Foto: Reprodução /extraído da Divina Comédia

Dante, há 700 anos entre o Céu e o Inferno

Ao completar sete séculos de sua morte, o autor da Divina Comédia merece e precisa ser relembrado e homenageado — até no espaço

 24/09/2021 - Publicado há 3 anos

Por: Marcello Rollemberg

Arte: Simone Gomes

de formosura o corpo, se arte opera

milagres para seduzir o olhar,

esta beleza toda não vencera

o divino prazer que o sorridente

semblante de Beatriz me dera.

A virtude de seu olhar fulgente

de Gêmeos me afastou, me transportando

ao céu que corre mais rapidamente.

Divina Comédia, “Paraíso”, Canto XVII

Foto: Reprodução/extraído da Divina Comédia

Dante Alighieri sonhou o paraíso e o inferno. Purgou suas dores, remorsos e traições. E nas duas décadas em que pensava em sua Florença natal — da qual havia sido expulso para nunca mais voltar –, Dante se dedicou a escrever um livro. Um livro? Não: o livro definitivo da poesia e da literatura medieval, sua obra maior e uma das mais monumentais obras das artes de todos os tempos. Dante não escreveu apenas a Divina Comédia: ao fazê-lo em dialeto toscano, em lugar do tradicionalíssimo e culto latim, ele também estava inventando a língua italiana. E, por tabela, toda uma cultura universal. Dante sonhou com o paraíso, com o céu. Então, nada mais justo que sua obra suprema vá para o espaço. Literalmente. As 14.200 linhas e as cerca de 32 mil palavras que compõem os cem cantos de Divina Comédia serão transportadas ao céu, o mesmo céu que “corre mais rapidamente” como afirma a epígrafe que abre esse texto. O céu de Dante Alighieri, que vai se descortinar para uma nave russa Soyuz levando ao éter uma cópia da obra do poeta de Florença microinscrita em folhas de uma liga de titânio e ouro. E lá ficará flutuando por toda a eternidade, ao preço de 150 mil euros. A eternidade que uniu Dante e Beatriz, mas que a realidade negou. 

A viagem ao espaço é uma justa homenagem — como as reedições de sua obra. A paulista Ateliê Editorial está relançando sua edição bilíngue da Divina Comédia, com imagens do renascentista Sandro Botticelli (algumas delas ilustram este texto). Há exatos 700 anos, Dante (um hipocorístico, ou uma versão reduzida de “Durante”) Alighieri morria de malária, na madrugada do dia 13 para o dia 14 de setembro de 1321. Tinha 56 anos e vivia nos arredores de Ravena, a cidade que aceitou recebê-lo depois que havia sido expulso da República de Florença. Mais do que isso: banido para sempre, sob a pena, caso voltasse, de ser queimado vivo na fogueira. Mais tarde, a pena foi comutada. Dante não morreria engolido pelas chamas se retornasse à sua cidade natal: seria decapitado. Não se pode necessariamente chamar os florentinos daquela época de caridosos. E por que Dante Alighieri foi banido? Porque escolheu um lado político — o errado, como dá para se notar. Poesia e política são duas artes por demais complexas para conviverem harmoniosamente. Quando uma ganha, a outra, de alguma forma, vai perder. Dante era partidário de uma casta política de sua cidade que foi derrotada. A outra, vingativa, fez o seu papel. E a porção política de Dante foi também banida, para deixar o poeta viver em toda a sua plenitude. Recentemente, a discussão sobre se a punição a Dante Alighieri foi justa ou não voltou à baila, com a revisão de sua pena e sua anulação. Um pouco tardiamente, digamos, já que Dante foi punido em 1301. Mas o que importa aqui é o que essa punição gerou.

Foto: Reprodução/extraído da Divina Comédia

Divina Comédia — que nasceu apenas como Comédia e só foi ganhar o adjetivo retumbante graças a Giovanni Bocaccio — foi criada no período de exílio e é, de várias formas, uma maneira pessoal de seu autor acertar contas com tudo o que passou. Mas com a pena, e não com a espada. “A partir daquele momento, dedica-se à Divina Comédia. Foram 10 ou 15 anos de tentativas frustradas para voltar a Florença – não se sabe exatamente o momento em que ele decide não participar mais dessas tentativas destinadas à falência –, o que pode ser acompanhado em sua obra, onde ele conta tudo poeticamente”, explica a professora Maria Cecília Casini, do programa de Língua e Literatura Italiana do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP . “A Divina Comédia é a obra de uma vida. Há algumas marcas temporais em que se observa os danos, as situações, lugares, datas, mas há também observações psicológicas – em certo ponto ele se destaca desse problema e o mantém somente na poesia”, afirma ela. 

Do inferno ao paraíso

Antes de sua obra máxima, Dante escreveu trabalhos que, de várias maneiras, antecipavam a Divina ComédiaDe vulgari eloquentia (sobre a eloquência em língua vulgar), escrito em latim, e Convivio, tratado linguístico filosófico escrito em italiano, sobre a importância da língua vulgar — ambas antecipando e pavimentando a forma como ele escreveria seu trabalho retumbante. E também De Monarchia, um tratado em latim sobre a ideia de monarquia universal — até aqui, a política e suas nuances estavam solapando o poeta pleno. “Ele queria prestigiar a língua italiana no sentido de mostrar toda a qualidade da língua vulgar. Ou seja, que a língua vulgar, exatamente como o latim, tinha potencialidades para expressar tudo o que o ser humano sente, vive, sofre e sonha. É uma espécie de revolução que se dá na Europa, entre 1200 e 1300, em que se deixa, gradualmente, o latim e se começa a usar as línguas vulgares, que com o tempo vão adquirindo aquela lapidação e aquela perfeição do latim”, afirma Maria Cecília Casini.

Foto: Extraída do livro Divina Comédia

Foto: Reprodução/extraído da Divina Comédia

Mas dentre essas obras antecipatórias, talvez nenhuma chame mais a atenção do que La Vita Nova, que escreve ainda em Florença e que quer dizer “A vida jovem” ou “A vida renovada pelo amor”. “É um texto muito original, que alguns consideram o primeiro romance da literatura. É autobiográfico, em que Dante conta sobre o amor dele por Beatriz, como ele a conheceu, como se apaixonaram e como ela morreu, e os momentos terríveis que passou. Até que ele converteu o amor que tinha por ela – que nunca se concretizou porque ela era comprometida e ele também – esse amor natural, que tinha a capacidade de afastar de Deus e de provocar muito sofrimento aos homens e às mulheres”, analisa a professora Maria Cecília, apontando a primeira aparição da musa dantesca, aquela que o guiará em sua jornada entre inferno, purgatório e céu na Divina Comédia. “Era preciso uma transformação, uma reconversão, digamos, para que o ser humano possa viver de forma feliz essa dádiva que é o amor. No final de La Vita Nova, se anuncia a reconversão do amor por Beatriz por uma mulher que se transforma em um anjo — de fato, na Divina Comédia, no paraíso, ela aparece como uma mulher angelical, pela qual Dante ainda é apaixonado mas que consegue transferir o amor de Dante para Deus, esse amor essencialmente positivo que se deve sentir e que não causa a perdição do homem”, avalia a professora da FFLCH.

Mas será, obviamente, graças à Divina Comédia que Dante alcançará seu paraíso particular, aquele  que lhe renderá o título de “Poeta Supremo” e que fará Victor Hugo afirmar que o pensamento humano atinge em certos homens a sua completa intensidade, e Dante é um daqueles que “marcam os cem graus de gênio”. A história é por demais conhecida, mas nunca é demais relembrá-la. 

Foto: Reprodução/extraído da Divina Comédia

Trata-se de uma “viagem ultraterrena” — como qualificou Maria Cecília Casini –, dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso, feita em uma semana, mas não uma semana qualquer, mas a Semana da Páscoa, em 1300. É realizada por um indivíduo, Dante, que se encontra perdido em um caminho em um momento de sono da consciência. Um caminho que é cheio de obstáculos e perigos, até que ele vê uma montanha e vai em direção à luz (que é Deus). Mas aparecem três feras ameaçadoras, a onça, o leão e a loba, que não permitem que ele siga. De repente, se materializa ao seu lado Virgílio, o grande poeta latino que Dante idolatrava mais que qualquer outro. Então, Beatriz, a mulher que Dante amou a vida inteira, viu que ele estava em apuros, e pediu permissão a Deus para que Virgílio saísse do limbo – onde ele se encontra antes do Inferno – para ajudar seu amor, sabendo da admiração de Dante por Virgílio. Deus autoriza porque se trata de uma viagem que depois Dante deverá relatar para todos os cristãos escrevendo-a, no caso a Divina Comédia, para mostrar o que pode acontecer a qualquer indivíduo que se perde do caminho certo, da virtude, do amor a Deus, e pode ser tentado pelo inferno, pelos males e pecados que levam ao inferno, e depois ao purgatório e ao paraíso.

Dante aceita a ajuda de Virgílio porque é preciso que ele expresse seu consentimento livremente. Nada é imposto, Deus não impõe nada a suas criaturas. Então começa essa viagem, que dura 100 cantos, 34 no inferno, 33 no purgatório e 33 no paraíso. Primeiro, Dante leva o leitor a conhecer todas as tipologias de pecados e pecadores, com uma hierarquização dos pecados, do mais leve ao mais grave. Nessa viagem, Dante e Virgilio se encontram com muitos personagens, alguns originais de sua época. De início, eles encontram os pecadores que possuem pecados mais leves, os luxuriosos, como Francesca de Rimini (uma nobre da época) e como tal condenada ao inferno. No final, encontra Satanás, que pune os traidores.

Foto: Reprodução/extraído da Divina Comédia

Saindo do inferno, eles sobem ao purgatório – uma montanha dividida em círculos, onde estão condenados a se purgar, ou seja, pagar durante um certo período os pecados que cometeram em vida. Diferente do inferno e do paraíso onde há eternidade, no purgatório existe um tempo para o arrependimento e a possibilidade de se alcançar o céu. No topo da montanha, chegam ao paraíso terrestre. Feito esse percurso, Dante pode adentrar ao paraíso — Virgílio não, porque era pagão. No paraíso há nove céus concêntricos que rodam entre si, cada um correspondente a uma virtude especial, e em cima dos círculos há uma rosa onde estão aninhadas todas as almas do paraíso. E acima de tudo, o céu superior, onde está Deus, que não pode ser visto, mas intuído. À medida em que Dante sobe ao paraíso, mais a realidade e a concretude das almas se faz diáfana, até chegar a Deus, que é sublime. No último canto, Dante consegue chegar na frente de Deus, mas não consegue descrevê-lo — ou até o descreve muito bem como entidade, mas não consegue descrevê-lo como pessoa.

“É fácil se identificar com Dante. Ao mesmo tempo é uma vida extraordinária, que mexe com nosso lado que ama as expressões fortes e mórbidas, e com certeza a figura dele que nunca se dobra – ou ele volta para Florença como uma pessoa inocentada ou ele não volta. Há muitas coisas que atraem na sua vida e obra”, afirma Maria Cecília Casini. Hoje, essa postura de Dante Alighieri poderia ser chamada de “resiliência”. Mas o que atrai acima de tudo em Dante é sua obra, a divindade de uma comédia para a eternidade, com todos os círculos do inferno, com as agruras do purgatório e com todos os céus que o paraíso pode oferecer. Isso tem nome, com letra maiúscula: Poesia.

Com entrevista de Cláudia Costa, do Jornal da USP


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