Ideias de três grandes humanistas do Brasil são reunidas em livro

Livro recém-lançado traz artigos sobre o pensamento de Antonio Candido, Roberto Schwarz e Francisco Alvim

 02/08/2019 - Publicado há 5 anos
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O crítico literário e professor da USP Antonio Candido (1918-2017) – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

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Eles dedicaram a vida inteira a refletir sobre o Brasil, desenvolveram um pensamento crítico que aponta as contradições da sociedade brasileira e deram contribuições inestimáveis para a formação da melhor tradição humanista do País. Com essas características em comum, Antonio Candido (1918-2017), Roberto Schwarz e Francisco Alvim despontam entre os principais representantes da história cultural do Brasil. O livro Candido, Schwarz & Alvim – A Crítica Literária Dialética no Brasil, lançado recentemente pela Editora Intermeios, dá uma boa noção da trajetória, das ideias e da importância dos três intelectuais.

Com 290 páginas, o livro é resultado de evento realizado na Universidade de Brasília (UnB), nos dias 30 e 31 de agosto de 2017. Organizado por Edvaldo Bergamo e Juan Pedro Rojas, ele traz 20 artigos, escritos por pesquisadores de diferentes universidades brasileiras. “Trata-se de uma estirpe de intelectuais que ofereceu, por um processo de acumulação recorrente, uma enorme contribuição ao pensamento crítico e artístico brasileiro, assinalando com contornos definitivos o nosso breve século 20”, escrevem os organizadores na apresentação do livro, a respeito dos homenageados.

Dos 20 ensaios publicados na obra, 12 se referem a Antonio Candido, crítico literário e professor da USP de 1942 a 1992, quando, já aposentado, orientou a última tese. Os textos exploram o pensamento, a obra e a biografia do autor de Os Parceiros do Rio Bonito, livro que reproduz a tese de doutorado de Candido em Ciências Sociais, sobre comunidades tradicionais do interior paulista, defendida em 1954, na USP.

Um dos textos publicados no livro, por exemplo, aborda o conceito de “redução estrutural” em Antonio Candido. Assinado pelo professor de Literatura Brasileira da UnB Hermenegildo Bastos, ele mostra que a redução estrutural está relacionada ao processo pelo qual a realidade do mundo se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária. No livro Literatura e Sociedade, Candido exemplifica esse processo com o romance Senhora, de José de Alencar. “A compra e venda de um marido tem no romance um ‘sentido social simbólico’: funciona como representação e desmascaramento do casamento por dinheiro. O romancista reduz o ato a seu aspecto de compra e venda. O traço social funciona para formar a estrutura do livro”, explica Bastos. “Mas nada disso é afirmado abstratamente pelo romancista nem é ilustrado como exemplo. Está presente na própria composição do todo e das partes, na maneira como se organiza a matéria.”

Em outro artigo publicado no livro recém-lançado, a professora Patricia Trindade Nakagome, também da UnB, destaca a obra de Candido como professor. Ela cita frases de ex-alunos do crítico literário, como Augusto Massi – “Havia nele um gosto por ensinar, sempre fazendo isso sem uma atitude pedante, autoritária” -, para descrever o modelo de docente personificado em Candido. Os depoimentos desses ex-alunos, segundo Patricia, revelam a imagem de um professor apaixonado pelo seu objeto de ensino e, principalmente, cuidadoso com os alunos que estavam diante dele. “A necessária autoridade daquele que conhece seu ofício não resvalava no autoritarismo que, por vezes, cerca o conhecimento”, analisa a professora da UnB. “Eram igualmente respeitados a literatura, com sua possível erudição, e os alunos, que talvez não partilhassem inicialmente dos referenciais culturais a serem discutidos. Assim, o reconhecimento de seus tantos alunos revela um compromisso amplo com a literatura.”

Entrevista inédita

Trechos de depoimentos ainda inéditos de Antonio Candido constam de Candido, Schwarz & Alvim. No artigo “AC, uma jornada em torno da palavra”, o jornalista Marcello Rollemberg, doutor pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e editor de Cultura do Jornal da USP, relata a experiência de entrevistar o crítico literário ao longo de mais de dois anos, entre 2001 e 2003, quase semanalmente, em sua casa em São Paulo. O objetivo era publicar um livro com as memórias de Candido, em que se fundiriam sua história de vida e os acontecimentos mais marcantes da história e da cultura brasileira no século 20. “O que me deixava cada vez mais integrado naquelas conversas era o ser humano excepcional que Antonio Candido mostrava ser a cada dia, a cada hora, em cada conversa”, recorda-se Rollemberg. “Naquelas conversas descobri o Candido divertido, com uma memória fantástica e um talento impressionante para fazer imitações de personagens como Carlos Drummond e Graciliano Ramos.”

Gravadas em 15 fitas k-7, com duas horas de duração cada uma, as conversas com Candido foram transcritas, editadas e aguardam publicação. Uma pequena porção desse material está no livro organizado por Bergamo e Rojas. Nela, o crítico literário lembra seus anos de formação, a criação da revista Clima – da qual participou ao lado de intelectuais como Paulo Emílio Sales Gomes e Décio de Almeida Prado -, em 1941, e seu relacionamento com escritores da época. Um deles era Oswald de Andrade (1890-1954), autor de Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Pontegrande. “Quando saiu Marco Zero, que era o romance dele esperado havia dez anos, eu escrevi um artigo muito agressivo. Ele veio para cima de mim com um artigo violentíssimo”, rememorou Candido, que não se arrependeu da crítica. “Há realmente críticas que fiz das quais me arrependo muito, mas não essa. Essa era justa. Até se eu fosse refazê-la, teria de ser mais severo – o livro é muito ruim. Oswald é um autor curioso porque ele passa da obra-prima à borracharia. Há autores assim, como Balzac.”

Ainda nas conversas com Rollemberg, Candido se referiu aos seus primeiros anos como crítico literário: “Eu tinha aquele jargão de lutas de classes, valores burgueses, fim da sociedade arcaica, e comentava com simpatia os livros de cunho social. Mas nunca deixei o juízo político interferir na minha crítica. Isso, jamais. Mas isso despertou nos meios de esquerda muita receptividade. E nos meios não de esquerda também. O Álvaro Lins (1912-1970, jornalista e crítico literário pernambucano) dizia que gostava da forma pela qual eu escrevia, com clareza. Ele esperava que um ‘chato-boy’ fosse pedante, e eu não era. Mas mesmo que minha crítica fosse boa, não era uma crítica inovadora. Talvez eu tenha trazido algum tipo de contribuição nos meus primeiros anos como crítico, não na Clima, mas na Folha da Manhã, por fazer uma crítica que era visivelmente feita por um homem de esquerda, o que não era comum naquela época. A crítica era feita pelos católicos, que estavam em grande maioria. Então lá estava eu, um rapaz que era de esquerda e que fazia uma crítica de esquerda”.

Outros artigos sobre Candido publicados em Candido, Schwarz & Alvim são, por exemplo, “Estrutura, função e valor na crítica de Antonio Candido”, do professor da USP Edu Teruki Otsuka, “Realidade e realismo na crítica literária de Antonio Candido”, da professora Ana Laura dos Reis Corrêa e da doutoranda Elisabeth Ingeburg Souza Hess, ambas da UnB, e “O significado de ‘Nuestra América’: Candido e o universo literário latino-americano”, de Daniele Rosa, professora do Instituto Federal de Brasília (IFB).

Schwarz e Alvim

Depois dos textos sobre Candido, seguem-se os artigos sobre Roberto Schwarz e Francisco Alvim. De origem judaica, Schwarz nasceu na Áustria em 1938 e se mudou para o Brasil com a família no ano seguinte. Formado em Ciências Sociais pela USP em 1960, tornou-se assistente de Antonio Candido. Em 1969, com a ditadura militar, autoexilou-se em Paris, na França, onde se doutorou em Estudos Latino-Americanos pela Sorbonne. De volta ao Brasil, em 1978, lecionou na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O ensaísmo de Roberto Schwarz representa o esforço de produzir uma crítica de filiação marxista adequada à especificidade da realidade brasileira, com base no exame das relações complexas entre forma literária e processo social”, segundo os organizadores de Candido, Schwarz & Alvim.
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Roberto Schwarz: ensaísmo do professor e crítico literário representa o esforço de “produzir uma crítica de filiação marxista adequada à especificidade da realidade brasileira”, segundo os organizadores do livro Candido, Schwarz & Alvim – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

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O livro lançado pela Editora Intermeios – Foto: Divulgação/Editora Intermeios

Do poeta e diplomata mineiro Francisco Alvim – que nasceu em 1938 e publicou Passatempo (1974) e Elefante (2000), entre outras obras -, o livro traz quatro artigos. Um deles é “Um poeta dos nossos!”, de Eleonora Ziller Camenietzki, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Na poesia de Francisco Alvim percebe-se um sentido irônico que funciona como índice mais geral para as decepções vividas nos anos finais do século 20 e neste assombroso início de século. Seus versos revelam os impasses e a dificuldade para recuperar ou ativar as forças que levem à transformação das desigualdades que revelam”, escreve Eleonora. “Mas, ao insistir no processo de construção poética que aposta nas possibilidades de sua desconvencionalização, permite que a poesia e a práxis social instaurem entre si um diálogo intenso.”

Candido, Schwarz & Alvim – A Crítica Literária Dialética no Brasil, de Edvaldo Bergamo e Juan Pedro Rojas (organizadores), Editora Intermeios, 290 páginas, R$ 58,00.


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