Instituições da USP abrem seus acervos para maratona cultural

Instituto de Estudos Brasileiros, Museu do Ipiranga e Museu de Arte Contemporânea participam do “Hackathon”

 02/12/2020 - Publicado há 3 anos
Por
Fotomontagem com cartaz da maratona Hackathon

O Museu de Arte Contemporânea (MAC), o Museu Paulista (MP) – mais conhecido como Museu do Ipiranga – e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) – todos da USP – participam da maratona de programação Hackathon, promovida pelo Goethe-Institut, em parceria com a Fundação Bienal de São Paulo. O projeto internacional, intitulado Abre-te Código, que já aconteceu em várias partes do mundo, chega ao Brasil com a curadoria do professor Leno Veras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O evento tem como objetivo convergir iniciativas de cultura digital e criar interfaces com os acervos museológicos, expandindo o acesso ao patrimônio cultural brasileiro. Os times participantes desenvolveram protótipos (como apps, jogos e sites) e puderam explorar acervos e coleções usando dados abertos de instituições culturais – além da USP, participam outras 11 instituições, como galerias, bibliotecas, escolas de arte e museus.

Dirigido a desenvolvedores e profissionais de TI (Tecnologia da Informação), estudantes da área e criativos, como artistas visuais, arquitetos e historiadores, o projeto aconteceu ao longo do segundo semestre deste ano. Além da maratona propriamente dita, que ocorreu entre os dias 22 e 25 de outubro, foram realizados workshops, oficinas e seminários, incluindo ainda conteúdos de capacitação, abertos e gratuitos. Uma comissão de seleção, composta de representantes de organizações internacionais e instituições nacionais de relevância no campo, avaliou as proposições e indicou os desenvolvedores habilitados – 14 no total –  para a segunda etapa da maratona (Sprint), em que os grupos selecionados contaram com mentorias de especialistas em diversas áreas do conhecimento, realizadas por meio de videoconferências, além do diálogo mediado com as instituições detentoras dos dados. Na última fase, os protótipos serão submetidos aos jurados. Estes nomearão os três melhores, que serão contemplados com viagens para conhecer o Hackathon Coding Da Vinci, na Alemanha, além de receber prêmios em dinheiro. A cerimônia de premiação será realizada no dia 12 de dezembro, às 15 horas, em live no canal do Goethe-Institut São Paulo no Youtube.

“O site de museu deixou de ser só uma fonte de informação e se tornou, efetivamente, uma ferramenta de pesquisa”

Formas Únicas de Continuidade no Espaço (1913), do artista italiano Umberto Boccioni, obra de domínio público disponibilizada pelo Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP – Foto: MAC

“É muito importante abrir nossos dados para esse tipo de iniciativa porque hoje em dia, com o avanço de tecnologia, sobretudo na área de programação, nós temos possibilidades muito interessantes de construção de ferramentas de interação entre acervos”, afirma a professora Ana Gonçalves Magalhães, diretora do MAC. Ela acrescenta que isso tem contribuído muito para a pesquisa, principalmente nessa situação de pandemia de covid-19. “Atualmente, os processos de digitalização e compartilhamento são fundamentais para a construção do conhecimento científico”, garante. Segundo ela, os museus são guardiões de informações preciosas, com referências precisas, e difundir esse tipo de dado para a construção de conhecimento através dos ambientes virtuais é imprescindível. Como lembra a professora, essa questão já vinha sendo discutida há muito tempo, mas não havia ainda conhecimento tecnológico para isso. “O site de museu deixou de ser só uma fonte de informação e se tornou, efetivamente, uma ferramenta de pesquisa.”

Autorretrato de Amedeo Modigliani, do acervo do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP – Foto: Acervo MAC

Além do avanço da tecnologia no que se refere à cultura, o Hackathon levanta a questão dos direitos autorais, como aponta a professora. “Ainda somos muito cerceados por uma legislação que, no caso brasileiro, é muito incipiente. É uma discussão que vem sendo estudada, e que precisamos enfrentá-la, porque, do contrário, não fazemos a pesquisa avançar”, comenta. Por isso, como ela diz, todas as obras disponibilizadas para a maratona são de domínio público. “Não só o MAC, mas todas as instituições do Brasil esbarram justamente na questão do licenciamento. Então, para conseguir participar e disponibilizar a informação rapidamente, partimos desse recorte”, explica. Ainda assim, há obras importantes contidas no dataset (conjunto de dados) do Abre-te Código, como o famoso gesso original de Formas Únicas de Continuidade no Espaço e o gesso original de Desenvolvimento de uma Garrafa no Espaço, do italiano Umberto Boccioni. Segundo a professora, o MAC é guardião de duas das quatro únicas esculturas do artista, e Formas Únicas é considerada pelos críticos e pelo próprio artista uma obra-prima futurista. Há também o único autorretrato do artista italiano Amedeo Modigliani e um conjunto de desenhos e pintura do brasileiro Ismael Nery.

Ana Magalhães explica que os diferentes times do Hackathon tinham disponíveis vários datasets para cruzamento de dados e que o MAC aparece ao lado da Bienal de São Paulo e do Instituto Moreira Salles (IMS), já que os três acervos possuem obras em comum. “Isso permite a criação de redes de programação para ler esses dados em conjunto”, diz. A ideia, segundo ela, é que os projetos revertam para o MAC como ampliação de programação e conhecimento sobre o acervo.

“Especialmente no momento em que vivemos, explorar a dimensão digital para trocas e acessos ao patrimônio documental tornou-se essencial”

Cartão-postal Lavandeiras, São Paulo, de Guilherme Gaensly, presente no banco de dados do Museu Paulista da USP – Foto: Museu Paulista

A professora e ex-diretora do Museu Paulista da USP Solange Ferraz de Lima concorda com a diretora do MAC: “Especialmente no momento em que vivemos, explorar a dimensão digital para trocas e acessos ao patrimônio documental tornou-se essencial”. Para Solange, “o exercício de prototipagem de aplicativos e soluções computacionais criativas para a difusão interativa de acervos aproxima áreas de conhecimento e gerações distintas, e isso é muito especial, sobretudo quando pensamos na necessária e permanente tarefa de conscientização para a preservação de nosso patrimônio documental”. A professora aponta também para uma tendência, que é o estabelecimento de parcerias institucionais e projetos de caráter colaborativo, amplificando o potencial de ações de extensão na sociedade.

Cartão-postal da Fotolabor, dirigida por Werner Haberkorn, um dos maiores editores de postais dos anos 1940 e 1950, disponível no banco de dados do Museu Paulista da USP – Foto: Museu Paulista

O Museu Paulista participa do Hackathon com três conjuntos de cartões-postais. “Fizemos um recorte curatorial do nosso acervo, que é muito amplo e diversificado, privilegiando documentos que não são, a priori, considerados como objetos de museu”, explica Solange. “Selecionamos cartões-postais da cidade de São Paulo produzidos por dois importantes fotógrafos e editores de cartões-postais – Guilherme Gaensly, que registrou a região central no início do século 20, e Werner Haberkorn, um dos maiores editores de postais dos anos 1940 e 1950 – e um conjunto de cartões-postais produzidos na Europa e colecionados no Brasil, que contemplam paisagens urbanas, naturais e reproduções de obras de arte dos principais museus europeus, abrangendo as primeiras décadas do século 20”, informa a professora. Segundo ela, foram disponibilizadas imagens e metadados de cerca de 800 postais com essas características, extraídos do banco de dados do museu.

Cartão de Paris, Rue Soufflot (Architecte du Panthéon) et le Panthéon, que integra o conjunto de cartões-postais produzidos na Europa e hoje pertencente ao acervo do Museu Paulista da USP – Foto: Museu Paulista

Como lembra Solange, os cartões-postais são fontes importantes para as pesquisas no campo da cultura visual, seja pela difusão de padrões paisagísticos de natureza fotográfica, seja pelas possibilidades que oferecem para o conhecimento dos processos gráficos e editoriais adotados nesse universo de reprodutibilidade técnica visual. “Os postais produzidos em escala de massa estão em nossos cotidianos e engendram processos de valoração de estéticas urbanas, bem como de visibilidade e invisibilidade de partes da cidade – temas que podem ser tratados por meio de games e demais formas de interatividade a partir de nossos acervos materiais”, diz.

“O objetivo é a criação de um aplicativo ou jogo que permita aos alunos do fundamental II e médio interagir com o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP”

Folheto de cordel publicado em Recife (PE), em 1913, por Leandro Gomes de Barros – Foto: IEB

“Trata-se de um processo pelo qual o IEB cede de forma espontânea uma seleção de seu acervo (de domínio público) a um grupo do Hackathon, que, baseado no escopo enviado, criará um software inovador e de interesse público”, reitera a professora Diana Gonçalves Vidal, diretora do IEB. Como lembra a professora, o IEB possui um “substantivo arquivo de metadados de domínio público”, que possibilita atingir o público-alvo: alunos do ensino fundamental II e médio. “O objetivo é a criação de um aplicativo ou jogo que permita aos alunos do fundamental II e médio interagir com o acervo do IEB”, afirma. “Foram selecionadas obras de cordel, na certeza de que elas abrem várias possibilidades de diálogo, seja no que tange à relação entre poesia e oralidade, também presente na elaboração dos slammers, seja na confluência entre manifestações da dita ‘cultura popular’”, explica.

Folheto de cordel Conselhos do Padre Cícero a Lampião, de Francisco das Chagas Batista – Foto: IEB

O conjunto de folhetos de cordel tem origem na coleção do escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945). Além de autores conhecidos como Leandro Gomes de Barros,  traz autores desconhecidos do público, mas que da mesma forma tratam de assuntos relacionados à vida humana de maneira engraçada, crítica, irônica e até mesmo sarcástica. Os folhetos são ilustrados com técnicas de gravura como a xilogravura e a zincogravura. Como afirma Diana, o entendimento da técnica de gravura, das localidades e das datas de publicação registradas contribuem para a compreensão do contexto de produção desses folhetos, marcado por uma incipiente indústria editorial e por tratamentos iniciais da questão de direitos de autor nos primeiros anos do século passado. Todos os folhetos estão transcritos, isto é, o conteúdo integral dos cordéis está disponível como metadado. Além disso, como informa a professora, “rimas e métricas podem ser facilmente localizadas nessas transcrições, que são fiéis à língua portuguesa do início do século 20, trazendo aos poemas uma sonoridade particular e facilmente reconhecível quando declamados”. A professora ainda destaca que os folhetos de cordel foram reconhecidos como patrimônio imaterial brasileiro em 2018, “pois, além de um gênero literário, são uma forma de comunicação, profissão e meio de sobrevivência para os poetas, e, se inicialmente estavam concentrados no Norte e Nordeste do Brasil, hoje os cordéis estão em todas as regiões brasileiras”.

Xilogravura que retrata o livro do Apocalipse, composta por Amaro Francisco Borges – Foto: IEB/USP

O IEB ainda disponibilizou matrizes de xilogravura, oriundas do acervo do Banco Santos. Entre os destaques está um conjunto de matrizes e impressões de Amaro Francisco Borges relativo ao livro do Apocalipse, da Bíblia. “Ao pesquisar esse conjunto, chegamos à figura de Giuseppe Baccaro, fundador da Casa das Crianças de Olinda, destinada a ajudar crianças desfavorecidas e que também estava comprometida em promover eventos de arte popular, nos quais a xilogravura é uma vertente”, conta Diana. E continua: “Foi Baccaro que encomendou a série Apocalipse a Amaro Francisco, artista que não trabalhava para as edições populares ligadas ao cordel. A encomenda foi considerada difícil para o artista, que fazia imagens quase que literais de passagens da Bíblia ao seguir passo a passo os capítulos e versículos”.

Um dado interessante, como lembra Diana, é que o IEB foi convocado para quatro mentorias do Hackathon. “Minha avaliação é que os projetos avançam de modo a cumprir os propósitos que levaram o IEB a integrar a iniciativa e, mesmo que nosso dataset não esteja entre os vencedores, os resultados obtidos até o momento já se revelam sensacionais”, comenta. A professora ainda revela que a parceria com as equipes promete se estender após a conclusão do concurso: “Estou muito confiante de que o IEB terá um aplicativo ou jogo disponível ao final da maratona, cumprindo com sua missão de comunicar seus acervos à sociedade”.

A cerimônia de premiação do Hackathon acontece no dia 12 de dezembro, às 15 horas, em live no canal do Goethe-Institut São Paulo no Youtube. Mais informações estão disponíveis no site do projeto.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.