Livro reconstitui a circulação da literatura russa no Brasil

Editora da USP lança “Dostoiévski na Rua do Ouvidor”, do professor Bruno Barretto Gomide

 23/08/2018 - Publicado há 6 anos
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Avenida Central, altura da Rua do Ouvidor com Rua Miguel Couto, no Rio de Janeiro: a então capital federal foi palco de intensa circulação de obras de escritores russos durante o governo de Getúlio Vargas – Foto: Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez via Acervo Instituto Moreira Salles

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“Eram anos de ditadura, guerra e literatura russa; de Gustavo Capanema, Filinto Müller e Fiódor Dostoiévski. Nomes e temas antagônicos e, por vezes, confluentes. A extensa bibliografia sobre a era Vargas, especificamente sobre o seu primeiro tempo, de 1930 a 1945, e mais ainda sobre o Estado Novo, afirma a centralidade simbólica da Rússia Soviética na política e na cultura brasileira daquela quadra atribulada.”

No primeiro parágrafo da introdução do livro Dostoiévski na Rua do Ouvidor – A Literatura Russa e o Estado Novo, do professor Bruno Barretto Gomide, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o leitor é apresentado a uma pesquisa que propicia a reflexão sobre os elos entre política, arte e literatura. Elos que surpreendem com a pesquisa de Gomide, iniciada há uma década, como uma continuação de seu doutorado. O autor investiga a relação dos textos russos, produzidos dentro e fora da Rússia, com o período do governo de Getúlio Vargas. O lançamento é da Editora da USP (Edusp).

“Esta pesquisa fala a partir de um momento de extraordinário interesse pela literatura russa no Brasil, sem dúvida um dos pontos altos de sua recepção”, esclarece o autor. “Tenta se conectar por vários fios ao outro momento empolgante e decisivo que constitui o objeto de sua análise. Cada qual tem seus méritos e especificidades. A inserção do texto russo na cultura brasileira contemporânea é mais sutil e tem contornos universitários, ao contrário da estridência histórico-mundial, de feitio jornalístico, promovida nos anos 1940.”

O ambiente político em torno da Revolução de 1930 construía pontes entre a literatura russa e o pensamento social.”

No primeiro capítulo, “As duas febres”, Gomide observa a literatura russa em dois momentos “culminantes”, segundo ele: os anos de 1930-1935 e de 1943-1945, que coincidem com o começo e o fim da era Vargas. Pontua também a sua importância entre os intelectuais e escritores brasileiros. “Compilar listas bibliográficas russas estava na ordem do dia. Com elas, estudar, angariar forças, amadurecer – enfim, na linguagem da época, refletir sobre as graves questões que aferroavam o Brasil e o mundo.”

O autor observa o novo clima político promovido pela influência da literatura russa. “O ambiente político em torno da Revolução de 1930 construía pontes entre a literatura russa e o pensamento social. Elas se espalhavam na forma de alusões à geração que findava, como vemos em uma nota de falecimento do ex-senador pernambucano Barbosa Lima, que mantinha livros de escritores russos ao lado de um busto de Comte”, escreve, referindo-se ao fundador do positivismo sociológico.

O segundo capítulo, “Sob o signo de Stalingrado”, mostra um panorama da literatura russa no jornalismo e no mercado editorial, fazendo uma análise do Brasil na ditadura de Vargas e também no realinhamento do País na geopolítica internacional. “O saldo editorial desse ambiente é uma gigantesca leva de edições russas, a maior já realizada no Brasil”, observa Gomide. “Nunca se publicou tanta literatura russa quanto entre 1943 e 1945. São nada menos do que 83 volumes de literatura russa, incluindo nessa categoria alguns textos de caráter filosófico, memorialístico, diários e algumas reportagens ficcionalizadas.”

A literatura russa vinha conquistando públicos fiéis pelo mundo, em círculos cada vez mais amplos.”

“Um abraço transoceânico” é o nome do terceiro capítulo e foi assim que Jorge Amado, segundo Gomide, se despediu de David Vygódski, em carta de janeiro de 1934 remetida a Leningrado. “O diálogo Amado-Vygódski aponta para um fato inédito nas relações culturais entre o Brasil e a Rússia: a troca direta de informações entre intelectuais brasileiros e russos. E não eram quaisquer intelectuais, mas um representante de respeito da nova geração de romancistas e um membro do que a intelligentsia russa tinha de melhor no período entre-guerras. Até aquele ponto, toda a vasta apropriação da literatura e da cultura russa fora feita quase sempre de forma indireta.”

O livro lançado pela Editora da USP (Edusp) – Foto: Reprodução

O quarto capítulo, “O pandemônio”, apresenta as tipologias sobre a literatura russa pelos vários discursos anticomunistas. “Não havia uma visão única das direitas sobre o assunto, que as obcecava. Tentaram dar combate a Dostoiévski, Tolstói e Górki, atraí-los para os seus propósitos ou simplesmente manuseá-los com um cuidado mesclado com fascínio”, explica.

O volume de textos críticos publicados entre 1930 e 1945 é abordado no quinto capítulo, “Os russos e o rodapé I: Os críticos”, e também no sexto, “Os russos e o rodapé II: autores e temas”. No último capítulo, “Uma enciclopédia da vida russo-brasileira”, o autor examina e questiona os significados da coleção de obras completas de Dostoiévski editada pela Livraria José Olympio Editora a partir de meados de 1944. Gomide questiona: “Por que a José Olympio escolheu Dostoiévski? A essa altura, depois da saturação dostoievskiana que acompanhamos, desde o noticiário sensacionalista e os gabinetes do Deops até os anseios mais íntimos da crítica literária e dos escritores, a pergunta já deve estar parcialmente elucidada.”

Dostoiévski na Rua do Ouvidor – A Literatura Russa e o Estado Novo, de Bruno Barretto Gomide, Editora da USP (Edusp), 464 páginas, RS 64,00.


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