“É uma vergonha e um insulto à cultura e ao País”

Em depoimento, o professor da USP Teixeira Coelho fala sobre o pertencimento do Estado a partidos políticos

 06/12/2019 - Publicado há 4 anos
Por
José Teixeira Coelho Netto – Foto: Matheus Araújo / IEA

O professor titular aposentado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP deu depoimento ao Jornal da USP sobre as atuais mudanças que vêm ocorrendo na Secretaria Especial da Cultura, subpasta do Ministério do Turismo. Diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP entre 1998 e 2002 e curador-coordenador do Museu de Arte de São Paulo (Masp) entre 2006 e 2014, Coelho comenta o pertencimento do Estado a partidos políticos e diz que não há neste país “a noção de administração perene da coisa pública”. Segundo ele, cada um que chega acha-se no direito de arrasar o que existe e começar tudo do zero. “Nada subsiste”, completa.

“Comentários perfeitos sobre o que acontece hoje nos órgãos de cultura federais (e em alguns estaduais e municipais) têm sido feitos por Ruy Castro, não há nada a acrescentar. É uma vergonha e um insulto à cultura e ao País. E os autores de um e outro não dão a menor importância ao que deles se diz.

“O que temos de investigar é o motivo pelo qual coisas assim continuam acontecendo e o que fazer para que não se repitam ou, pelo menos, diminuam de intensidade.

“No atual contexto de animosidade crescente, partidos políticos radicalizados consideram, mais que os outros, que o Estado lhes pertence e que a eles, e ao País, irão impor suas ideias, tão curtas que não chegam à esquina. Não há neste país – há muito tempo, se algum dia houve – a noção de administração perene da coisa pública. Cada um que chega acha-se no direito de arrasar o que existe e começar tudo do zero. Nada subsiste. E quanto mais é assim, mais fácil fica para o próximo dono do poder, qualquer que seja sua cor ideológica, aprofundar o processo. A ideia de servidor público não existe, centenas de milhares de cargos têm seus ocupantes jogados fora a cada governo para que amigos e cúmplices assumam as rédeas e dinheiros. Em países civilizados, a política cultural muda minimamente quando a administração passa do partido A para o B. A margem de manobra de cada novo governo é mínima porque já existe um consenso nacional sobre o que deve o Estado fazer. Aqui, não apenas inexiste esse consenso, como cada ‘novo’ partido no poder aprofunda, tanto quanto pode, a brecha entre as partes.

“E a sociedade assiste, passiva, a esse balé de irrelevâncias. Do Estado espera-se tudo. Espera-se. Só que, quando se espera que a cultura venha do Estado ou fique forte graças ao Estado ou sobreviva por favor do Estado, dramas como os atuais só se repetem. A sociedade tem de fortalecer-se frente ao Estado e encontrar o caminho para liberar-se dessa tutela. Nas últimas décadas a ideia de mercado, sobretudo em cultura, tornou-se palavrão. A cegueira ideológica não deixa ver que, enquanto não houver mercado cultural forte, o Estado continuará dando as cartas como bem entender. E o pior é que todos parecem chegar ao único consenso cultural que existe neste país em termos de cultura: o de que o mercado é o mal. Não é. Em cultura, o mercado é a base e o Estado, a boia. Aqui é o contrário: o Estado é a base e o mercado, a boia. Furada.

“Mais fácil falar do que fazer. O mercado da cultura só definha, aqui. E, como definha, o Estado parece a salvação. Não é. O País está repleto de assistencialismo cultural, alguns de primeira linha (que sobrevivem por milagre e teimosia), a maioria indigente. Enquanto for assim, não há saída. Na França surgiu, há algum tempo, uma iniciativa comercial chamada C’est qui, le patron?, ‘Quem é o patrão?’. Consumidores e produtores são os patrões – não o atravessador nem o super-mercado nem a publicidade. Trata-se de remunerar melhor o produtor (de leite, por exemplo) para que não vá à falência, obtenha um leite melhor e ofereça algo bom ao consumidor – e assim com a carne, a alface etc. As pessoas estão cada vez mais conscientes de que qualidade tem um valor e um preço e que o capitalismo do desconto e do preço forçadamente menor (forçado pelos supermercados, pelas Amazons) é engodo. Cultura tem valor (aqui, ainda não) e preço, e consumidores esclarecidos (existem cada vez mais) sabem disso e apoiam isso. Melhor do que esperar que o partido B nos livre do A e, depois, que o C, igual ao A, nos livre do B, é mais que hora de acordar para o fato de que o patrão, em arte & cultura, são o produtor cultural e o ‘consumidor’ de cultura, não o Estado, e que o campo desse jogo chama-se sociedade civil, que inclui o mercado, não Estado.”


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