“Meu tipo inesquecível”: Walter Colli

Professor do Instituto de Química da USP recebeu no dia 10 o título de Professor Emérito da Universidade

 20/08/2021 - Publicado há 3 anos
O professor Walter Colli: uma vida dedicada a pesquisas que beneficiam a saúde pública no Brasil e em outros países – Foto: Reprodução/Fapesp

 

Por Janice Theodoro da Silva

Quando eu era criança, existia uma revista chamada Seleções Reader’s Digest com um capítulo intitulado Meu Tipo Inesquecível. Contava histórias de pessoas, artífices de um convívio amigável, sem perder a direção, o sentido do bem comum, em uma vida em sociedade. Walter Colli é um deles, um tipo inesquecível.

O que torna algumas criaturas inesquecíveis?

Saber ver pessoas e coisas.

Pode usar óculos, mas, mesmo sem eles, enxerga detalhes. Reconhece as necessidades sem que o amigo próximo precise enunciá-las com palavras. Sabe resolver problemas simples, do dia a dia, e complicados, do tipo institucional, tanto no âmbito de um laboratório de pesquisa como de um instituto ou universidade. O tipo inesquecível é capaz de fazer antes de pedir.

Walter Colli enxerga coisas visíveis e, principalmente, invisíveis, como os genes do Trypanosoma cruzi envolvidos na adesão e invasão celular. Para os que não conhecem o objeto, explico: trata-se de “objeto” muito pequeno, microscópico, ao qual ele dedicou anos de pesquisas.

Esse “microanimal”, de nome difícil, gerou pesquisas e descobertas complexas. Ele é o agente etiológico da doença de Chagas, responsável pela morte de muitos brasileiros e latino-americanos pobres, ainda nos dias de hoje.

Walter Colli na cerimônia em comemoração à marca de 100 mil teses de doutorado e dissertações de mestrado da USP, realizada no Memorial da América Latina, em São Paulo, em 2011 – Foto: Cecília Bastos/Jornal da USP

 

Fazendo história, para retomar o fio da meada dos cientistas brasileiros, recordo a existência, no início do século 20, de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, entre outros pesquisadores com passado vinculado com o Instituto Manguinhos/ Fiocruz, no Rio de Janeiro. Aqui em São Paulo, tanto o Instituto Butantan (do qual Colli foi diretor em 1999) como um pequeno grupo de médicos ligados aos estudos de doenças tropicais na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo dedicaram-se a pesquisas em áreas afins. Estudaram doenças tropicais. Seus trabalhos estão na raiz de importantes descobertas com desdobramentos de grande importância para a produção de conhecimento, vacinas e medicamentos, interferindo (direta ou indiretamente) na área de saúde pública, salvando muita gente, sem distinção de fronteiras, em terras brasileiras e no além mar.

A preocupação de alguns médicos, químicos e bioquímicos com as doenças tropicais tem raízes na relação do homem com o meio ambiente, com a floresta amazônica, com a caatinga e com o cerrado. Muitos brasileiros, ao trocar a vida pela borracha (como dizia Oswaldo Cruz) e ao construir a “ferrovia da morte”, a Madeira-Mamoré, pereceram em razão de doenças. A tragédia, de grande proporção, foi documentada no local pelos médicos sanitaristas, no início do século 20.

O Instituto Manguinhos/Fiocruz e o Instituto Butantan fazem parte dessa história. A raiz é antiga, marcada por uma preocupação com a saúde pública no Brasil. Essas instituições, por meio de seus dirigentes e pesquisadores, olharam para o Brasil profundo e buscaram soluções para os problemas, engajando-se em uma luta diária, como está ocorrendo na atualidade. A Revolta da Vacina é o capítulo inicial de uma longa novela. Pesquisadores estudaram as doenças tropicais, criaram políticas higienistas, tentando salvar a vida de trabalhadores do campo e da cidade contaminados pela malária, febre amarela e outras doenças tropicais. Pesquisaram e produziram conhecimento, vacinas e soros para salvar pessoas contaminadas e mordidas por animais peçonhentos, especialmente trabalhadores rurais.

Walter Colli, ao escolher como campo de trabalho a pesquisa, e não a clínica médica, embora fosse médico por formação, fez a sua escolha por vocação. Optou por viver com os recursos de um pesquisador, historicamente limitados no Brasil. Olho com admiração e respeito para os nossos sanitaristas viajantes, para os nossos infectologistas engajados, para nossos pesquisadores das universidades, personagens dedicados, persistentes e corajosos ao longo de nossa tumultuada história política, marcada pela falta de recursos para as pesquisas.

Walter Colli, médico formado pela USP, optou por identificar novos genes envolvidos na invasão celular. Mostrou, em 1987, como o ácido sialático glicosiltransferase pulava direto de uma proteína para o Tripanosoma. Coisa pequena, adequada para quem sabe ver. Fez uma trajetória brilhante como pesquisador e professor da USP, no Instituto de Química. Sua escolha, pelo estudo de um protozoário, explica por que ele é “meu tipo inesquecível”.

Como historiadora, lembro que ele faz parte de um pequeno número de pesquisadores diferenciados em suas concepções de mundo. Foram capazes de ver e se dedicar a objetos de pesquisa “tropicais”, cujos resultados nem sempre são reconhecidos e seus efeitos, visíveis a médio, longo ou longuíssimo prazo. Estudaram os mecanismos de transmissão das doenças, focaram em detalhes, novos genes e produziram conhecimentos.

Essa capacidade de ver o invisível ou o que é muito pequeno fez de Colli um professor observador das delicadezas das variações genéticas, da importância dos alunos de iniciação científica e das complexas demandas institucionais da Universidade. Várias habilidades difíceis de serem observadas em uma só pessoa.

Trabalhei com ele na elaboração do Relatório da Comissão da Verdade da USP e aprendi a ver detalhes da vida universitária, miudezas substantivas sem as quais a coisa pública não anda. Colli fez uma leitura atenta, página por página, de dez volumes do Relatório da Comissão da Verdade da USP, leu várias vezes as suas múltiplas versões, corrigiu e auxiliou os pesquisadores, sugeriu soluções e foi o amigo certo em horas incertas.

Obrigado, Colli, por ter se embrenhado em pesquisas importantes cujos resultados são muitas vezes imprevisíveis, mas a longo prazo podem beneficiar muitos brasileiros. Obrigado por ter compreendido a importância para o Brasil de instituições como a USP, como o Instituto Butantã, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e, especialmente, obrigado por ser capaz de enxergar no silêncio das palavras as dificuldades dos amigos, estendendo a mão a cada um deles.

No dia 10 de agosto de 2021, o professor Walter Colli recebeu em cerimônia virtual o título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo, entregue pelo reitor da Universidade, professor  Vahan Agopyan.

Parabéns, Walter Colli, pelo prêmio justo, com significado para a pesquisa, para USP e com muito significado para os amigos.

Janice Theodoro da Silva é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.


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