Sofia recebe uma mensagem em seu celular: precisa deixar o quarto em que está hospedada. Confusa, vai parar onde estuda, a Universidade de São Paulo. Vaga pelos prédios, praças e ruas da Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, na Zona Oeste da capital paulista. Está sozinha e desencontrada, mesmo quando seu caminho cruza com um ou outro conhecido. Luto, solidão e incerteza a consomem em sonhos e memórias.
Esse é o enredo de Sofia Foi, longa-metragem de estreia de Pedro Geraldo, que faz da USP o seu cenário. Na verdade, o campus da Universidade pode ser considerado mesmo um personagem do filme. É ele quem mais dialoga com a protagonista, interpretada por Sofia Tomic – a coincidência dos nomes não é acaso –, a partir de seus prédios cinzas e amplos, suas águas silenciosas e proibidas, árvores retorcidas e pedras mudas. O longa estreia em circuito nacional no próximo dia 19.
O ponto de partida para o projeto foi a inquietação causada em Pedro Geraldo pelo histórico de mortes trágicas de estudantes na Cidade Universitária – casos de suicídios ou tragédias como a do estudante Victor Hugo Santos, encontrado afogado na Raia Olímpica da USP em outubro de 2014, após uma festa. “Isso mexeu comigo”, conta o diretor. “Eu me questionava como um estudante vai para um espaço no qual atravessa esse período da adolescência para a vida adulta e essa fatalidade acontece.”
A amizade e a intimidade entre Pedro e Sofia, que se conheceram há dez anos no curso de Cinema da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo, foram outro determinante para a produção do longa. Sofia não chegou a concluir o curso de Cinema, transferindo-se para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, mas o contato se manteve, assim como o desejo do amigo em torná-la protagonista de um filme.
E quando a ideia começou a sair do papel, foi Sofia quem determinou por quais lugares da Cidade Universitária sua personagem transitaria em sua aflição.
“A seleção dos espaços foi a partir da minha própria vivência, lugares que frequentava como estudante, mas também fomos entendendo o que fazia sentido dentro da narrativa”, explica a atriz. “Era muito importante para nós trazer elementos como o Conjunto Residencial da USP (Crusp), as Colmeias, onde os estudantes ficam no celular usando o wi-fi, o lago – como um espaço quase deslocado, que foi projetado para uso geral dos estudantes, mas acabou cercado – e também a própria FAU, os arredores, os caminhos longos.”
A direção de Pedro aposta em uma câmera contemplativa, que deixa a ação acontecer diante de si. Um estilo quase documental que, reunido ao privilégio dado ao silêncio, lembra muitas vezes o cinema do diretor malaio Tsai Ming-Liang. Econômico em seus diálogos, o filme deixa falar os sons do ambiente, vibrações de celular, a música das festas. Mas, sobretudo, o silêncio de um luto seguido de despejo, que tira o rumo de Sofia. Presa nas recordações, seu tempo presente é vivido a distância: ela realiza seu trabalho de tatuadora, mas nem mesmo se dá ao trabalho de contabilizar quanto ganhou. Deixa-se dormir no chão, celular à mão e carteira exposta. Sua única companhia constante é o cigarro.
Perdida, vai de um ponto a outro do campus, que é construído não como um espaço cheio da agitação da vida estudantil, mas um ambiente de opressão grandiosa e repleto de vazios. Estão lá o prédio da FAU, ícone modernista projetado por Vilanova Artigas, o Crusp, a Praça do Relógio, o prédio da Reitoria, o lago, a Raia Olímpica. Coordenadas onde muitos já encontraram seu lugar no mundo. Mas não Sofia, que só encontra a si mesma refletida nas paisagens desertas.
Cenas do filme Sofia Foi – Foto: Divulgação/Assessoria de imprensa do filme Sofia Foi
De acordo com Pedro, houve uma preocupação “muito grande” em captar a materialidade das coisas e pessoas no filme. Desde a pele da personagem – sem esquecer que seu próprio trabalho é marcar a pele de outras pessoas – até os espaços para os quais Sofia é levada. No longa, esses ambientes uspianos surgem contrapostos. Há o brutalismo, imponência ou mesmo agressividade das construções, por um lado, mas também a leveza da natureza, das árvores e águas, por outro. “Gosto da contraposição desses elementos e usamos isso narrativamente. As trocas de afeto, por exemplo, acontecem nesses espaços naturais”, relata o diretor.
Mesmo os encontros que atravessam a jornada de Sofia parecem atrofiados diante dos efeitos que a Universidade causa nela e também nos outros. Ela não sabe muito bem o que faz lá – mais frequenta do que estuda na USP, diz em certa altura do longa – e essa falta de pertencimento só aguça a solidão trazida pela perda de uma pessoa querida. Os recorrentes closes no rosto, lábios e mãos da protagonista, o foco no detalhe e a proximidade excessiva são colocados dialeticamente em relação ao ambiente desolador.
Mais do que atrofiado, o contato humano simplesmente não ajuda. Os encontros são tênues e, mesmo quando há ternura, pesa o desconforto. Um amigo que anuncia a partida e reclama da mãe, um estranho que a provoca com análises ácidas e precisas. Mesmo quando vai a uma festa, Sofia prefere tomar sua cerveja afastada, acolhida pela sombra de uma árvore. O ápice desse rompimento com o mundo é quando tem seu celular furtado e corta-se uma importante fonte de comunicação com os outros.
Relações conturbadas que servem de espelho para a protagonista, com angústias que reverberam as suas próprias. Os atores coadjuvantes do longa foram escolhidos entre amigos de Sofia e suas falas ecoam as próprias dúvidas da protagonista. “Esses personagens servem como duplos de Sofia. Por mais que ela esteja em um momento muito interno, essas pessoas falam por ela”, comenta Pedro.
Em sua solidão, Sofia perambula pela Cidade Universitária, no filme Sofia Foi – Foto: Divulgação/Assessoria de imprensa do filme Sofia Foi
Problemas familiares, insegurança domiciliar e privilégios de classe são temas que surgem em diálogos criados no sabor do momento, quando a câmera está a postos. Sofia explica que as gravações aconteceram sem a presença de um roteiro clássico de cinema. “Quando me fez o convite, Pedro me deu um caderno, pedindo que anotasse sensações e coisas que eu gostaria de viver no filme”, explica a atriz. Tendo essas notas, o tema da morte como referência e as coordenadas de que a história acompanharia 24 horas da vida da protagonista, a dinâmica no set foi instituída de maneira fluída, com possibilidades de reajuste da rota sempre que necessário.
A presença do caderno, dos amigos e do ambiente em que estudou aponta para o caráter autobiográfico do longa. A própria cena em que Sofia tatua algumas mulheres foi feita em um evento no qual a atriz estava realmente trabalhando. Mas não se trata de um produto documental. A ficção constitui elemento decisivo na narrativa, ganhando corpo durante as próprias gravações, como revela a atriz.
“Fazia sentido migrar para um caminho mais ficcional. E todas as cenas foram produzidas e feitas em estado de improviso. Nunca tivemos o texto delas escrito antes de acontecerem”, conta Sofia. “Fomos entendendo a intenção e o desejo que podiam significar e cada momento da filmagem acabou transformando isso, gerando um material que não imaginávamos.”
Das gravações, feitas em 2018, até a finalização do longa foram cinco anos, quando só então o roteiro foi terminado, o final da história, decidido, e as últimas imagens, gravadas. Não sem muitos debates entre os dois sobre a melhor maneira de conduzir a narrativa. “Foi muito importante poder contar com a Sofia e muito do processo de filmagem fomos só eu e ela”, comenta Pedro. “Concentramos as funções em nós dois como forma de criar algo íntimo.” Os dois partilham os créditos de roteiro e som direto, enquanto Pedro também assina a direção de fotografia e Sofia, a direção de arte.
Premiado como melhor obra de estreia no Festival Internacional de Cinema de Marselha (FID Marseille) em 2023, Sofia Foi estreias nos cinemas brasileiros em 19 de setembro.
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