MAC recebe diálogo entre belas artes e artes gráficas

Exposição reúne obras do acervo do museu e publicações do século 20, como jornais e revistas, doadas da Coleção Ivani e Jorge Yunes

 Publicado: 30/08/2024 às 16:18

Texto: Lara Paiva*

Arte: Simone Gomes

Exposição Experimentações Gráficas – Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta

Experimentações Gráficas – Doação Coleção Ivani e Jorge Yunes traz, a partir do sábado (31), ilustrações de artistas modernos ao lado de obras do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). A mostra foi inspirada a partir justamente da doação, feita em 2023, de 89 volumes ilustrados que faziam parte da Coleção Ivani e Jorge Yunes (CIJY). São revistas, livros e jornais do século 20 com ilustrações de grandes nomes como Regina Silveira, Emiliano Di Cavalcanti e Fayga Ostrower. A curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta, explora o trânsito entre as artes ditas “altas” e “baixas” e mostra uma nova linguagem visual dos artistas expostos. O diálogo entre as publicações se dá com 46 pinturas, desenhos e gravuras pertencentes ao acervo do MAC, 14 emprestadas pela CIJY e uma obra de coleção particular.

“É uma doação muito rica, com alguns volumes muito raros e com poucas unidades impressas. Às vezes, a duração era de um só exemplar”, comenta Renata Rocco, que organizou a exposição quando era diretora da CIJY. “Selecionamos publicações que faziam sentido para o MAC, com o objetivo de iluminar o acervo artístico e bibliográfico do museu, preenchendo algumas lacunas de artistas superimportantes e que têm uma representatividade menor.”

Duas mesas contendo volumes em cima delas.
Exposição inclui livros de arte raros, publicados no século 20 - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.
Cinco revistas sobre uma mesa.
Publicações trazem ilustrações de grandes nomes da arte brasileira - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.

O projeto curatorial é composto de duas premissas: a eliminação da distinção entre “artes maiores” e “artes menores” e a democratização pictórica da época. “As ilustrações eram muito importantes na formação de uma visualidade moderna. Essas imagens eram formadoras”, explica Renata Rocco. Em diálogo com obras do acervo, as publicações trouxeram facetas menos conhecidas de artistas destacados do museu. “Nós pensamos artistas numa chave do que é falado, reproduzido e exposto – mas na revista ou jornal, por exemplo, há outro tipo de reflexão, há outro tipo de potência na imagem, de forma mais ampla e democrática.”

Francis Melvin Lee, diretora de curadoria na Coleção Yunes, defende que a liberdade das pressões comerciais davam aos artistas mais espaço para experimentação.  “Existem reverberações, relações e cruzamentos”, explica. “É como se trouxessem o lado pouco revelado dos artistas.” As publicações eram voltadas para o público em geral – sejam títulos de vanguarda da cultura ou atrelados a órgãos de Estado. A curadora também destaca o protagonismo de mulheres, assim como artistas e publicações fora do eixo Rio-São Paulo.

A mostra é organizada de acordo com os artistas, o que permite a reflexão sobre a abordagem do autor dependendo do seu meio. “Trouxemos as manifestações artísticas de uma pessoa e deixamos todas próximas, para que o visitante possa pensar sobre a faceta de um artista ou os estilos pelos quais ele transitou”, afirma Renata. O percurso começa com capas da revista América Brasileira, ilustradas por Di Cavalcanti (1923), e termina com obra de Regina Silveira, dos anos 1990, que Renata considera como a comprovação da hipótese da exposição: “Ela é uma artista contemporânea que trabalha com a ideia de uma arte gráfica expandida, que ganha suportes e tridimensionalidade”.

Diminuindo a distância entre “belas artes” e “artes gráficas”

A tradicional divisão entre as artes consideradas maiores e menores demarca a historiografia da arte há muito tempo. “O que era chamado de arte ‘menor’ estava envolvido com um ofício; não era feito por um artista, e sim um oficial de mobiliário ou objetos”, explica Francis. “No caso dos impressos, eram considerados ‘menores’ por serem múltiplos. Mas justamente por essa consideração os artistas podiam fazer experimentações gráficas mais livremente. Alguns resultados são diferentes dos que eles praticavam para as artes ‘únicas’. Eles puderam extrapolar os limites de seus próprios estereótipos”.

Cinco quadros pendurados numa parede.
Os volumes de arte dialogam com pinturas do acervo do MAC - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.
Pessoas em volta de uma mesa com páginas de jornais antigos sobre ela.
Desvalorizadas na época de lançamento, publicações hoje são preciosidades - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.

Mesmo desvalorizadas na época devido à sua reprodutibilidade, as publicações, hoje em dia, são verdadeiras preciosidades pela raridade e boas condições nas quais se encontram. “É um veículo muito efêmero. Não era uma transposição do que os artistas faziam da pintura para as artes gráficas – eles pensavam o tipo de público e a forma que iam atingir, seja um folhetim ou um livro de luxo, como Cem Bibliófilos do Brasil”, diz Renata Rocco.

Trabalhando com o impresso, os artistas tinham menos recursos – por exemplo, não podiam usar cores ou certos materiais. “Eles estão restritos, e as soluções ficam mais criativas”, opina Mariana Motta, fotógrafa e pesquisadora da Coleção Yunes. “São principalmente publicações de caráter social – trabalhadores e operários, capas de revistas de movimentos, divulgação política da Aliança Nacional Libertadora, tipos brasileiros, como do Nordeste com Graciliano Ramos ou literatos como Carlos Drummond de Andrade. É um Brasil ‘social’, digamos assim.”

Ao contrário do discurso vigente, que posiciona o Rio de Janeiro e São Paulo como os únicos expoentes do Modernismo, publicações periódicas de outros Estados, como Paraná, Ceará e Bahia, mostram que o que se estava fazendo lá era tão moderno quanto os projetos do Sudeste. Um exemplo é a revista MAPA (1957), encabeçada por Glauber Rocha em diálogo com seu Cinema Novo, publicada na Bahia e ilustrada por Lenio Braga. Na segunda edição, também teve uma ilustração de Di Cavalcanti.

Objetivo da mostra é permitir que o público tenha acesso à coleção - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.

Não é a primeira vez que uma mostra no MAC explora as artes aplicadas. A exposição de 2021 Projetos para um Cotidiano Moderno no Brasil 1920-1960 teve curadoria feita pelo Grupo de Pesquisa Narrativas da Arte do Século 20, do qual Renata Rocco fazia parte e sob coordenação da então diretora do MAC, Ana Magalhães. Aventuras nas “menores” de grandes artistas como Di Cavalcanti, Mário Zanini, John Graz e Fulvio Pennacchi têm merecido protagonismo, explorando as artes gráficas, decorativas e cênicas (cenários e figurinos para teatro). Em Art Déco Brasileiro: doação Fulvia e Adolpho Leirner (2022-2023), com curadoria de Renata Rocco, Ana Magalhães e Gustavo Brognara, divulgou-se o acervo de artes decorativas (arte têxtil, mobiliários, entre outras) colecionado pelo casal Leirner nos anos 1950 e 1960.

“Espero que as pessoas possam olhar com outros olhos essas produções que ficaram relegadas como ‘inferiores’, e que possam se encantar como nós”, opina Renata. “Cada publicação é uma descoberta, e é emocionante entrar em contato com obras do museu pouco expostas. O acervo ilumina os volumes doados e vice-versa”, conclui.

A variedade da Coleção Ivani e Jorge Yunes

Com obras de 3 a.C. até os anos 1970, provenientes dos cinco continentes e coletadas ao longo de décadas, a Coleção Yunes almeja não só reunir, mas também compartilhar a arte, cultura e conhecimento. Após o falecimento de Jorge Yunes em 2018, a filha do casal, Beatriz, chamou pesquisadores e especialistas para organizar sistematicamente a coleção. Mas desde antes a coleção – localizada na residência da família – emprestou obras e recebeu pesquisadores.

A variedade é colossal. A coleção contém arte africana, asiática e sacra, pratarias e vidros, pinturas, esculturas, gravuras e desenhos, ícones russos, marfins, entre muitos outros itens. “É um universo que remete aos ‘museus-enciclopédia’ espalhados pelo mundo, que eram tendência na época”, explica Francis. “Fizemos uma qualificação do acervo, guiada pelas diretrizes que o casal já tinha aplicado. Trabalhamos com mais de 30 mil obras, com uma equipe de mais de 30 pessoas, com especialistas de diferentes núcleos.” O acervo também reúne conjuntos de outros colecionadores de arte, como Pietro Maria Bardi, Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo, e de grandes bibliófilos como Oscar Mendes e Erich Gemeinder, entre outros.

Um jornal e duas publicações antigas sobre uma mesa.
Coleção foi formada ao longo de décadas pelo casal Yunes - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.
Coleção ficava na residência da família Yunes - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.
Desenhos colocados em cima de uma mesa.
Obras da mostra estão à disposição do público e dos pesquisadores - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.

Proprietário da editora de livros didáticos Ibep (que incorporou a Companhia Nacional de Livros Monteiro Lobato), Jorge Yunes sempre foi apaixonado por literatura – algo evidente pela sua coleção de 60 mil títulos. A filha de Jorge e Ivani, Beatriz Yunes, que atualmente chefia a Coleção, diz que o objetivo é que o grande público tenha acesso aos acervos artísticos, bibliográficos e arquivísticos – por meio de cursos, empréstimos a exposições, doações e comodatos para museus públicos. “Nós acreditamos que uma das coisas mais importantes no ato de colecionar não é simplesmente colecionar, colocar na parede, acumular e organizar objetos, mas sim partilhar”, afirma. “A missão mais importante é deixar um legado e contar uma história.”

A construção da bibliografia referente aos artistas foi feita aos poucos. “Sempre que eles compravam alguma coisa, também compravam uma publicação relacionada ao artista. Assim foram criando um acervo bibliográfico em relação à coleção”, explica Mariana.

Dois homens pendurando um quadro na parede.
Montagem da exposição - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.
Homem fazendo medições numa parede.
Mostra será aberta neste sábado, dia 31, às 11 horas - Foto: Por curadoria, assinada por Renata Rocco, Francis Melvin Lee e Mariana Motta.

Com a catalogação, começaram as doações para diversas instituições. Além dos 89 títulos para o MAC, também foram doadas 3 mil peças ao Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP) e objetos, quadros, mobiliário, itens de gráfica e até um conjunto de 170 bengalas ao Museu Paulista da USP. Uma doação de 20 mil volumes foi feita à biblioteca da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); o Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, com uma proposta curatorial não eurocêntrica, recebeu 1.300 obras de arte africanas para acrescentar à arte asiática que compõe seu acervo. Já para o Museu Lasar Segall, foram destinados itens da área de teatro e cinema. “É uma coleção visitável e aberta ao público, que é como conseguimos extroverter e compartilhar com mais gente. Isso estimula a pesquisa acadêmica, e qualquer pessoa pode ir lá e estudar”, diz Francis.

Para as curadoras, a exposição – desdobramento da linha de pesquisa que vinha sendo explorada pelo MAC e, sobretudo, pela professora Ana Magalhães – é só o início. “É um começo que abre para várias outras pesquisas para o MAC como museu público e museu universitário, com uma difusão acadêmica muito grande. É o casamento perfeito”, conclui Renata Rocco.

A abertura de Experimentações Gráficas – Doação Coleção Ivani e Jorge Yunes ocorre no sábado, 31 de agosto, às 11 horas, e fica em cartaz até 23 de fevereiro de 2025. A entrada é gratuita, no MAC USP, Av. Pedro Álvares Cabral 1301, Ibirapuera, de terça a domingo, das 10 às 21 horas.

*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg


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