MAC reinaugura exposição de arte conceitual depois de mais de 50 anos

Circumambulatio, de Anna Bella Geiger, é símbolo da arte experimental contemporânea

 Publicado: 27/09/2024 às 17:10     Atualizado: 30/09/2024 às 17:27

Arte: Olívia Rueda**

Foto: Cecília Bastos

“Inclassificável.” É assim que a professora Heloisa Espada, do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, define a obra Circumambulatio, da artista plástica Anna Bella Geiger, em cartaz no MAC desde o sábado passado, dia 21. A exposição, também referida como instalação ou ambiente, reúne trabalhos realizados pela artista carioca com um grupo de estudantes em 1972, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, e volta a ser exposta no MAC pela primeira vez em 51 anos — a última havia sido em 1973. Entre textos, desenhos, imagens, produções audiovisuais e reflexões sobre a forma como o ser humano se organiza, Circumambulatio, que em latim significa “perambular em direção ao centro”, fica aberta ao público até 27 de julho de 2025.

A instalação

Não é necessário muito tempo para explorar Circumambulatio. Na primeira sala, de parede amarela, o visitante é apresentado à história da obra e à ideia por trás dela. Circumambulatio foi um marco na trajetória de Anna Bella Geiger, que passava, nos anos 1970, de um estilo abstracionista para o que passou a ser chamado de conceitual. 

Ao passar para a segunda sala, de parede preta, depara-se com os resultados dessa perambulação — e com a instalação, de fato. A professora Heloisa Espada – curadora da exposição – conta que a inspiração de Anna Bella vinha de suas leituras e de um desejo inquietante de entender por que o ser humano como sociedade se organizava em torno de um centro, de um porto seguro. 

Mulher de óculos.

A professora Heloisa Espada - Foto: Reprodução/IMS

Uma senhora loira.

A artista Anna Bella Geiger - Foto: Reprodução/Wikipedia CC BY 4.0

Diante dessa ideia, há fotos de estádios de futebol, de arenas e desenhos de círculos e espirais, acompanhados de frases dos mais variados autores. “Eram textos literários, da psicanálise, da história das religiões, de pensadores, da arquitetura e do urbanismo, o que fazia desse pensamento algo bastante eclético”, explica Heloisa. Ela acrescenta que essa pesquisa paralela nos livros partia da mesma ideia de apropriação de imagens comuns, compartilhadas por todos, mas utilizadas, nesse caso, em um modo de pensar específico. 

Um caderno com inscrições.

Embora Circumambulatio seja um trabalho coletivo, a curadora Heloisa Espada atribui a articulação e o valor simbólico a Anna Bella: “É seminal, porque é sobre o início da arte contemporânea” – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A exposição inclui um espaço reservado para a exibição de um “audiovisual” — já que não se utilizava o termo vídeo, à época. O conteúdo exibido por um projetor na parede traz imagens que contam um pouco do processo de produção da obra. “Essa obra foi realizada e concebida em 1972 por Anna Bella junto a um grupo pequeno de alunos para os quais ela dava aula no setor de Integração Cultural do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Era um educativo do museu”, explica Heloisa. Em um dos encontros, Heloisa e seus alunos foram até a Lagoa de Marapendi, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e fizeram desenhos na areia. Hoje, existe a definição de land art (arte-terra, em inglês) para o que eles fizeram, mas à época não era comum nem o termo nem a prática. 

É essa atividade — aliada a imagens do solo da Lua — que aparece no audiovisual por meio de fotos, todas tiradas pelo fotógrafo Thomas Lewinsohn. Para os efeitos sonoros, Anna Bella também valeu-se da contemporaneidade: “Ela usa uma música super tensa, do início da música eletrônica da Alemanha, super experimental (referindo-se à banda alemã Can) e da Inglaterra (em referência à banda Emerson, Lake and Palmer), algo inovador à época”. A narração do audiovisual é feita a partir de textos do psiquiatra alemão Carl Jung, de quem Anna Bella era leitora assídua na época. 

Duas pessoas olhando um quadro na parede.
Uma pessoa riscando o chão de areia.

A produção exposta em Circumambulatio é o primeiro audiovisual da história do acervo do MAC-USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Circumambulatio: um símbolo da arte contemporânea

O caráter experimental da obra de Anna Bella Geiger e seus alunos faz com que ela seja classificada como contemporânea. Em conversa com o Jornal da USP, a artista, hoje com 91 anos, alerta, porém, que sua experimentação tinha fundamento: “É experimental não num sentido de um laboratório onde seriam feitas experiências, mas de sempre pautar o seu trabalho nas suas ideias e nas suas atitudes”. 

É esse tipo de compreensão que Circumambulatio exige do espectador: “O visitante é colocado em uma situação em que ele não tem uma obra clara para se posicionar em frente e ler. É uma obra que não cabe nas categorias tradicionais e que exige do espectador uma outra postura, é inclassificável”, analisa Heloisa. 

O simbolismo de Circumambulatio vai além do material produzido em si. A obra foi produzida em um contexto de ditadura, no qual agrupamentos de pessoas e manifestações culturais poderiam ser vistos com maus olhos. Ainda assim, o então diretor do MAM, Frederico de Moraes, promovia encontros aos domingos, fora do museu, a partir dos quais surgiam ações e performances. “E começaram a aparecer tipos de manifestações artísticas que extravasavam as categorias das artes tradicionais de pintura, gravura, escultura, desenho, coisas mais tradicionais. São ações, performances, ambientações, vivências, apresentações musicais, o que não cabe nas categorias tradicionais”, conta a curadora. 

Anna Bella acrescenta ainda que a ecologia e o cuidado com o ambiente, conceitos igualmente novos à época, também estavam entre as suas preocupações: “Penso a arte como indagação, sobre seu próprio significado, natureza e função”. 

Paralelamente às experimentações promovidas pelo MAM, o MAC também se abria ao experimentalismo. Diretor do MAC à época, o professor Walter Zanini (1925-2013) viu algo de inovador e de processual na arte de Anna Bella e a convidou para expor em São Paulo. “Não satisfeito, comprou uma coisa que nem se sabia se era obra. Era uma ação, um conjunto de fotografias, textos e um audiovisual. Comprou Circumambulatio”, lembra Heloisa. Foi assim que, em 1973, a instalação foi exposta pela primeira vez no MAC, o que só voltou a ocorrer agora, em 2024. 

A escolha por refazer a exposição, com a artista completando 91 anos, é fruto de um trabalho de acervo, como conta a curadora. “Há dois anos, outros curadores estavam organizando uma exposição coletiva e quiseram incluir essa obra. No entanto, quando a compra foi feita, nos anos 1970, não foi catalogado um protocolo de montagem”. Por isso, as equipes de curadoria, de pesquisa e de acervo convocaram Anna Bella Geiger para participar do projeto Conversa de Acervo, para entender do que se tratava a obra e entender como apresentá-la ao público. O vídeo dessa entrevista é exibido na primeira parte da exposição e está disponível neste link.

Livro com uma fotografia de uma barriga.
Uma página de um caderno com anotações.

A primeira parte da instalação traz um folheto da época em que foi exposta pela primeira vez – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A exposição Circumambulatio, de Anna Bella Geiger, fica em cartaz até 27 de julho, de terça-feira a domingo, das 10hs às 21hs, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1.301, Ibirapuera, em São Paulo). Entrada grátis.

*Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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