apresentado na Universidade Federal do Paraná. “Foi através dele que conheci a obra composicional e o trabalho teórico do professor Silvio Ferraz.”

Ainda durante o mestrado, Frigatti participou de algumas disciplinas ministradas por Ferraz, o que acabou levando-o ao doutorado no Programa de Pós-Graduação em Música da ECA. Nesse caminho, do final do mestrado até iniciar o doutorado, Frigatti ainda teve a oportunidade de aprofundar seus estudos em composição com o professor Rodrigo Lima na Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim (Emesp) e com o compositor Krzysztof Penderecki, em Cracóvia.

“A música sempre fez parte da minha vida. E a criação sempre foi uma necessidade, jamais uma opção”, comenta. Ele ainda aponta a ópera como um desejo tardio: “Devo tal ambição ao convívio com minha esposa, Paulina, que é compositora e cantora lírica. Compor para voz, e consequentemente para ópera, é uma demanda doméstica”. Além disso, diz, a ópera tem uma boa recepção pelo público por combinar diferentes artes. “Foi um meio que encontrei para reverberar mais a música que componho e, de certo modo, as pesquisas teóricas que desenvolvo.”

O compositor Eduardo Frigatti: ópera incorpora ideias e conhecimentos obtidos durante doutorado na USP - Foto: Marcos Hermes

Primeira ópera

O convite para escrever uma obra para o Festival Amazonas de Ópera veio da diretora executiva do evento, Flávia Furtado, devido aos prêmios e à atuação de Frigatti no meio artístico. “Quando apresentei a proposta de uma canção sobre O Corvo, surgiu a ideia de desenvolver o tema em uma ópera”, relata. Embora já estivesse desenvolvendo dois outros projetos de óperas, um a partir da obra de Lima Barreto e outro a partir da obra de Machado de Assis, essa é sua primeira ópera. Entre as várias traduções para o português do poema de Edgar Allan Poe, Frigatti escolheu a de Machado de Assis, porque “ele recria o poema do Poe, abrasileirando-o, além de dar uma ênfase maior na narrativa”. Segundo ele, esse é um fator importante para a construção da ópera. “Evidentemente, foi necessário adaptar o texto e, por isso, há algumas omissões de trechos de descrições de ações ou de descrições do corvo, posto que a música e a ação teatral da ópera representam tais partes do texto”, informa.

Primeira página do libreto da ópera "O Corvo", de Eduardo Frigatti

Para Frigatti, a maior dificuldade em peças de média e longa duração, como uma sinfonia ou uma ópera, é a sua forma. “O modo como a música se desenvolve e se entrelaça à narrativa textual no transcorrer do tempo exige uma aguçada imaginação do desenvolvimento temporal da peça. Ter essa percepção da sensação do fluxo temporal é essencial para a arquitetura musical. Esta, por sua vez, é essencial para engajar a atenção do espectador durante toda a ópera. Por conter o texto, esse processo de construção temporal e da compreensão da narrativa se torna menos difícil do que em uma obra puramente instrumental”, constata.

A ópera é em português e, segundo ele, isso traz outra grande dificuldade: dar naturalidade à fala. Ele explica que a técnica do canto lírico se desenvolve a partir do italiano e toda aplicação dela em outros idiomas demanda certos ajustes, que, por vezes, podem comprometer a inteligibilidade do texto se a melodia não for bem planejada e se a performance não for bem realizada. “Há uma linha muito tênue que separa a compreensibilidade da incompreensibilidade quando o texto é cantado em português”, diz, acrescentando que também é difícil não cair nos estereótipos do canto operístico. “Acredito que consegui resolver esses problemas e explorar o potencial sonoro e afetivo do poema.”

Ele também revela por que optou pela ópera em português: “Além de ser minha língua nativa, o número de óperas no idioma ainda é inferior ao número de óperas em outros idiomas, como o italiano e o alemão. Cada idioma tem uma cor sonora própria e pode explorar diferentes estratégias musicais”.

O libreto

A narrativa da ópera O Corvo explora a solidão, a perda e a sensação de culpa de um jovem amante. Ele é confrontado com a morte de sua amada ao receber a visita de um estranho corvo. Talvez acordado, talvez em delírio, o jovem começa um diálogo com o corvo que absurdamente responde a ele. Segundo Frigatti, tal como no poema, a trama começa com o jovem entregue à leitura de antigos clássicos. E, em meio à sua confusão mental e à sua conversa com o corvo, fragmentos de um desses textos clássicos vêm à sua mente. Trata-se de Eneida, em especial, trechos da história de Eneias e Dido. Nessa história, com final trágico, Eneias abandona Dido, levando-a à loucura e ao suicídio. Essa passagem da Eneida volta recorrentemente aos pensamentos do personagem principal da ópera, quando ele se confronta com o corvo, reforçando sua sensação de culpa em meio à solidão que experimenta. Frigatti ainda conta que os trechos da peça Eneida estão em latim, para separar os dois universos narrativos – para organizar esses fragmentos, o compositor contou com a ajuda do professor da USP Adriano Aprigliano.

A partitura escrita em português será apresentada em versão para ópera de câmara, reunindo no palco 16 instrumentistas e 16 vozes, além de um tenor

Embora haja também uma versão para orquestra, no Festival Amazonas de Ópera será apresentada a versão para ópera de câmara, devido ao limite de músicos permitido no palco, em decorrência da pandemia de covid-19. “Além do grupo de 16 instrumentistas, também utilizei um coro de 16 vozes (representando a voz do corvo e a voz da consciência do personagem principal) e um tenor (solista) para o papel principal”, conta Frigatti. “Musicalmente, O Corvo explora uma vasta gama de afetos, da lembrança carinhosa à dor aguda do desespero, passando do lirismo melódico do romantismo tardio e da música expressionista a agressivos complexos sonoros da música contemporânea. Assim, há um jogo contínuo entre a polifonia de melodias e a polifonia de streams”, reitera, fazendo referência a ideias analisadas em seu doutorado.

Das três óperas de câmara apresentadas no festival, O Corvo será a única a ganhar uma animação durante o evento. O filme, com a mesma duração da ópera, de 30 minutos, é dirigido pelo compositor, ao lado de Giorgia Massetani, Ana Luisa Anker e Carolina Mestriner. A adaptação é da roteirista Carolina Mestriner. A animação, segundo ele, tem uma forte influência do cinema expressionista alemão e deve explorar esse universo onírico e psicanalítico, típico dos anos 1920. Como nota Frigatti, há uma grande influência do movimento expressionista nas árias. Mas, por outro lado, lembra, os trechos instrumentais (prelúdio e interlúdios), os recitativos e os coros exploram procedimentos oriundos da estética da sonoridade, que perpassa todo o século 20 e é muito forte nas tendências composicionais atuais. “Essa é uma concepção que explorei na minha tese de doutorado e, talvez por isso, esses trechos possuam grande influência de análises e reflexões que desenvolvi durante a pesquisa.”

Tese de doutorado investiga a polifonia na música contemporânea

Na sua tese de doutorado Polifonia e Contraponto: Análise do Uso de Procedimentos Contrapontísticos durante o Século XX para Criação de Novas Obras Musicais, defendida neste ano na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Frigatti investiga como os compositores contemporâneos se utilizam da técnica do contraponto em suas obras, desenvolvendo novas possibilidades polifônicas. Entre outras observações, diz, desenvolveu a ideia de contraponto e polifonia de streams para se referir a alguns procedimentos composicionais do século 20, através dos quais os compositores sobrepõem e articulam fluxos sonoros para construção da textura musical, e não mais linhas melódicas. As pesquisas resultaram na composição de várias obras baseadas nesse e em outros conceitos e técnicas discutidos na tese.

No total, Frigatti compôs 29 obras. Destas, 23 já foram estreadas em performances realizadas em locais como a Sala São Paulo, o Teatro l’Occitane de Trancoso, na Bahia, e a Sala de Concerto da Orquestra Nacional da Rádio Polonesa (NOSPR-Katowice). Três obras foram premiadas: Armorial, para violino e harpa (terceiro prêmio na 8ª Competição Internacional para Duetos com Harpa, Polônia, 2019), Moods-Borderline, para clarinete solo (segundo prêmio no concurso nacional para Clarinete Solo, Belém, 2018), e Morriña, para quarteto de cordas (premiado no primeiro concurso de composição do Festival de Música Contemporânea Edino Krieger, em 2017, e no 50º Festival Internacional de Campos do Jordão, em 2019). Outras sete peças foram selecionadas para festivais nacionais e internacionais, como Rose of Hiroshima (Festival Internacional  de Compositores de Cracóvia, na Polônia, em 2017, e Festival Muslab, no México, também em 2017) e Iguaçu, para clarinete solo (Festival Contrasti-Trento, na Itália, em 2019), peça que foi gravada pelo clarinetista paraense Jairo Wilkens no álbum Clarinete Solo Brasileiro.

"Todo mundo gosta de ópera, mas não sabe"

“Dizem que todo mundo gosta de ópera, só não sabe que gosta porque ainda não pôde ouvir uma. Eu sou um exemplo de que essa afirmação é verdadeira. A ópera é muito cativante, porque envolve diversas linguagens, facilitando a interação com o público, mesmo que essas linguagens sejam bem experimentais”, afirma o compositor Eduardo Frigatti. Como ele conta, a ópera surgiu em Veneza, no século 16, em círculo de intelectuais e aristocratas, mas em pouco tempo tornou-se uma atração muito popular. “Para se ter uma dimensão da popularidade da ópera, Rossini, compositor italiano do período clássico, era tão popular quanto Napoleão Bonaparte”, compara.

O Brasil, segundo Frigatti, sempre consumiu muita ópera, principalmente do final do século 19 a meados do século 20. “Por conta disso, há vários teatros no País preparados para receber espetáculos de ópera, embora poucos atualmente tenham temporadas regulares. Ainda que as temporadas regulares sejam poucas diante do tamanho do País e do potencial físico e humano disponível para a realização de óperas, assistimos a uma retomada progressiva no número de espetáculos de ópera e festivais do gênero no País”, garante. E continua: “O Festival Amazonas de Ópera é o mais importante e longevo do Brasil e um dos mais importantes da América Latina. Embora as produções tenham sofrido muito com a crise decorrente da pandemia, a expectativa é que o número de óperas apresentadas crescerá nos próximos anos”. Para Frigatti, “trata-se de um gênero artístico muito rico, complexo semanticamente, mas que também entretém, e tem muito a contribuir e dialogar com a sociedade brasileira”.

23º Festival Amazonas de Ópera (FAO) acontece de 24 de abril a 9 de maio de 2021, em edição on-line. A ópera O Corvo, de Eduardo Frigatti, estreia no dia 2 de maio, às 19 horas. Mais informações sobre Eduardo Frigatti estão disponíveis na página do compositor no Facebook


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