Está combinado: nós vamos brincar separados 

Cada um em sua casa, vendo em segurança a folia de Momo pela TV ou pela internet, nas mais variadas lives. É o que resta, depois que o carnaval foi cancelado por causa do coronavírus

 12/02/2021 - Publicado há 3 anos
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A região do Pelourinho, em Salvador, na Bahia, no dia 10 passado, quarta-feira: as ruas deixaram de receber os foliões que nesta época, nos anos anteriores, se aglomeravam aos milhares  – Foto: Carla Risso

 

“Este ano não vai ser igual àquele que passou”, cantavam foliões animados nos salões Brasil afora desde os anos 1960, quando a marchinha Até Quarta-Feira, de H. Silva e Paulo Sette, foi lançada. Mas parem tudo, parem a música. Nestes tempos de pandemia, a famosa marchinha guarda algumas verdades e, pela ótica atual ditada pelo coronavírus, uma incorreção. Vale a pena dar uma olhada. A primeira afirmação correta é justamente dos versos que abrem este texto: definitivamente, este ano não vai ser igual àquele que passou. Mas não vai mesmo. Só que não pelos motivos que os autores imaginaram: “Eu não brinquei, você também não brincou”. Aí está a incorreção: ano passado, quem gosta de carnaval brincou até não poder mais – e nem imaginava o que aquele vírus que deu as caras ao mundo em finais de 2019 iria fazer a partir de março, transformando o ano de 2020 e esse seu incômodo prolongamento travestido de 2021 em uma interminável quarta-feira de cinzas. A fantasia comprada vai ficar guardada ou pendurada em algum cabide indigente.

Porque, como todos já sabem, este ano não vai ter carnaval, este mesmo que iria oficialmente do dia 12 até o dia 16, uma terça-feira que deixou de ser gorda para ficar bem raquítica. Culpa da covid-19, que obrigou o rei Momo a se manter em distanciamento social e afastar a folia das ruas e dos clubes. Cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Olinda, populares por seus muitos dias de folia e brincadeira – já vai longe o tempo em que só eram três dias –, cancelaram qualquer possibilidade de festa e de sua consequente aglomeração. Não há feriado, não há ponto facultativo, não há blocos a reunir centenas de milhares de pessoas pulando como se não fosse haver amanhã. E é justamente para que haja que a farra foi deixada para depois. Então, como diz a marchinha, está combinado: nós todos vamos brincar separados.

E cada um em sua casa, vendo o carnaval pela TV, pelo computador ou celular. Ou, na verdade, um simulacro de carnaval. Sem os tradicionais desfiles de escolas de samba e os apoteóticos trios elétricos, sobraram soluções que vão desde a recuperação de arquivos audiovisuais até as mais diversas lives, tudo para arrefecer a orfandade carnavalesca gerada por esse vírus recalcitrante. A Rede Globo, por exemplo, que há décadas transmite ao vivo os desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, encontrou uma solução, digamos, paliativa, quase um placebo: vai transmitir 28 “desfiles históricos” de escolas cariocas e paulistanas entre os dias 13 e 14. O público vai poder até escolher on-line o melhor desfile de todos os tempos. Isso sim é carnaval no novo normal. Mas não fica só nisso.

Carnaval no Rio de Janeiro em 2020 – Foto: Sergio Luiz / Flickr via Wikimedia Commons / CC BY 2.0

 

O carnaval virtual em São Paulo, por exemplo, vai durar improváveis 17 dias, começando nesta sexta-feira. E ainda há também as lives de Daniela Mercury, Cláudia Leitte e Ivete Sangalo. Tudo no YouTube, em uma forma de compensar o que não vai ser possível. Afinal, a folia carrega, além de marchinhas, trios elétricos, gente saltando que nem pipoca e muitas fantasias, uma quantidade pantagruélica de clichês. Talvez o maior deles seja aquele que diz (com uma certa dose de verdade) que o Brasil só começa a funcionar depois do carnaval. Então, para que o País vá adiante, mesmo aos trancos e barrancos, e não fique eternamente preso nessa espiral, um carnaval on-line pode ser melhor do que carnaval nenhum, não é?

Mas também há aquele clichê psicológico, como lembrou Ivete Sangalo em entrevista ao jornal Correio, de Salvador: “É quando conseguimos dar uma desopilada”, afirmou, reforçando aquela ideia de que tudo é permitido nesse período. Folia e brincadeira, lembram? Mas ela completou, mais pragmática: “Para o bem da própria festa, o recolhimento é uma forma consciente de lidar com essa responsabilidade”. E haja recolhimento. Salvador, terra onde Ivete é rainha, por exemplo, nem se parece com aquela que todos se acostumaram a ver nesta época do ano. Normalmente, o carnaval na capital baiana começa já em janeiro – tem gente que jura que começa em dezembro – com festas “pré-carnavalescas”, e vai embora até para além da quarta-feira de cinzas. A popular Avenida Oceânica, no bairro de Ondina – passarela de asfalto oficial do circuito Dodô de trios elétricos –, é tomada por arquibancadas e camarotes que impedem qualquer possibilidade de ver o mar. Agora? Nada. Nem sinal de Momo e seus seguidores.

Para se ter uma ideia, em 2020, Salvador recebeu 854 mil turistas e teve uma ocupação hoteleira de 95%. Ao todo, 16,5 milhões de pessoas circularam pela cidade durante todo o extenso período carnavalesco. E não é só o carnaval soteropolitano que apresenta números hiperbólicos: São Paulo, vejam só, reuniu 15 milhões de pessoas. No Rio, foram mais de 10 milhões de foliões durante 50 dias de festas – sim, o carnaval no Rio de Janeiro, como o de Salvador, não acredita em calendários ou em datas preestabelecidas. Só que agora tudo isso é estatística. E as cidades estão vazias. Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e colunista da Rádio USP, afirmou em 2018 – mas ainda atualíssima – “que o carnaval é um meio de as pessoas se apropriarem da cidade de uma forma diferente ou invertida em relação ao cotidiano”. “As regras que se aplicam ao cotidiano não valem naqueles poucos dias de folia”, afirmou a professora. Pois é. Só que agora não tem folia, as cidades não foram tomadas e, como diria aquele famoso comentarista de arbitragem, “a regra é clara”. E o animado verso de um samba da Gaviões da Fiel de 1995 – “Me dê a mão, me abraça” – não vai poder se concretizar este ano.

O Bloco do Eu Sozinho 

Esta não é a primeira vez que as regras carnavalescas serão modificadas – mas acredita-se que será a primeira que todos cumprirão. O carnaval já sofreu outros adiamentos, mas isso lá atrás, no final do século 19 e no começo do século 20 – e sem resultados práticos. A primeira vez foi em 1892, quando a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal e meca momesca, sofria com várias doenças, entre elas a febre amarela. Então, por razões sanitárias, as autoridades – para evitar aglomerações no calor insano carioca de fevereiro – acharam por bem transferir a festa para junho, quando o clima seria mais ameno. Resultado? Ninguém deu a menor bola e foram todos para as ruas, desprezando solenemente a tentativa policial de colocar ordem na bagunça.

O carnaval de 1919: a festa da revanche – Foto: Acervo MIS

 

A outra tentativa frustrada de adiamento do carnaval carioca aconteceu em 1912. Uma semana antes de a folia começar, o Barão do Rio Branco morreu e as autoridades da época – sem aprender nada com seus antecessores – tiveram a ideia de pedir para Momo esperar até abril, numa forma de homenagear o morto ilustre. O que aconteceu? No sábado de carnaval o luto foi mandado às favas e foi todo mundo para as ruas de novo. Ah, sim: o tal carnaval de abril acabou acontecendo também, e o Rio de Janeiro teve duas festas em um mesmo ano.

Mas talvez a festa que melhor represente a vontade represada de comemorar algo, de extravasar – de “desopilar”, como lembrou Ivete Sangalo, ou de se apropriar da cidade, como afirmou Raquel Rolnik –, foi a de 1919. Razões não faltaram. Afinal, a Primeira Guerra Mundial havia acabado e, melhor que isso, a gripe espanhola, que matou dezenas de milhões de pessoas no mundo, tinha desaparecido tão rápido quanto surgira. “Foi o carnaval da revanche”, escreveu o jornalista Ruy Castro, se referindo ao alívio da população com o fim do mal que havia matado 15 mil pessoas no Rio de Janeiro – entre elas o recém-eleito presidente Rodrigues Alves. E haja revanche. “O povo foi para a rua com a necessidade de celebrar o fim daquela coisa terrível”, lembrou em entrevista recente ao jornal Correio Braziliense o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e estudioso do carnaval Paulo Miguez. E o carnaval de 1919 acabou sendo considerado o maior de todos os tempos. E com direito a bônus duplo: foi nele que surgiram pela primeira vez o Cordão da Bola Preta, o mais tradicional bloco carnavalesco carioca, fundado em dezembro de 1918, e o famoso e inusitado “Bloco do Eu Sozinho”, criado pelo jornalista Júlio Silva. O tal bloco, que virou até expressão no vocabulário popular, desfilou por meio século pelas ruas cariocas, sempre com seu criador  solitário – obviamente – e recusando qualquer tentativa de abraço ou de aproximação alheia. Bem apropriado para os tempos atuais.

Outra revanche? 

E o carnaval de 2022, será um novo carnaval da “revanche”, da desforra, desta vez contra esse coronavírus mutante? Paulo Miguez, da UFBA, acredita que sim. “Será o maior de todos os tempos, celebrando a vitória da vida e da ciência”, afirmou ele ao Correio Braziliense. Será mesmo? Talvez seja o caso de lembrar outros carnavais e cantar o refrão famoso do samba-enredo O Amanhã, da carioca União da Ilha do Governador. Em 1978, milhares de vozes cantaram: “Como será o amanhã/responda quem puder/ o que irá me acontecer/ o meu destino será como Deus quiser”.

Ou, melhor ainda, talvez seja o momento de esquecermos os primeiros versos da bela Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de Vinicius de Moraes e Carlinhos Lyra – “Acabou nosso carnaval/ ninguém ouve cantar canções/ ninguém passa mais brincando feliz” –, e passarmos direto para as estrofes seguintes, bem mais animadoras e otimistas: “E no entanto é preciso cantar/ mais que nunca é preciso cantar/ é preciso cantar e alegrar a cidade/ A tristeza que a gente tem / qualquer dia vai se acabar/ todos vão sorrir/ voltou a esperança”. Porque tudo é uma questão de tempo. E paciência.


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