Formadas pelo Curso Superior do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) em 2008, Jasmin Tenucci e Thaís Fujinaga foram premiadas este mês pelas suas produções que retratam problemáticas sociais do Brasil. Jasmin ganhou o troféu de Melhor Direção da Competição Nacional no CURTACINEMA 2021 (Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro) pelo curta Céu de Agosto no dia 11 de novembro. Já o longa A Felicidade das Coisas, de Thaís, venceu o prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE), de melhor longa-metragem nacional de diretor estreante (que tenha realizado no máximo dois filmes no formato) no dia 3 de novembro na após a participação na 45ª edição da tradicional Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Indicado ao prêmio Palma de Ouro, no Festival de Cannes, Céu de Agosto foi exibido presencialmente nas telonas no Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro. “Voltar ao presencial, à sala de cinema já é algo satisfatório em si, com o meu filme mais ainda”, comenta Jasmin. “Estar numa sala de cinema no Brasil é uma emoção imediata”. Ela conta que pelo curta ser brasileiro existe uma diferença em olhar as reações das pessoas assistindo: “sentir quando eles param de respirar, quando eles relaxam e qual é o clima no final do filme”. A cineasta explica que os brasileiros captam sutilezas da tela que ela não tinha planejado. Aspectos sociais e linguísticos que a imagem carrega, como perceber que a protagonista tem sotaque potiguar em São Paulo. No filme há camadas de compreensão que um estrangeiro não consegue identificar, acredita Jasmin. “Assistir no Brasil é outra sensação, é uma tensão para saber o que o público está falando sobre o filme e o que ele sente ao assistir”, afirma.
Céu de Agosto é uma narrativa ficcional sobre uma enfermeira grávida que lida com uma crescente ansiedade sob os efeitos da poluição advinda das queimadas enquanto se vê atraída por uma fiel de uma igreja neopentecostal e por sua comunidade. A ideia do filme surgiu em 18 de agosto de 2019, quando o céu da cidade de São Paulo escureceu e foi tomado pela fumaça vinda de queimadas da região amazônica.
Segundo a diretora, o curta-metragem contém o sentimento de que era uma questão de tempo para que víssemos consequências bem palpáveis dos acontecimentos políticos e sociais no Brasil nos últimos anos, com o impeachment de Dilma Roussef em 2016 e os espaços que a extrema direita conquistou, sobretudo com a ascensão de Bolsonaro na presidência. “Isso nos afeta em todos os âmbitos, inclusive na nossa saúde física e mental”, ressalta Jasmin. Ela dá o exemplo da personagem principal, Lucia, que está mergulhada em sentimentos de angústia e medo que vêm à tona mesmo sem saber ao certo as origens ou se são atrelados a algum significado. “É algo que está no ar e ela sente sem racionalizar, acredito que todos sintam isso”, destaca a cineasta.
Em relação ao Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro, Jasmin conta que já fotografou alguns filmes que participaram quando estava na faculdade. Neste ano, ao receber o prêmio, ela disse que dirigia quando estava na ECA e depois se afastou da função pois virou roteirista. “A direção é um lugar muito exposto e muito frágil”, acredita a cineasta. “É um desafio para uma mulher, principalmente porque há dez anos era um lugar difícil de navegar. Depois senti muitas saudades e voltei a dirigir”, lembra Jasmin. “Receber esse prêmio de alguma maneira ajuda a perceber que estou no caminho certo, mostra que o que eu faço faz sentido e que ressoa nas outras pessoas. O prêmio de direção tem esse significado e é muito importante para mim”, celebra a diretora.
O curta foi muito celebrado em festivais de cinema. Além de receber a Menção Especial no Festival de Cannes, na França, a produção também venceu o prêmio de melhor curta nacional, melhor direção e melhor atriz (Badu Morais) no 15º Festival For Rainbow, um festival LGBTQIA+. E no 10º Festival Cinema com Farinha, o curta foi o vencedor na categoria “Melhor atriz” (Badu Morais) e melhor direção. “Foram prêmios que me deixaram muito feliz, principalmente o de melhor filme, pois contempla toda a equipe e o de melhor atriz, já que Badu é o coração do filme e ela é uma atriz excepcional”, conta Jasmin.
Além disso, Céu de Agosto acaba de ser incluído na reta final da lista de filmes pré-selecionados para a 24ª edição do Short Shorts Film Festival & Asia , a ser realizada em Tóquio, no Japão, em junho de 2022, um dos maiores eventos mundiais dedicados exclusivamente aos curtas. “Eu espero muito que o filme seja selecionado para o festival. Short Shorts é muito importante, é uma chance de falar com o público asiático e também é uma chance de realizar um sonho: conhecer Tóquio”, declara Jasmin.
Cotidiano de gestos e afetos
Em declaração oficial, o júri da ABRACCINE, justificou a concessão do prêmio para A Felicidade das Coisas “pela tessitura do cotidiano e do político no retrato de uma família de classe média brasileira que se revela em gestos, afetos, faltas e frustrações, sobretudo a aflição materna em um cenário – e país – à beira do abismo”. Thaís Fujinaga conta que ser premiada na 45ª edição da tradicional Mostra Internacional de Cinema de São Paulo pelo seu primeiro longa-metragem foi “muito importante e emocionante”, pois é uma forma de reconhecimento de seu trabalho. O filme já tinha sido transmitido no Festival de Roterdã, na Holanda, porém apresentar de forma presencial no Brasil foi importante para a cineasta. “Poucas pessoas assistiram na plataforma online, mas a minha sensação é que a nossa estreia foi na Mostra SP, na sessão do dia 21 de outubro, quando eu vi o filme projetado com a equipe, elenco e público pela primeira vez”, relata Thaís.
A Felicidade das Coisas é a história de Paula, que está esperando o terceiro filho, enquanto passa o tempo entre uma praia feia e uma recém-adquirida e modesta casa de veraneio, no litoral paulista, onde pretende construir uma piscina para os filhos. Quando seus planos se desfazem por conta de problemas financeiros, ela se torna cada vez mais sufocada pelo peso das responsabilidades. Deixada sozinha pelo marido e lidando com as constantes demandas do filho adolescente, que está conhecendo um novo mundo, Paula precisa confrontar suas próprias expectativas e frustrações, o que revela uma associação profunda entre amor e perda.
Thaís explica que tinha escrito há muitos anos um curta sobre uma mulher que queria construir uma piscina em sua casa de praia vizinha a um clube de veraneio. Em 2014, ela foi convidada pela produtora Filmes de Plástico para participar do edital de Núcleos Criativos do FSA e transformou o curta em um longa. A cineasta sempre teve vontade de filmar em Caraguatatuba, mais especificamente no bairro Morro do Algodão, onde passou todos os verões até o fim da adolescência. Encravado no centro do bairro há um clube chamado Ilha Morena, construído sobre uma pequena ilha fluvial. O rio que contorna o clube também passa no fundo dos quintais de muitas casas do bairro, inclusive da casa da família dela. “Esse rio que separa o clube da vida de quem está fora dele foi um dos primeiros elementos que pensei para construir a história”, descreve Thaís.
Acostumada a produzir curtas-metragens, Thaís passou por alguns obstáculos na produção do primeiro longa. “Entre meu último curta, em 2012, e a filmagem do longa foram seis anos sem filmar, tive um primeiro medo: o de estar ‘enferrujada’. O roteiro foi o momento mais prazeroso e fluido de todo o processo. Difícil mesmo foi todo o resto”, confessa a diretora. Um dos desafios dela foi fechar o elenco de apoio. “Foi muito cansativo ir às escolas para achar os adolescentes, achar os centros de pesca para conversar com os pescadores locais. Eu vejo cada personagem secundário do filme, que às vezes aparecem em só uma ceninha, e sinto muito orgulho deles e do nosso trabalho”. Um dos momentos mais marcantes de Thaís na escolha dos atores foi trabalhar com os adolescentes locais. Os selecionados disseram que sabiam nadar, mas na hora a situação mudou completamente, tanto que a diretora teve que contratar um professor de natação. Por fim, os atores adolescentes Messias Gois, Matheus Rodrigues e José Eduardo Magaba “acabaram arrasando na cena”, comenta Thaís.
Thaís explica o que o filme tem a dizer sobre o Brasil. “Quando dei meus primeiros passos no cinema, durante os governos do Lula, comecei a me entender no mundo como uma agente, e não somente uma espectadora, e a minha geração e pessoas do meu convívio começaram a sentir que as portas estavam se abrindo. Quando a Dilma foi tirada da presidência, esse otimismo foi golpeado também. Para mim, é como se todos nós, em alguma medida, tivéssemos diante de um fato duro de aceitar: nossa felicidade, individual e coletiva, teria que ser adiada”. Para a cineasta, o filme tem um sabor de um “quase lá”. Um sentimento de que sempre está faltando algo. No filme este sentimento está representado na compra da casa na praia com um dinheiro que advém de esforço e muito trabalho, mas ainda falta alguma coisa: uma piscina. “No meu caso, consegui fazer o primeiro longa, mas não vivo de cinema como sempre sonhei”.
Outro aspecto interessante do filme e que a cineasta aborda é a discussão sobre o consumo. “Todos nós somos consumidores ou consumistas, vivemos em um sistema que estimula o consumo e estamos sempre querendo coisas mais ou menos necessárias”, ela afirma. A diretora descreve que a personagem Paula querer uma piscina é legítimo do ponto de vista da sua subjetividade. A personagem não é mais ou menos feliz por querer uma piscina para si e para sua família, de acordo com Thaís. A infelicidade é simplesmente a ausência da felicidade que, por sua vez, é sempre transitória. Quando a personagem, seus filhos e sua mãe entram na piscina, a felicidade que sentem ali não é fútil. “É felicidade plena, mas é pontual e fugaz. Porque depois os problemas vão continuar rondando… a falta de dinheiro, o marido ausente, as dificuldades das relações íntimas, entre outras questões. Mas esses problemas continuariam ali a despeito do projeto da piscina ter dado certo ou não”, comenta Thaís.