Louise Glück narra a beleza do cotidiano e o sombrio do mundo

Obra da ganhadora do Nobel de Literatura deste ano possui “forte intensidade emocional”, diz professora da USP

 20/10/2020 - Publicado há 4 anos
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A poetisa e ensaísta norte-americana Louise Glück, Prêmio Nobel de Literatura 2020 – Fotomontagem com imagem de National Book Foundation

É bem possível que os poemas da norte-americana Louise Glück, ainda inéditos no Brasil, já estejam despertando a atenção das editoras e devem ser traduzidos para o português. A expectativa é que a poetisa Prêmio Nobel de Literatura de 2020, que tem 77 anos e se destaca na literatura contemporânea dos Estados Unidos, deve dialogar com os leitores brasileiros pela sua sensibilidade de registrar o cotidiano da vida em família, cenas comuns, reflexões sobre a vida e a natureza.

Em entrevista ao Jornal da USP, a professora Mayumi Ilari, da área de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, falou sobre o percurso e a importância de Louise Glück. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Jornal da USP – Como é a trajetória de Louise Glück na literatura contemporânea?

A professora Mayumi Ilari, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – Foto: Arquivo pessoal

Mayumi Ilari – De origem judaica russa e húngara, Louise Glück tem uma longa carreira na academia e como poeta. É atualmente professora de poesia da Universidade de Yale. Sua poesia é por vezes citada como pertencente à chamada poesia confessional, que reúne autores distintos como Sylvia Plath, Anne Sexton, Robert Lowell e Allen Ginsberg, mais conhecidos no Brasil, embora tal afiliação seja alvo de forte controvérsia, dadas, entre outros, sua circunspecção e discrição. Não é uma autora polêmica ou de declarações de engajamento político, e sua escrita “de beleza austera” e “universal”, conforme ressaltado pela Academia Sueca, não adere a qualquer classificação identitária acentuada – religiosa, étnica, política ou de gênero -, permanecendo de modo relativamente neutro e intermediário entre diversas categorias.

JUSP – E quanto à poesia de Louise Glück? 

Mayumi Ilari – Louise Glück é uma autora conhecida no meio literário e de poesia nos Estados Unidos, com 12 livros publicados, diversos prêmios, inclusive um Pulitzer (1992), e uma carreira consolidada ao longo de mais de 50 anos. Sua poesia, por vezes equiparada em termos de densidade à poesia de Emily Dickinson e Elizabeth Bishop, é escrita em linguagem direta e concisa, sendo considerada acessível a diversos públicos. De forte compressão lírica e grande apuro nas escolhas de ritmo e repetições, sua escrita apresenta, no entanto, uma consistência tal que a afasta da linguagem coloquial. Com um bom trabalho de tradução, penso que poderia ser devidamente apreciada no Brasil.

Não é uma autora polêmica ou de declarações de engajamento político, e sua escrita “de beleza austera” e “universal” não adere a qualquer classificação identitária acentuada”

JUSP – Quais os temas que inspiram Louise Glück?

Mayumi Ilari – Frequentemente conhecida pela poesia de tom autobiográfico e de forte intensidade emocional, tendo por temas a família e a beleza encontrada no cotidiano, Louise Glück aborda também temas mais sombrios, como o isolamento, a traição, o trauma, a morte, a desagregação familiar, o sofrimento, o desejo, muitas vezes recorrendo às mitologias grega e romana, à história e à natureza, em sua figuração da experiência pessoal na vida moderna. Particularmente, tenho apreço pelas relações entre literatura e história. Penso que diversos dos temas e formas que a autora tão bem aborda ganham em densidade quando operam tais relações, como no caso do longo October, de 2004.

JUSP – Até que ponto o Prêmio Nobel é importante para a consagração de um escritor ou poeta? Embora o Brasil não tenha nenhum Nobel de Literatura, nossos poetas e escritores, como Guimarães Rosa, Cecília Meireles e Clarice Lispector, seguem sendo traduzidos, lidos e respeitados.

Mayumi Ilari – O Nobel de Literatura foi atribuído a escritores consagrados e a escritores que ajudou a revelar. A originalidade da obra e a capacidade de falar a leitores de qualquer origem sobre “temas universais” são apontadas como elementos importantes. No entanto, a imensa maioria dos contemplados é proveniente do continente europeu, com destaques individuais para a França, o Reino Unido e os Estados Unidos. Autores de apenas seis países da América Latina foram contemplados, e apenas seis mulheres, do total de 117 premiados. Certamente é de se lamentar que grandes escritores brasileiros tenham sido deixado de lado, além de seus méritos, porque preencheriam as condições indicadas. No caso de Guimarães Rosa, a omissão é ainda mais estranha porque houve uma época em que a crítica alemã estudou esse autor a fundo, superando os problemas criados pela peculiaridade de sua linguagem e a mistura de local e universal de suas histórias. E os autores que você cita ainda são ou já foram muitas vezes lembrados em programas de concursos de literatura brasileira pela Europa afora. Já foi dito que, para chegar ao Nobel, é preciso que o autor seja minimamente conhecido nos países nórdicos, e é possível que tenha faltado, no passado, um melhor trabalho nesse sentido. É preciso ressaltar, no entanto, que a Academia de Ciências da Suécia não faz as listas preliminares de nomes sozinha, e sim depois de consultar representantes dos vários países, no caso, das várias línguas e das várias literaturas. Esse era o procedimento há alguns anos. Seria interessante conhecer mais sobre esse processo, e sobre o modo como o Brasil poderia inserir nele representantes qualificados.

Imagem oficial da premiação de Louise Glück – Foto: Nobel Prize/Twitter

JUSP – Qual sua opinião sobre os nomes que já ganharam o Prêmio Nobel?

 Mayumi Ilari – Entre os ganhadores do Nobel do passado há indiscutivelmente grandes escritores. Uma vez que trabalho com teatro, minha primeira reação seria lembrar grandes nomes da dramaturgia, como Dario Fo, Eugene O’Neill, Luigi Pirandello e Samuel Beckett. Mas também é gratificante encontrar entre os agraciados, além dos inúmeros grandes romancistas,  poetas como  Pablo Neruda, Wislawa Szymborska e tantos outros, bem como verificar que a poesia, a prosa e o teatro foram prestigiados ao longo dos tempos, e que, a par de autores com raízes tipicamente nórdicas, como Selma Lagerlöf, o Nobel tenha premiado e ajudado a divulgar autores de países distantes ou pouco influentes, ainda que relativamente em bem menor escala.


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