Foto: Reprodução/Acervo TV Globo

Entre “memórias históricas”, Milton Gonçalves mostrou versatilidade em seu trabalho

Eduardo Victorio Morettin, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e a professora e historiadora Elaine Pereira Rocha, do Departamento de História e Filosofia da University of the West Indies (UWI), em Barbados, autora do livro Milton Gonçalves: Memórias históricas de um ator afro-brasileiro, destacam o legado deixado pelo ator

 03/06/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 07/06/2022 as 12:49

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Adrielly Kilryann

“Nós, atores negros, temos tão poucos papéis…” Este é um trecho do depoimento de Milton Gonçalves ao documentário A Negação do Brasil (2000), de Joel Zito Pereira. O ator e diretor, que morreu no último dia 30 de maio, aos 88 anos, teve atuação destacada no teatro, no cinema e na TV brasileira. Numa carreira de mais de 60 anos, ele integrou o primeiro elenco da TV Globo, que o contratou em 1º de fevereiro de 1965. Milton Gonçalves morreu em sua residência, no Rio de Janeiro. Ele vinha enfrentando problemas de saúde desde que teve um acidente vascular cerebral isquêmico (AVC), em 2020. O corpo do ator foi cremado no dia 31 de maio, no Rio de Janeiro.

O professor Eduardo Morettin, diretor do Cinema da USP Paulo Emilio - Foto:  Arquivo pessoal

Eduardo Victorio Morettin - Foto: Acervo pessoal

O professor Eduardo Victorio Morettin, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, diretor do Cinusp, cita dois filmes que, na opinião dele, mostram a versatilidade do ator: A Rainha Diaba (1974), dirigido por Antonio Carlos Fontoura, e Eles Não Usam Black-Tie (1981), com direção de Leon Hirszman, dentre os mais de 50 em que Milton atuou. “Ele sempre procurou fugir dos estereótipos para interpretar seus papéis”, destacou. Mas além dos filmes citados, ele lembra também da atuação do ator em filmes como Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, e O Anjo Nasceu (1969), de Júlio Bressane. “Além destas atuações, bom lembrar das inúmeras participações nas novelas e no teatro. Foi, de fato, um ator versátil”, ressaltou Morettin.

O professor Eduardo Morettin, diretor do Cinema da USP Paulo Emilio - Foto:  Arquivo pessoal

Eduardo Victorio Morettin - Foto: Acervo pessoal

A poderosa voz

“Cresci vendo e ouvindo Milton Gonçalves e aquela sua voz poderosa”, lembra a professora Elaine Pereira Rocha, do Departamento de História e Filosofia da University of the West Indies (UWI), em Barbados. Elaine é mestre em História pela PUC-SP (1996) e concluiu seu doutorado em História Social na USP, em 2002. “Aquela voz poderosa”, a que se refere Elaine, pôde ser ouvida em diversas narrações feitas por Milton Gonçalves, como em “Bodas de Sangue” do livro A vida como ela é, de Nelson Rodrigues. O áudio está disponível no Youtube onde é possível ouvir a voz “marcante” do ator. Mais uma marca da versatilidade destacada pelo professor Morettin.

Elaine Pereira - Foto: Arquivo pessoal

Elaine Pereira Rocha - Foto: Arquivo pessoal

Nós, atores negros, temos tão poucos papéis… E você vê que eu tô desfilando aqui uma série de personagens, eu deveria estar mais do que satisfeito, contente e feliz, mas eu não acho que essas coisas devam ser feitas como uma andorinha sozinha. Eu acho que tem que ter mais pássaros voando. Não existe nada mais angustiante do que você pousar num poleiro, olhar para um lado, olhar para o outro e ver que você está sozinho.”

Foto: Reprodução/Acervo TV Globo

Foto: Reprodução/Acervo TV Globo

Elaine é autora da única biografia do ator: Milton Gonçalves: Memórias históricas de um ator afro-brasileiro. “Em seis semanas, depois de muitas anotações, escritos e fatos guardados em minha memória, eu escrevi o livro”, conta a professora. Mas as entrevistas e longas conversas que resultaram na obra duraram quase dez anos! “Nossas conversas foram gravadas e de forma que ele estivesse sempre tranquilo e à vontade. Eu queria saber da pessoa Milton Gonçalves, e não do ator”, lembra.

Milton nasceu em Monte Santo, Minas Gerais, em 1933. De família pobre, como conta Elaine, ainda criança veio com a família para São Paulo. Na biografia, Elaine pesquisou suas origens em Minas Gerais e chegou a fazer um relato a ele de como se deu a morte de seu avô, num cafezal. “O avô morreu com apenas 56 anos numa lavoura de café. Milton se emocionou quando lhe fiz o relato”, lembra a professora.

Filmes variados

“Milton foi capaz de interpretar com muita competência um homossexual que se envolvia em delitos, inspirado na história de um criminoso do Rio de Janeiro que tinha o apelido de Madame Satã”, lembra o professor Morettin sobre o filme A Rainha Diaba, em que Milton foi o personagem principal. Ele também destaca a atuação do ator em Eles Não Usam Black-Tie. “Ali foi, de fato, uma interpretação marcante no papel de um líder sindical. Foi um dos personagens centrais no filme.”
Em todos os filmes que participou, na opinião de Morettin, Milton teve contribuições expressivas. “Ele também atuou em Macunaíma, ao lado de Grande Otelo, onde a questão do racismo está muito presente.” O professor também cita o filme O Anjo Nasceu, que também teve Milton Gonçalves no elenco. “Este filme, de Júlio Bressane, ficou muito anos interditado pela censura”, lembra.

Foto: Reprodução

Milton paternal... Milton político

A professora Elaine traz boas recordações das conversas e da amizade que acabou se estabelecendo entre ela e o ator. “Eu ia muito à casa dele, no Rio de Janeiro, e nossos encontros foram cercados de muita simplicidade. Ele e a esposa, Oda Gonçalves, sempre muito atenciosos”, relata. Na verdade, Elaine orgulha-se em dizer que era tratada como se fosse uma sobrinha do ator e que tinha um excelente relacionamento com as filhas dele, Catarina Gonçalves e Alda Gonçalves. O outro filho de Milton é Maurício Gonçalves.

Elaine conta que na época em que o Brasil tinha apenas dois partidos políticos, Arena e MDB, Milton se filiou ao MDB. Tempos depois, já em 1994, ele foi candidato ao governo do Rio de Janeiro, no pleito que elegeu Marcello Alencar. “Milton foi leal ao partido e o seu conhecimento político tinha muito de sua esposa, Oda Gonçalves, uma mulher muito politizada”, conta a professora. E nos anos 1980, como lembra a historiadora, Milton chegou a exercer o cargo de superintendente da Rádio Nacional.

Outra marca do ator, conta Elaine, é a gratidão. “Ele foi muito grato ao Teatro de Arena e à Rede Globo”, ressalta. Afinal, como ela destaca, a TV lhe possibilitou conhecer alguns países da África. Com relação ao racismo, como recorda a professora Elaine, Milton lhe dizia: “Não posso me esquivar da luta contra o racismo… Eu, andando, sou um discurso racial”. Elaine conta que ele queria simplesmente ser elogiado como “um grande ator”. Mas ela sempre disse a ele: “Milton, você andando é uma ação afirmativa”.

A censura

O Milton Gonçalves “autor teatral” teve lá seus embargos com a censura. A peça A Sucata, de 1961, foi escrita para o Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento. “O original foi apresentado no Teatro Experimental do Negro aqui de São Paulo”, conta a jornalista Eliane de Souza Almeida. Ela é doutoranda da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP na área de Mudanças Sociais e Participação Política.

Eliane Pereira Rocha - Foto: Arquivo pessoal

Eliane de Souza Almeida - Foto: Arquivo pessoal

A jornalista conta que, em 2016, ela participou de um projeto na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP chamado Censura em Cena, estudando peças do Arquivo Miroel Silveira vetadas pela Censura. “Foi quando me deparei com o documento de 80 páginas. Era a peça teatral A Sucata, escrita por Milton Gonçalves. Um drama em três atos”, conta Eliane. “Pelo que sei, ao menos aqui em São Paulo a peça não foi encenada”, diz.

Como descreve Eliane, a peça foi apresentada na Secretaria de Segurança Pública, no Departamento de Investigações da Divisão de Diversões Públicas, por um tesoureiro do Teatro Experimental do Negro de São Paulo, no dia 4 de agosto de 1961. “A peça foi proibida para menores de 18 anos e foram feitos vários cortes no texto. Principalmente em um diálogo em que personagens questionavam a economia à época”, diz a jornalista.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.