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Mostra de cinema faz homenagem a Jean-Claude Bernardet
Aos 88 anos, o crítico e professor da USP ganha retrospectiva inédita de filmes nos quais colaborou como diretor, roteirista ou ator

“Se eu fosse me apresentar para uma pessoa que nunca ouviu falar de mim, não me apresentaria, porque toda apresentação seria uma definição, uma limitação; eu entraria em categorias, o que é justamente o que tento evitar.”
Essas são as palavras que abrem o documentário Crítica em Movimento (2004), dirigido por Kiko Mollica. São pronunciadas pelo protagonista do filme, Jean-Claude Bernardet, em uma antidefinição precisa de uma personalidade inquieta. Belga criado na França que fez do Brasil seu lar e do cinema seu ofício, crítico de cinema, diretor, roteirista, ator, escritor, Professor Emérito da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, aos 88 anos – completados em 2 de agosto –, Bernardet tem sua vida plural celebrada com uma retrospectiva inédita.
A mostra de filmes Bernardet e o Cinema acontece no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo, de 24 de agosto até 22 de setembro. Com curadoria de Andréa Cals, serão exibidos 20 filmes nos quais o professor dirige, roteiriza ou atua, reunindo obras que vão da década de 1960 até 2024. No dia 31 de agosto haverá ainda um momento especial: um debate com a presença do próprio Bernardet, ao lado do crítico de cinema Francis Vogner dos Reis.
A seleção de títulos inclui películas como O Caso dos Irmãos Naves (1967), dirigido por Luiz Sergio Person e escrito por Person e Bernardet, que conta a história real de dois irmãos presos e torturados durante o Estado Novo por um crime que não cometeram. São Paulo: Sinfonia e Cacofonia (1994) mostra Bernardet na direção, em uma obra construída a partir de fragmentos de 100 filmes rodados na capital paulista. A Destruição de Bernardet (2016), de Claudia Priscilla e Pedro Marques, é um exercício de reflexão protagonizado pelo homenageado, no qual são tratados os temas da morte, do suicídio e de sua entrada em cena, como ator, aos 70 anos.

Cena do filme: Fome – Foto: Divulgação
Fome (2015), dirigido por Cristiano Burlan, é outro filme protagonizado por Bernardet, encarnando um homem que perambula pela metrópole. Brasília: Contradições de Uma Cidade Nova (1967), tem direção de Joaquim Pedro de Andrade e roteiro de Bernardet, trazendo imagens e entrevistas feitas na nova capital brasileira, então recém-inaugurada. Já #eagoraoque (2020) reúne na direção o homenageado e Rubens Rewald, também professor da ECA, para tratar de ação política em uma produção na qual ficção e documentário se confundem.
O próprio Crítica em Movimento (2004) também integra a mostra, assim como seu curta mais recente, A Última Valsa (2024), que dirige ao lado de Fábio Rogério. Três filmes que constam na mostra foram produzidos com participação da USP. Além de São Paulo: Sinfonia e Cacofonia, a seleção traz Disaster Movie (1979), de Wilson de Barros, e Disseram que Voltei Americanizada (1995), de Vitor Angelo, dois ex-alunos de Bernardet que puderam contar com a atuação do professor.
Conforme explica Andréa, os filmes são apenas uma parte da produção do homenageado, uma lista representativa da polivalência de Bernardet nas telas. Atuação múltipla fruto de uma inquietação que o torna difícil de ser categorizado, na visão da curadora. Exatamente a mesma percepção que Bernardet esboçava de si mesmo em Crítica em Movimento.
“Padrão é uma palavra que realmente não se encaixa nele”, comenta Andréa. “Ele não é um padrão, e isso se dá em todas as funções que exerce e também na pessoa em si. Acima de tudo, ele é uma pessoa que se transforma o tempo inteiro.” Essa mudança constante, para a curadora, é justamente o que oferece a coerência da personalidade de Bernardet.

Cena do filme: Antes do fim – Foto: Divulgação

Cena do filme: A navalha do avô – Foto: Divulgação

Cena do filme: Um céu de estrelas – Foto: Divulgação
Uma transformação, prossegue Andréa, que não se dissocia da postura política. Não partidária, mas de posicionamento e crítica que não se eximem. E que se motiva pela necessidade de estar continuamente trabalhando, apaixonado pelas atividades em que se envolve. “Ele só sobrevive à base de projetos”, sublinha.
Todos esses comentários lembram as declarações que o próprio Bernardet deu para o Jornal da USP em 2017, quando completava 80 anos. Na ocasião, estava sendo lançado o livro Bernardet 80 – Impacto e Influência no Cinema Brasileiro, e o professor se via em um processo de transformação em “referência cultural”. Dizia que livros, filmes e homenagens a seu respeito contribuíam para a construção social de uma referência no campo cultural.
Andréa vê em Bernardet essa referência. E salienta que o homenageado possui a peculiaridade de ser uma pessoa de quem se sabe a importância sem se saber exatamente os motivos dessa importância. “Homens como ele não existem mais. Ele nasceu em 1936, formou-se na França e veio ao Brasil, onde entrou em choque com a cultura brasileira e depois começou a ser parte dela”, diz. Nessa cultura, prossegue a curadora, sua astúcia crítica e inteligência se destacaram. “Bernardet é muito inteligente, com uma capacidade muito grande de percepção e raciocínio rápido. A postura crítica vem disso e acho que é sua grande contribuição.”
Os comentários de Andréa desnudam a relação pessoal que mantém com o homenageado. “Minha amizade com ele é um presente. Começou em uma entrevista que fiz quando ele era ator em Fome.” Bernardet estava então prestes a completar 80 anos. Da entrevista surgiu a proposta de um filme em conjunto a respeito do cineasta Nelson Pereira dos Santos. A ideia não foi muito longe, mas as conversas serviram para aprofundar a relação. “O filme não aconteceu, mas a partir daí deu match e ficamos muito envolvidos. Viajei para a França um ano depois e ele foi lá me visitar.”
É o carinho pessoal pelo homenageado – “Sou apaixonada pelo Bernardet, não há como não assumir” – que Andréa procura traduzir na mostra. “A retrospectiva não tem nada de analítica, é feita para homenageá-lo, para fazer algo que reconheça a pessoa que ele é em vida, especialmente em vida, e estou feliz que ele está vendo as coisas acontecendo.”
Crítica, historiografia e atuação
Jean-Claude Bernardet nasceu em 1936 na Bélgica, mas passou a infância na França. Chegou ao Brasil aos 13 anos de idade, em 1949, e viveu a adolescência no meio da colônia francesa de São Paulo. Estudou no Liceu Pasteur e por anos alimentou o desejo de retornar à França. A situação financeira do pai, entretanto, impediu qualquer possibilidade de volta e, em 1956, Bernardet aceitou se estabelecer em definitivo no país tropical.
Nessa época, trabalhou na Livraria Francesa e depois na Cinemateca Brasileira. Participou também do cineclube do Centro Dom Vital, onde começa a escrever suas primeiras críticas, o que representa simultaneamente sua inserção na vida social da cidade e no meio cinematográfico. Conhece então Paulo Emílio Salles Gomes, que o convida para ser articulista do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo.

A princípio escrevendo sobre produções de diretores internacionais, como Federico Fellini, Bernardet decide se concentrar no cinema brasileiro, interessado na interlocução com os realizadores. Já demostrava sua postura como um intelectual atrás da intervenção, algo que daria a tônica de sua produção ao longo de toda a vida.
Com o golpe militar de 1964, perde o emprego na Cinemateca e também no jornal Última Hora. Isso não significou, entretanto, seu afastamento das telas.
Em 1967, publica Brasil em tempo de cinema, obra na qual apresenta uma visão original do Cinema Novo, identificando-o como uma representação de classe. Para Bernardet, seus cineastas não eram tão revolucionários como pensavam, mas sim uma fração da classe média à procura de sua posição política no País.
No mesmo ano de 1967 tornou-se professor na ECA, depois de uma breve passagem pela Universidade de Brasília (UnB). As aulas foram curtas, contudo: a ditadura militar mais uma vez atravessaria seu caminho. Com o AI-5, é aposentado compulsoriamente da Universidade, para a qual só retornaria em 1980, com a Anistia.
É nessa década que publicaria outro de seus livros mais significativos, Cineastas e imagens do povo (1985), dedicado ao documentário brasileiro e que ganhou edição atualizada em 2004, mesmo ano em que se aposenta da ECA. Algum tempo depois trocaria em definitivo o texto pela atuação, intensificando uma carreira de ator que já vinha experimentando esporadicamente ao longo dos anos.
Ao todo, Bernardet acumula 25 livros publicados no Brasil, transitando entre crítica, historiografia e ficção. Além dos já citados, é autor de Trajetória crítica (1978), O que é cinema (1980), Piranha no mar de rosas (1982), Aquele rapaz (1990), Voo dos anjos: estudo sobre o processo de criação na obra de Bressane e Sganzerla (1990), O autor no cinema (1994), Historiografia clássica do cinema brasileiro (1995), A doença, uma experiência (1996) e Caminhos de Kiarostami (2004).
Renovação e transformação
Segundo Andréa, Bernardet e o Cinema tenta ser fiel ao que ela mesma conhece do homenageado. Isso se traduz, por exemplo, na reunião de longas e curtas-metragens, documentários e ficções, sem se preocupar com as distinções clássicas entre gêneros e formatos. “Ele próprio, assim como Paulo Emílio, fala que a divisão entre documentário e ficção não existe, vamos ultrapassar esses conceitos, porque tudo é filme. Como discípula, tento fazer com que essa homenagem traga esses ensinamentos.”
Ao se reconhecer como discípula, Andréa pontua que os ensinamentos de Bernardet ultrapassam o âmbito do cinema, tendo para ela uma dimensão de vida. Ela relembra um momento, durante a entrevista em que conheceu o homenageado, no qual Bernardet falava do irmão. Citava as conversas que entabulavam sobre a passagem do tempo, o envelhecimento e a possibilidade de não se repetir.

Cena do filme: Antes do fim – Foto: Divulgação

Cena do filme: A última valsa – Foto: Divulgação.

Cena do filme: O caso dos irmãos Naves – Foto: Divulgação
“Você sempre pode se renovar e transformar”, diz Andréa. “Quando Bernardet deixa de ser crítico de cinema e ensaísta para se dedicar à carreira de ator, ele está buscando esse não compromisso com aquilo que ele já foi e a possibilidade de ser aquilo que deseja ser, independentemente da idade. Ele é um mestre da maneira de viver”, pontua a curadora. Lições que Bernardet parece oferecer tanto dentro quanto fora das telas.
A mostra Bernardet e o Cinema acontece de 24 de agosto a 22 de setembro no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em São Paulo, de quinta a domingo. O bate-papo com a presença do homenageado será em 31 de agosto, às 18h10. No dia 6 de setembro, às 18 horas, haverá sessão de Filmefobia (2008), dirigido por Kiko Goifman, com recursos de acessibilidade. O CCBB fica localizado na Rua Álvares Penteado, 112, no centro de São Paulo. As atividades são gratuitas. Programação completa e ingressos estão disponíveis neste endereço. A mostra também acontece no CCBB do Distrito Federal, de 16 de agosto a 5 de setembro, e no CCBB do Rio de Janeiro, de 28 de agosto a 22 de setembro.
Ouça no link abaixo o boletim Dica Cultural, da Rádio USP, sobre a mostra Bernardet e o Cinema. A produção e apresentação são da jornalista Heloisa Granito.

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