Livro Branco Sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antônia – 2 e 3 de outubro de 1968

Professora Titular de Sociologia da FFLCH/USP, onde obteve sua Livre-docência e da qual é Diretora desde 2016. Em 1968, estudava Ciências Sociais na FFCL. Foi professora da PUC-SP e da FGV. Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária da USP (2010 a 2016). Recebeu diversos prêmios, entre eles Jabuti e Amigo do Livro. Escreveu, entre outros, Mitologia da Mineiridade, Embalagem do Sistema e Metrópole e Cultura: São Paulo no Meio do Século XX.

 03/10/2018 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 05/10/2018 as 7:58

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Apresentação

Livro Branco Sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antônia – 2 e 3 de outubro de 1968

Maria Arminda do Nascimento Arruda

 

O livro que o leitor tem em suas mãos é um documento impressionante dos acontecimentos ocorridos na rua Maria Antônia, sobretudo no edifício de nº 294 que sediava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL). Impressionante pelo caráter realista dos relatos, cuja leitura, ainda hoje, choca o leitor; contundente por suscitar sentimento de indignação diante de tanta iniquidade; comovente na acepção de provocar um misto de tristeza e mágoa, ao qual se mescla orgulho de perceber a integridade dos organizadores do documento e a força dos depoimentos nele reproduzidos. O chamado Livro Branco Sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antônia, 2 e 3 de Outubro de 1968, originalmente um relatório encomendado pela Congregação da Faculdade sobre o conflito desencadeado por estudantes da Universidade Mackenzie e alunos da instituição, pode ser mais bem apreciado com o distanciamento do tempo, quando as paixões foram arrefecidas. Ainda assim, o espanto provocado pelo texto se revela no reconhecimento posterior de que fatos apenas anunciados e que nem sempre estavam dados à percepção imediata dos participantes, menos ainda as suas consequências futuras, não eram aleatórios, tampouco casuais. O alcance do que se nomeou de “guerra da Maria Antonia” – evento iniciado no meio estudantil, mas que portava no seu bojo outros significados, conforme se vê na profunda reflexão de Irene Cardoso a respeito do momento, reproduzida na presente edição – ultrapassava as ocorrências relatadas.

O ensaio da socióloga aponta para percepções diferenciadas que emergiam no decorrer daquelas horas agônicas: “Diante do registro histórico da ‘guerra da Maria Antonia’, chamam a atenção especialmente dois dos depoimentos tomados, que na atualidade do próprio acontecimento, projetam uma interpretação dele, para além do relato ocorrido e apesar do tempo vertiginoso a que estiveram submetidos os fatos bem como a possibilidade da sua percepção. Chama a atenção ainda a estranha história à qual esteve sujeita a documentação oficial produzida pela Congregação da FFCL da USP, para a apuração daqueles fatos, durante o mês que se seguiu àqueles acontecimentos dos dias 2 e 3 de outubro na rua Maria Antônia… A estranha história da trajetória desta documentação oficial está marcada pelo seu desaparecimento. À sua pequena repercussão, seguiu-se o silêncio das próprias autoridades universitárias ligadas à Reitoria ou ao Conselho Universitário da USP e do Governo do Estado” (P.13-14).

O material recolhido pela comissão nomeada pela Congregação da Faculdade para elaborar “uma espécie de ‘Livro Branco’, a fim de permitir o estabelecimento da verdade”, segundo os termos do Prefácio do livro, havia desaparecido misteriosamente, após ter sido entregue às autoridades da Universidade. Uma cópia da documentação, no entanto, sobreviveu por iniciativa de Antonio Candido que confiou a sua guarda a Irene Cardoso, que, por sua vez, a ofereceu para ser publicada no presente volume, antes de enviá-la ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, fiel depositário do acervo do mestre. A presente publicação dá a conhecer esse rico material que embasou o Relatório, editado somente vinte anos depois por iniciativa de Antonio Candido e Irene Cardoso, com o apoio da Diretoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), por ocasião do vigésimo aniversário da invasão da rua Maria Antônia. Esse conjunto de fatos revela que o conflito entre os estudantes da Universidade Mackenzie e da FFCL estava longe de ser episódico, como o atesta a participação de jovens mackenzistas ligados ao Comando de Caça aos Comunistas – CCC – bem como das forças militares responsáveis pela manutenção da legalidade.

O trecho do depoimento de Antonio Candido não deixa margem a qualquer dúvida: “Supusemos também que, com a intervenção das forças da ordem, a violência acabaria. Eu me prontifiquei a datilografar o protesto que acabáramos de retocar, tendo o Secretário da Faculdade aberto para isso a sala do Arquivo, à direita da porta da entrada. Lá fiquei só, …quando ouvi na rua correrias, gritos, latidos e tiros. Dois rapazes e uma moça interromperam na sala…. Disseram-me para sair de perto da janela de vidro e agachar-me, como fizeram, pois estavam dando tiros; fecharam a luz e a porta, e permanecemos no escuro. A moça explicou-me baixo que a polícia tinha saído do Mackenzie, unida ao CCC, e juntos perseguiam estudantes nas ruas: alguns, como eles, tinham se refugiado nas Ciências Econômicas, cuja porta ouvimos fechar. Mas imediatamente após ela foi espatifada, pois ouvimos estouros e o barulho de vidro estilhaçado, seguido de tiros, parece que dentro do saguão, enquanto vozes iradas bradavam”: Saiam daí, seus f.… da p.…” Ao caráter desrespeitoso e chocante do relato soma-se a surpreendente omissão dos poderes constituídos, seja do Governo responsável pela segurança dos seus cidadãos, seja da Universidade obrigada a zelar por sua comunidade.

O sentido político dos acontecimentos da rua Maria Antônia é inequívoco: apontava para forças que não eram exclusivas do poder público e dos órgãos policiais, mas haviam se alojado em setores da própria Universidade, pois sequer a Congregação da Faculdade recebeu efetivo apoio, nem se exigiu investigações rigorosas sobre o ocorrido, apesar da violência que resultou no segundo assassinato de um estudante secundarista no Brasil em menos de seis meses, fatalidade que poderia ter atingido tantos outros feridos durante as agressões. Para Irene Cardoso, “a força da repressão política sobre a Faculdade de Filosofia e mais ainda o seu caráter de arbítrio crescente que vai tomando corpo nos anos subsequentes a 1968 significaram a intenção de destruir a instituição por parte da ditadura, processo conjugado com aquele que vinha de dentro da própria Universidade, não tão explícito porque caracterizado por omissões, ou conivências, em parte perceptíveis naquele momento e em parte apenas identificáveis posteriormente” (P.24).

O caráter vanguardista, especialmente das seções das Humanidades da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras incomodava, sobretudo destoava do regime ditatorial em curso e das propostas de reforma universitária orientadas por organizações estrangeiras. O esfacelamento posterior da FFCH testemunhou a presença desse duplo movimento, remetendo às novas compreensões sobre o sentido da universidade que haviam se formado nos anos anteriores, logo após o golpe político de 1964.

O Livro Branco documenta essa história que selou, em apenas dois dias, o destino da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O movimento não lhe foi exclusivo, espraiou-se para o conjunto da USP, como o atestam as aposentadorias compulsórias de professores nas mais diversas faculdades, o amordaçamento da liberdade acadêmica, a perseguição e prisão de docentes, estudantes, funcionários, quando não a morte nos cárceres do regime. A violência desabrida presenciada na Rua Maria Antônia levou de roldão a história pregressa da Universidade de São Paulo, comprometeu, por fim, nos rastros destrutivos do seu legado, o futuro de gerações inteiras.

A decisão da Diretoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de republicar o Livro-Relatório nessa edição ampliada, acompanhada da caixa dos documentos salvos do desaparecimento, originou-se da convicção sobre a necessidade de revisitar uma história frequentemente relegada ao esquecimento, por vezes distorcida quer por desconhecimento dos episódios, quer por narrativas intencionalmente deslocadas dos eventos, mas que acabam ganhando força de verdades incontestáveis. Os acontecimentos da Maria Antônia narram primordialmente a história das chamadas Humanidades no âmbito da Universidade de São Paulo, sendo, portanto, parte integrante da identidade dessas disciplinas. Por essa razão, recuperar aqueles momentos paroxísticos, após transcorrido meio século, autoriza reafirmar vocações formadas na trama densa de um passado apreciável; sobretudo permite abjurar projetos regressivos, ainda resistentes no presente.

Esta publicação não teria sido possível sem a participação e o empenho de Irene Cardoso, profunda conhecedora do período. O trabalho por ela desenvolvido, com a participação decisiva de Abílio Tavares, transformou a acanhada publicação existente num volume de incontornável significado para a compreensão da época. A ambos a nossa mais sincera e profunda gratidão, por terem realizado um projeto do qual todos saímos engrandecidos. O engenho e a arte do editor Plínio Martins e a colaboração da equipe da FFLCH foram essenciais à concretização, em tempo recorde, da edição. A Direção da Faculdade agradece a todos.

 

 

MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

São Paulo, 16 de setembro de 2018.

 


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