Há cem anos nascia Narizinho, uma menina de nariz arrebitado

Exposição virtual da Biblioteca Brasiliana da USP lembra o surgimento da famosa personagem de Monteiro Lobato

 30/04/2021 - Publicado há 3 anos
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Imagem da exposição virtual promovida pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP – Acervo Iconographia

Uma volta à infância entre as páginas das histórias de Monteiro Lobato. É essa travessia que a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP está oferecendo. Os leitores vão ter a oportunidade de navegar pela vida e obra do escritor na exposição Uma Menina Centenária – 100 Anos de Narizinho Arrebitado, marco da literatura infantil brasileira. Em formato digital, a mostra tem a curadoria das professoras Gabriela Pellegrino Soares, da USP, Patrícia Tavares Raffaini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e do designer Magno Silveira.

Magno Silveira – Foto: Reprodução/Narizinho 100 anos
Patrícia Tavares Raffaini – Foto: Jefferson Mendonça/COC-Fiocruz
Gabriela Pellegrino Soares – Foto: FFLCH-USP

Entrar na BBM e acessar o livro A Menina do Narizinho Arrebitado, folheando as páginas uma a uma da edição original, é uma aventura virtual que o escritor não imaginou quando o escreveu há cem anos. Em imagens e textos, é possível acompanhar com detalhes o nascimento da personagem Narizinho nos primeiros manuscritos, observar as cartas das crianças leitoras que o escritor lia e relia atentamente e apreciar as ilustrações do cartunista Voltolino, que tanto despertam a imaginação das crianças.

Capa de A Menina do Narizinho Arrebitado, de Monteiro Lobato, ilustrações de Voltolino, obra publicada em 1920 – Foto: Acervo Iconographia

“Alguns dias antes do Natal de 1920, Monteiro Lobato publicou sua primeira obra escrita especialmente para o público infantojuvenil: A Menina do Narizinho Arrebitado”, conta a professora Patrícia Raffaini, do Departamento de História da Unifesp. “O livro com capa dura, em grande formato, havia sido impresso em quatro cores, na cidade de São Paulo. Nas suas 43 páginas, apresentava desenhos de um conhecido ilustrador: Voltolino. A capa devia chamar a atenção do público, com suas letras em cores vibrantes e a figura inusitada de um príncipe-peixe sobre a mão de uma menina com laço no cabelo. Nas margens, viam-se inúmeros animaizinhos, como borboletas, caramujos, sapos, besouros, toda uma pequena fauna que, no traço de Voltolino, parecia amigável e engraçada.”

 

“Perto de completar 18 anos, Monteiro Lobato ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Formado bacharel, retornou ao Vale do Paraíba, onde conheceu e se enamorou de Purezinha.”

 

Purezinha, mulher de Monteiro Lobato, “em toilette irrepreensível”, conforme anotou o escritor em fotografia de sua autoria – Foto: Acervo Iconographia
Marta, Edgard e Guilherme, filhos de Lobato, na Fazenda Buquira, no Vale do Paraíba – Foto: Acervo Iconographia

Os textos com as pesquisas dos curadores orientam os visitantes a conhecer a história do escritor, mostram como nasceu a sua literatura e reconstituem a realidade política e social do Brasil. “José Bento Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, no Estado de São Paulo, em 18 de abril de 1892. Na infância, desenvolveu um vínculo forte com o avô, o Visconde de Tremembé, dono de uma imponente biblioteca pessoal e da fazenda Buquira”, explica a professora Gabriela Soares, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “O mundo imaginativo do futuro escritor nutriu-se, sempre, das aventuras vividas entre os livros e na fazenda de café. Perto de completar 18 anos, Lobato ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Formado bacharel, retornou ao Vale do Paraíba, onde conheceu e se enamorou de Purezinha. Seguiu se dedicando a colaborações com a imprensa e logo trabalhará para o jornal O Estado de S. Paulo. Pintava, também, belas aquarelas, e tornou-se promotor de Areias. Com a morte do avô visconde, assume a responsabilidade pela fazenda Buquira. A essa altura, estava casado com Purezinha e pai de uma prole que chegaria a quatro.”

Praça Antonio Prado, centro de São Paulo, na década de 1920 – Foto: Acervo Iconographia

Gabriela situa o visitante da exposição no Brasil das primeiras décadas do século 20, com as transformações que incentivaram o nascer do mercado editorial e da literatura infantil. “A população urbana se adensava, embora estivesse longe de ultrapassar a rural. Situadas na próspera e poderosa região Sudeste do país – que em 1920 tinha o dobro da densidade demográfica do Nordeste –, Rio de Janeiro e São Paulo vivenciavam sua belle époque.”

 

“A história era vivida por uma protagonista bem brasileira: ‘uma menina morena, de olhos pretos como duas jabuticabas’, a despeito da capa, que a retratava como loira.”

 

Basta clicar na imagem e o leitor vai poder folhear o livro A Menina do Narizinho Arrebitado exatamente como foi lançado, com as imagens coloridas de Voltolino. Bom seria ter a edição nas mãos, sentindo a textura e o cheiro do papel. A proposta inicial da exposição bem que era receber o público no espaço da BBM, mas, com a pandemia de covid-19, o projeto foi reestruturado. Mesmo assim, o leitor vai se surpreender com o livro virtual. Os designers Magno Silveira e Rafael Souza reinventaram a mostra e a comunicação visual. Tudo para apresentar a mesma Narizinho um século depois.

Na época em que Lobato lançou a edição, os livros ilustrados eram em grande formato e, como explica a professora Patrícia, comercializados por editoras estabelecidas no Brasil que traduziam produções francesas e alemãs desde as últimas décadas do século 19. “Algumas dessas obras eram traduções de contos de fadas ligados à cultura popular tradicional europeia. Outras, como os livros de Benjamin Rabier, publicados pela Garnier, tinham características do gênero que mais tarde seria chamado de histórias em quadrinhos”, esclarece. “A obra de Lobato, no entanto, apresentava uma novidade. A história era vivida por uma protagonista bem brasileira: ‘uma menina morena, de olhos pretos como duas jabuticabas’, a despeito da capa, que a retratava como loira. Morando em um sítio com duas mulheres já idosas – sua avó e tia Anastácia –, ela vive aventuras na companhia de sua boneca de pano, a ‘excelentíssima senhora dona Emília’. O autor também inovava ao descrever uma natureza muito próxima à da criança brasileira: é à sombra de um velho ingazeiro que a protagonista alimenta piquiras, guarús, lambaris e parapitingas, todos habitantes do Reino das Águas Claras.”

 

“O escritor mudou muitos dos atributos até então associados à pele negra. Tia Nastácia tem voz, sabedoria e numerosas virtudes. Não porque sua pele seja clara, devido à mestiçagem; pelo contrário, seus traços negros são sempre realçados.”

 

Tia Anastácia e Guilherme, filho de Monteiro Lobato, Fazenda Buquira, 1913 – Foto: Acervo Iconographia

Os cem anos de Narizinho, homenageados na exposição, levantam um debate atual: o questionamento sobre o racismo na obra de Monteiro Lobato. Para esclarecer essa questão, a curadoria convidou a professora Cilza Bignotto, do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), que também participa do projeto com um artigo sobre o assunto.

“Nos últimos dez anos, trechos de livros infantis de Monteiro Lobato vêm sendo apontados ou denunciados como racistas, devido a passagens relacionadas, principalmente, à personagem Tia Nastácia. É o caso, por exemplo, da expressão ‘negra de estimação’, usada pelo narrador de Reinações de Narizinho para apresentar Tia Nastácia aos leitores”, destaca Cilza no artigo, que pode ser consultado na exposição. “A expressão – de fato chocante para os leitores de hoje – já aparecia no álbum A Menina do Narizinho Arrebitado, que iniciou a saga do Sítio do Picapau Amarelo. As denúncias de racismo, realizadas em processos judiciais e em artigos, palestras, postagens em redes sociais, levaram a uma série de debates públicos, que continuam ocorrendo em várias esferas da educação, do direito, dos estudos literários, dentre outras.”

Porém, a professora levanta outras questões: “Lobato poderia ter representado personagens negras de outra maneira na época em que produziu seus livros? Será mesmo que o contexto em que um escritor vive tem tanta importância no desenvolvimento de sua obra?”.

O escritor Monteiro Lobato – Foto: Acervo Iconographia

Cilza Bignotto analisa a literatura de Lobato dentro da realidade social da época em que ele lança Narizinho. “O escritor mudou muitos dos atributos até então associados à pele negra. Tia Nastácia tem voz, sabedoria e numerosas virtudes. Não porque sua pele seja clara, devido à mestiçagem; pelo contrário, seus traços negros são sempre realçados”, relata. “Outra forma utilizada por Monteiro Lobato para transformar o modo como personagens negras eram retratadas foi a crítica irreverente às demais obras infantis que então circulavam. É o que se observa, por exemplo, na cena de O Circo de Escavalinhos, em que Pedrinho explica a Narizinho que Tia Nastácia talvez não vá ao espetáculo das crianças porque na plateia há muitas princesas: ‘Está com vergonha, coitada, por ser preta’. Quem não teria vergonha, sabendo que a própria pele estava associada a maldições diversas? Qualquer conhecedor de contos de fadas de origem europeia – e Tia Nastácia os conhecia bem – saberia que negros só entravam em histórias protagonizadas por princesas para encarnar o mal ou atrair maldições. Narizinho responde que Tia Nastácia não deve ‘ser boba’ por ter vergonha da própria pele.”

A exposição virtual Uma Menina Centenária – 100 Anos de Narizinho Arrebitado, promovida pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, está disponível neste link. Clique aqui.

 


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