Do Tropicalismo aos parangolés, livro analisa obra de Hélio Oiticica

Especialistas na obra do artista, Paula Braga e Celso Favaretto analisam as Manifestações Ambientais em novo volume da Coleção Prismas, publicado pela Editora da USP

 Publicado: 09/01/2025 às 17:06     Atualizado: 10/01/2025 às 17:59

Texto: Mirela Costa*
Arte: Diego Facundini**

Em Tropicália, Hélio Oiticica agrega experimentação e elementos da cultura popular brasileira - Foto: Extraída do livro

Capa do livro Manifestações Ambientais, de Hélio Oiticica - Foto: Reprodução/Edusp

Antes mesmo de Tropicália (1968), a canção-manifesto de Caetano Veloso, se popularizar país afora e do Tropicalismo tomar o cenário cultural brasileiro, o artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980) já trabalhava em torno dos ideais artísticos de vanguarda que marcaram a década de 1960. Ele próprio criador da palavra “Tropicália”, termo que nomeia sua obra na mostra Nova Objetividade Brasileira, de 1967, Oiticica se consagra como uma das maiores personalidades da contracultura e do neoconcretismo no Brasil. Ao propor a arte como uma experiência a ser vivenciada – e não somente contemplada –, ele convida o espectador a se tornar participante de suas obras.

A partir do pioneirismo de Oiticica no panorama artístico brasileiro, a Editora da USP (Edusp) lançou recentemente Manifestações Ambientais, de Hélio Oiticica, da coleção Prismas, voltada a propor estudos aprofundados sobre obras de arte nacionais e internacionais. No livro, os autores Paula Braga e Celso Favaretto se desdobram sobre uma sequência de obras que Oiticica categorizou como Manifestações Ambientais, com destaque para a análise de Tropicália (1967) e Éden (1969).

Ambos são estudiosos de longa data da arte de Oiticica. Favaretto – professor aposentado da Faculdade de Educação (FE) da USP – escreveu A Invenção de Hélio Oiticica (1992), publicado pela Edusp, um dos primeiros estudos sobre o artista no Brasil. O autor amparou os estudos de Braga, inclusive orientando-a em seu doutorado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em 2007. A autora lançou também Hélio Oiticica: Singularidade, Multiplicidade (Perspectiva, 2013), que aborda a arte de Oiticica a partir da década de 1970.

Homem apoiado atrás de uma mesa em que estão objetos

O artista plástico Hélio Oiticica - Foto: Marco Rodrigues/Acervo de Pesquisa e Documentação MAM Rio

Um neoconcreto no Morro da Mangueira

Painel branco com vários retângulos de contornos vermelhos

"Aos poucos, aqueles retângulos vão se movendo no plano do papel", aponta Paula Braga sobre Metaesquema (1958), de Hélio Oiticica - Foto: Extraída do livro

“A obra de Oiticica vai se desenvolvendo a partir do movimento, da ideia de envolver, de criar um ambiente ou um espaço estético para interferir na subjetividade e no comportamento daquele espectador, que então vira um participador”, afirma Paula Braga em entrevista ao site da Edusp. Nascido no Rio de Janeiro em 1937, Hélio Oiticica iniciou seus estudos artísticos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) como aluno do Curso Livre de Pintura de Ivan Serpa, em 1954. O artista participou do Grupo Frente, entre 1955 e 1956, e foi um dos signatários do Manifesto Neoconcreto, em 1959. A partir de então, estabeleceu o corpo como o ponto central de sua obra, de forma a transformar o cotidiano em expressão artística e apontar uma relação entre arte e vida.

No livro, Braga e Favaretto acompanham a formulação do principal projeto idealizador por trás dos trabalhos do artista: o Programa Ambiental. Oiticica desenvolveu e aprofundou seu programa à medida que se aperfeiçoou como artista, desde suas pinturas neoconcretistas – nas quais pregava pelo “fim do quadro”, como ele dizia – até suas maquetes e exposições, em que sugeria a superação dos modelos tradicionais de arte por meio da interatividade e da ambientação do espectador nas obras. “Oiticica diz que a pintura deixa de ser o quadro. Ela tem que estar em outro lugar, em um espaço geral. E se ela está no espaço, pode se movimentar. Isso é a introdução do tempo na pintura, um assunto inovador”, destaca Favaretto também em entrevista ao site da Edusp.

“Como está tudo claro agora: que a pintura teria de sair para o espaço, ser completa, não em superfície, em aparência, mas na sua integridade profunda”

Homem de pé semiescondido atrás de painéis amarelos

Nos Núcleos, os espectadores podem adentrar e percorrer as obras - Foto: Extraída do livro

Sob o desejo de transformar a pintura em estrutura ambiental, o artista se empenhou na passagem das cores do bidimensional do plano para o tridimensional do espaço. As séries de obras em Bilaterais (1959) e Relevos espaciais (1959-1960) revelam o início da relação com a espacialidade no projeto artístico de Oiticica, além de “soltar a cor, pintar a estrutura-cor no espaço temporalizado, atualizar problemas da linha construtiva da arte moderna […]”, como sinalizam os autores no livro. Em placas de madeiras suspensas no teto e pintadas em diferentes tonalidades, Bilaterais Relevos espaciais “já convidam o espectador a colocar o próprio corpo em relação à obra, circulando em volta”, explica Braga.

O Programa Ambiental do artista segue seu desenvolvimento com Núcleos (1960-1966) e Penetráveis (1961-1980), que exploram tanto a dimensão do espaço e dos diferentes efeitos gerados pelas cores, como a da participação do público na obra. Os Núcleos trazem formas geométricas do papel ao ambiente físico, com estruturas flutuantes que podem eventualmente ser atravessadas pelos visitantes. Já Penetráveis consolida a experiência do espectador como participante da obra, uma vez que há, então, estruturas em escala humana compostas por tendas, banners e placas de madeira que podem ser penetradas, percorridas e manipuladas pelas pessoas, de modo informal e espontâneo.

Braga e Favaretto também destacam Bólides (1963-1979), que são trabalhos em formato de caixa com diferentes materiais, como pigmentos, terra, água, espelhos, conchas, pedaços de tecido ou papel, fotografias ou poemas. Em escala menor do que os PenetráveisBólides ainda sugere interatividade com o espectador, que explora as variadas possibilidades desses objetos por meio da manipulação de gavetas e portas, além de sentir odores e observar diferentes cores. No livro, os autores enfatizam que os Bólides “propõem-se como signos que sugerem os atos de explorar, manipular, descobrir – libertadores de sua carga expressiva”.

Embora BilateraisRelevos espaciaisNúcleosPenetráveis Bólides sejam obras precursoras da exploração espacial de Oiticica, foi a presença do artista na Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, a partir de 1964, que o inspirou para a obra de consagração de seu Programa Ambiental: os Parangolés (1964-1979), o principal resultado da subida do neoconcreto ao Morro da Mangueira. Ao vestir, correr ou dançar com as capas, faixas e bandeiras que constituem a obra, o espectador passa efetivamente a fazer parte da arte e se torna protagonista da obra. Em Parangolés, Oiticica rompe com as noções de estética e estilo artístico ao agregar samba, dança e elementos populares às artes visuais.

“Não se trata mais de impor um acervo de ideias e estruturas acabadas ao espectador, mas de procurar pela descentralização da ‘arte’, pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial”

Tropicália e Éden

Painel simulando um mapa multicolorido e com anotações a mão

Mapa do Éden, que foi projetado por Oiticica para explorar os sentidos dos participantes - Foto: Extraída do livro

No livro, os autores dão destaque especial para Tropicália (1967) e Éden (1969), que ganham capítulos de análise particulares devido à centralidade que ocupam no projeto experimental de Oiticica. Ainda que o Tropicalismo –movimento de contracultura e valorização dos elementos populares da cultura brasileira impulsionado por Gilberto Gil e Caetano Veloso –, tenha ganho projeção nacional, Favaretto reitera que “não existia Tropicalismo quando Oiticica fez o ambiente que ele chamou de ‘Tropicália’”. Ao elaborar uma espécie de labirinto de madeira forrado com areia e pedras, que, percorrido pelo espectador, colocava-o em contato corporal com diversos elementos naturais e culturais do Brasil, o artista chamou-o de Tropicália.

“Primeiro, o Oiticica faz a obra e dá a ela esse nome. Então, o cineasta Luiz Carlos Barreto sugere ‘Tropicália’ como título para uma música que o Caetano compôs. Barreto fala sobre o Hélio Oiticica, diz que ele fazia obras parecidas com a música do cantor, e o Caetano intitula a canção dele Tropicália. A partir disso, surge na música popular brasileira o tal do Tropicalismo”, conta Braga. Favaretto ainda aponta a coexistência de elementos populares e da cultura de massa brasileira tanto na canção, como na obra do artista. “Ambas formam uma imagem do Brasil”, afirma ele, também autor de Tropicália: Alegoria, Alegria (1979), importante análise sobre o movimento. Por meio da combinação entre abertura estrutural, ação no ambiente, crítica da arte e intervenção cultural, a Tropicália de Oiticica questiona as interpretações culturais então hegemônicas no País e ressalta a relação entre arte e política.

Contrário ao caráter de consumo assumido pelo movimento tropicalista – “burgueses, subintelectuais, cretinos de toda a espécie a pregar tropicalismo, tropicália (virou moda!) […]”, como diz em escritos de 1968 –, Oiticica desenvolve Éden sob a tentativa de afastar a arte do consumismo, aproximando-a das vivências humanas e das experiências sensoriais. A obra, então, é composta de uma instalação com diferentes ambientes que estimulam os sentidos e convida o participante a explorar, tocar, deitar, caminhar e interagir com materiais naturais, como areia, água, folhas e pedras, além de objetos como almofadas e estruturas geométricas. O artista propõe um espaço de liberdade e contemplação, onde as pessoas vivenciem um estado de experimentação e ludicidade. “No Éden, diferentemente de Tropicália, não há imagens a serem decifradas ou decodificadas, mas um espaço de circulação, de sensações, imaginação e ideias”, relatam os autores no livro.

*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado

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