Mostra põe Clarice Lispector em diálogo com artistas contemporâneas

Em cartaz em São Paulo, exposição possibilita novas leituras da obra da escritora a partir das artes visuais

 29/10/2021 - Publicado há 2 anos
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A escritora Clarice Lispector – Foto: Divulgação

 

Por ser uma criadora extraordinária, Clarice Lispector (1920-1977) ocupa um lugar particular na literatura brasileira, o que produz em torno da escritora uma espécie de mito — e todo mito isola. É o que pensa Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) e curador da exposição Constelação Clarice, em parceria com a crítica de arte Veronica Stigger, doutora pela USP. 

Inaugurada no IMS de São Paulo no dia 23 passado, Constelação Clarice celebra a obra e o legado da autora, em decorrência de seu centenário, comemorado em 2020. Com visitação até 27 de fevereiro de 2022, a entrada é gratuita, com agendamento prévio pela internet.

Para Ferraz, a novidade da mostra, dentre muitas já realizadas sobre a escritora, é que ela retira Clarice de sua solidão literária e a coloca em conversa com outras mulheres. Pela primeira vez, Clarice aparece em companhia. A proposta de Ferraz e de Veronica foi partir do interesse de Clarice pelas artes visuais, que aparece tanto nas próprias pinturas que produziu na década de 1970 quanto nas personagens artistas construídas em sua obra literária. Por isso, a exposição produz diálogos entre a obra de Clarice e produções de 26 artistas visuais contemporâneas à autora, como Maria Martins, Fayga Ostrower e Lygia Clark. Também são expostos cerca de 300 itens, entre manuscritos, cartas, fotografias e documentos do acervo pessoal de Clarice.

Clarice Lispector – Foto: Divulgação

“O primeiro passo dessa constelação foi desenharmos os núcleos fortes da obra da Clarice, as suas linhas de força”, explica Eucanaã Ferraz sobre o conceito adotado. “Fizemos essa espécie de mapa e chegamos a oito núcleos, aos quais acrescentamos pinturas de Clarice e recolhemos documentos e uma parte mais pessoal e biográfica dela.” A partir disso, a curadoria seguiu na direção do que é principal na exposição: a reunião de artistas mulheres que criaram no mesmo período que a autora, entre as décadas de 1940 e 1970.

“Cada um dos núcleos aponta para uma obsessão, um conjunto temático surgido na escrita de Clarice. O intuito não foi fazer dessa constelação uma história das artes visuais no Brasil — a ideia era partir da própria obra da escritora”, detalha Ferraz. Nesse sentido, a autora seria uma espécie de estrela central da constelação. Isso possibilita retirá-la da solidão do mito e colocá-la em um conjunto maior, demonstrativo dos pontos em comum entre as questões existenciais, políticas, místicas e artísticas de Clarice e de outras criadoras, explica o curador.

Essa conexão entre as obras de arte selecionadas e os trechos de textos de Clarice também permite expandir a compreensão de seus trabalhos literários. Na visão de Ferraz, o conceito de constelação também pode sugerir a construção, por cada espectador, de sua própria constelação. “O visitante vai se deparar com um sistema aberto, dentro do qual é ele próprio quem vai ter que fazer as ligações. Elas não são óbvias, não estão prontas. A exposição é uma nova interpretação, uma nova oportunidade de leitura da obra de Clarice, e que vai possibilitar outras novas leituras”, afirma. 

Dentre os diversos materiais apresentados, logo no início da mostra são exibidas 18 pinturas de autoria da própria Clarice, que foram produzidas sem ambições profissionais. De acordo com Ferraz, esses trabalhos simbolizam um desejo de Clarice por mais uma possibilidade de expressão, “que fosse simultaneamente uma maneira de dizer o que já dizia em sua escrita, mas ao mesmo tempo uma coisa nova”, pensa o curador. “Abrir mão da palavra era uma grande novidade, se libertar e buscar uma expressão mais bruta, mais livre.”

Ouça no link abaixo entrevista de Eucanaã Ferraz, curador da exposição Constelação Clarice, concedida à Rádio USP (93,7 MHz).

Logo da Rádio USP

Outra relação possível está nos personagens da obra de Clarice que são criadores. “Talvez o maior exemplo seja a narradora de Água Viva, 1973, que é uma pintora em sua primeira tentativa de escrita. Ela estranha muito estar fazendo aquilo, porque nunca escreveu, só pintou até aquele momento. Isso é curioso”, reflete Ferraz. Para ele, o fato de Clarice ter pintado é muito coerente com “a criadora Clarice”.

Catálogo apresenta ensaios de especialistas da USP

Juntamente com a mostra, foi lançado um catálogo com textos críticos de especialistas na obra de Clarice, à venda na livraria do IMS. Textos elaborados pelos próprios curadores abrem o volume, que também apresenta um ensaio de Paulo Gurgel Valente, filho da escritora.

Manuscrito de Clarice Lispector, em cartaz na mostra promovida pelo Instituto Moreira Salles – Foto: Divulgação

“O catálogo é muito precioso, na medida em que é bem mais do que um catálogo que registra uma exposição. É um livro de ensaios sobre a obra de Clarice, organizado a partir dos núcleos que eu e Verônica desenhamos. Todos os textos são inéditos e foram escritos especialmente para o catálogo por críticos importantíssimos”, comemora Ferraz. Para o curador, é como se o catálogo fosse um mapa daquela constelação construída.

Dentre os especialistas presentes no catálogo estão os professores da USP Nádia Gotlib, Yudith Rosenbaum e José Miguel Wisnik. No texto O Corpo Desmontado, Nádia escreve sobre a presença do corpo na narrativa de Lispector, que, “como fonte, motivo e instrumento de exploração das profundezas da intimidade, surge acima de tudo como umbral de perspectivas de novos territórios, até então intocados, em direção a um não se sabe o quê, misto de aventura e de mistério”. 

Por sua vez, Yudith reflete em Na Contramão da Palavra: a Escrita de Clarice sobre o nascimento do ofício para a autora. “Duas fontes parecem gestar a palavra de Clarice: de um lado, demanda de amor, alimento e preenchimento; de outro, o vetor ético, que busca servir aos homens, ao mundo. Privação e excesso movimentam uma escrita nascida da contradição”, discorre.

Em A Coisa Social, Wisnik aborda a ausência de um foco sobre o social na obra de Clarice, diante da cobrança por engajamento feita a escritores no início da década de 1960. O porquê de não evidenciar a miséria e a injustiça “é exatamente porque essa verdade já lhe é conhecida, porque é a premissa inerente à sua relação com o mundo, que não será a razão de ser de sua escrita”, escreve o professor.

A exposição Constelação Clarice está em cartaz até 27 de fevereiro de 2022, no Instituto Moreira Salles (Avenida Paulista, 2.424, em São Paulo), de terça a sexta-feira, das 12 às 19 horas, sábados, domingos e feriados, das 10 às 19 horas. Entrada grátis, com agendamento prévio pela internet.

 


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