Capa do livro Bolsonárias - Foto: Reprodução

Contra ataques à democracia, Miguel Reale Júnior lança Bolsonárias

Em novo Livro, professor da Faculdade de Direito da USP repudia a tentativa de desmonte do Estado de direito no Brasil

 20/07/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Roberto C. G. Castro

Arte: Ana Júlia Maciel

Nos últimos anos, o Brasil assiste a uma persistente manobra de “desconstrução da República”. Através de decretos presidenciais, por exemplo, a participação da sociedade civil em conselhos que definem os objetivos da administração pública foi substituída por representantes de órgãos oficiais – até que o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu tratar-se de ato inconstitucional. Durante a pandemia de covid-19, prefeitos e governadores entraram em conflito com um presidente que ridicularizava o combate ao vírus e fazia campanha contra a vacina. Desde o início de seu mandato, sem nenhuma prova, Bolsonaro gerou desconfiança em relação ao sistema de apuração de votos no Brasil e divulgou fake news sobre o tema. Em 15 de março de 2020, em Brasília, participou de ato contra a ordem constitucional, que pedia o fechamento do Congresso e a volta do Ato Institucional Número 5 – o decreto de 1968 que aumentou a repressão do regime militar então no poder contra opositores.

Esses fatos estão elencados no livro Bolsonárias, que o professor Miguel Reale Júnior, da Faculdade de Direito da USP, acaba de lançar. Nele, Reale Júnior reúne 46 artigos que publicou no jornal O Estado de S. Paulo entre 2018 e 2022, denunciando o que considera “ataques” do presidente Jair Bolsonaro ao Estado democrático de direito no Brasil. “Cumpre velar pela segurança da República de modo muito mais enérgico do que Bolsonaro por sua destruição”, escreve o professor. “Cabe, então, pela palavra reagir quando o presidente ataca abertamente a República.”

O título do livro é inspirado nas Catilinárias – os quatro célebres discursos proferidos pelo orador e cônsul romano Cícero, em 63 antes de Cristo, contra o senador Lúcio Sérgio Catilina, que conspirava contra a República romana. Publicado pela GZ Editora, o livro tem 254 páginas, conta com apresentação do professor de Direito Constitucional Oscar Vilhena, da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e traz, como apêndice, a íntegra do pedido de impeachment de Bolsonaro encabeçado por Reale Júnior e entregue em novembro de 2021 ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

O professor Miguel Reale Júnior, da Faculdade de Direito da USP: “Cumpre velar pela segurança da República de modo muito mais enérgico do que Bolsonaro por sua destruição” – Foto: Wikimedia

"Orgia DE DESATINOS"

Em Bolsonárias, Miguel Reale Júnior é tão contundente em defesa da democracia brasileira como Cícero a favor da República romana. Tome-se como exemplo o artigo Orgia de Desatinos, de 2019. Lembrando que hoje se vive “o tempo da urgência” – em que se quer tudo o mais rápido possível -, o professor destaca que esse pragmatismo é especialmente perigoso quando se trata de dar voz a pessoas “mimadas” que, estando em posição de mando, utilizam o poder para conseguir o objeto de seus desejos. Exemplo disso é a conduta do presidente Jair Bolsonaro, acrescenta Miguel Reale. “Bolsonaro achou ser demasia o valor do aumento do óleo diesel. Confessando, novamente, nada saber de economia, desgostoso com o percentual acima da inflação – quando o reajuste dizia respeito ao mercado internacional -, deu ordem ao presidente da Petrobras para sustar a elevação do preço do diesel, causando na Bolsa perda de valor das ações da Petrobras na ordem de R$ 32 bilhões”, escreve Reale Júnior. “Não importava a Petrobras ser uma empresa de economia mista com independência decisória.”

No mesmo artigo, Reale Júnior cita ações do presidente que, realizadas com o objetivo de obter rapidamente o resultado desejado, trazem prejuízos para o País e para o Estado de direito. Uma dessas ações se refere à defesa que Bolsonaro fez do projeto de lei que retirava a punição de produtores rurais que atirarem em invasores. “A palavra do presidente propondo nova disposição legal que legitime o uso da violência armada é grave exemplo para os concidadãos”, afirma o professor, lembrando que a defesa da propriedade e a legítima defesa já são garantidas pelo Código Civil e pelo Código Penal. “Diante da desnecessidade de novas disposições legais em defesa da propriedade, as palavras de Bolsonaro dando porte de arma a fazendeiros só pode se entender como expulsão à bala a qualquer tempo”, continua Reale Júnior. “Assim, propõe-se ser o conflito possessório resolvido legitimamente na base do revólver. Bolsonaro pretende instalar o faroeste com consagração do uso arbitrário das próprias razões.”

Outra das ações do presidente criticadas por Reale Júnior foi a tentativa de impor obstáculos a cursos universitários ligados à área de humanidades. Em 2019, através do Twitter, o presidente transmitiu a seguinte mensagem: “O ministro da Educação, Abraham Weintraub, estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia. O objetivo é focar em áreas que geram retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina”. Para Reale Júnior, ao impor a redução de verbas para as ciências humanas, Bolsonaro busca eliminar o pensamento diferente do oficialmente aceito pelo governo. “A forma imediata de suprimir a liberdade de refletir está em dificultar ao máximo os cursos de filosofia, sociologia e das demais áreas das ciências humanas, pois eles perigosamente suscitam uma visão crítica”, escreve o professor. “Faz-se, sem cerimônia, tábula rasa das conquistas do espírito ao longo de nossa civilização.”

O presidente Jair Bolsonaro: ataques constantes ao Estado democrático de direito, segundo Miguel Reale Júnior – Foto: Flickr

No artigo Prevenindo o Golpe, de 2021, Reale Júnior cita “três caminhos” trilhados pelo presidente para permanecer no poder: a entrega do governo ao Partido Progressistas (PP), para evitar o impeachment, o financiamento do novo Bolsa Família – agora chamado Auxílio Brasil -, para obter popularidade entre a população pobre via assistencialismo, e a defesa do voto impresso, para contestar uma possível derrota eleitoral. 

Esses três caminhos trazem consideráveis riscos para o País, considera Reale Júnior. Ele lembra que o PP é a sigla que abrigava o deputado José Janene (1955-2010), réu no chamado “processo do mensalão”, a quem se atribuiu a organização da corrupção na Petrobras. O novo Bolsa Família – acrescenta – não passa de tentativa de compra de popularidade, explorando a miséria que o governo de Bolsonaro fez aumentar no País. Já a narrativa contra o atual sistema eleitoral é uma farsa utilizada para negar a legitimidade das eleições em caso de fracasso eleitoral, como fez o presidente norte-americano Donald Trump, continua o professor.

Contra esses riscos, Reale Júnior afirma que é preciso haver reação no País: “Cabe à sociedade civil, por diversos setores e importantes figuras, se antecipar e sair a campo em defesa da legitimidade do processo eleitoral, desfazendo a empulhação do voto impresso para impedir o golpe”. 

O “direito” à mentira

Em outro artigo publicado em Bolsonárias, intitulado O “Direito” à Mentira, também de 2021, Reale Júnior reproduz palavras ditas por  Bolsonaro durante a solenidade de entrega do Prêmio Marechal Rondon de Comunicações, realizada naquele ano. Na ocasião, o presidente afirmou: “Fake news fazem parte da nossa vida. Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada?”. E, contrário ao controle de plataformas sociais que disseminam notícias falsas, completou: “Não precisamos regular isso aí, deixemos o povo à vontade”.

Para Reale Júnior, o presidente tenta banalizar a mentira e normalizar a desinformação porque sabe que o falseamento da verdade foi o principal expediente utilizado por ele para vencer a eleição presidencial de 2018. “Por isso, visa a proteger o ‘direito’ à inverdade, proibindo por medida provisória a exclusão de falsidades pelas próprias plataformas.”

Citando o livro Eles em Nós – Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século XXI, de Idelber Avelar, lançado em 2021, Reale Júnior menciona um estudo realizado por pesquisadores da USP e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De acordo com esse estudo, somente quatro entre as 50 imagens mais compartilhadas em 347 grupos bolsonaristas da plataforma WhatsApp eram verdadeiras. “A CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das fake news também fez pesquisa sobre a influência da mentira no processo eleitoral, permitindo à relatora Lídice da Mata declarar: ‘Nossas investigações sempre apontaram para uma rede de desinformação que pode, sim, ter influenciado o pleito eleitoral de 2018 e que continua atuante, com fortes suspeitas de amplo apoio da família Bolsonaro’.”

Diante do perigo que ameaça a democracia brasileira, Reale Júnior considera pertinente, no prefácio de Bolsonárias, repetir – com uma pequena adaptação – as frases iniciais do primeiro discurso de Cícero contra Catilina: “Afinal, Bolsonaro, até quando abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo esse teu furor ainda zombará de nós? Até que ponto tua audácia sem freios se voltará contra nós?”.

Bolsonárias, de Miguel Reale Júnior, GZ Editora, 254 páginas, R$ 129,00.

“O país vive farsas promovidas pelo presidente e sua turma”

Leia a seguir trechos do artigo Preocupação com o Brasil, de Miguel Reale Júnior, publicado no livro Bolsonárias

A vida política brasileira cinge-se hoje à discussão distante da realidade, circunscrita a elucubrações e tratativas acerca de coligações nas eleições presidenciais e seus reflexos na composição de chapas estaduais.

(…)

Com esse panorama reduzido às possibilidades de acordos com vistas à eleição, tem-se a impressão de que o Brasil “vai indo” e seu destino não apresenta perigos, pois tudo é superado pelas artimanhas dos conchavos, pela satisfação das ambições daqueles que se intitulam membros da classe política dirigente, mas cuja bússola é voltada apenas aos seus interesses pessoais.

A tomografia do nosso país indica, contudo, a absoluta ausência de governo, sem qualquer planejamento estratégico a mostrar quais medidas concretas devem ser implementadas para resolver os diversos desafios.

O país vive farsas promovidas pelo presidente e sua turma, a começar pela auto-outorga da Medalha do Mérito Indigenista, quando é acusado da prática de crimes contra a humanidade em face das populações indígenas durante a pandemia, com denúncia junto ao Tribunal Penal Internacional.

Somos condenados a viver um processo esquizofrênico, com a convivência concomitante de duas realidades conflitantes: o mundo do “faz de conta”, vivenciado pelas lideranças políticas, preocupadas com os conluios e cálculos eleitorais, e principalmente por Bolsonaro, com sua central de fake news, a se fantasiar de super-herói em “motociatas” e passeios de jet ski.

Só que há um Brasil real, a denunciar a inconsistência desse mundo fantasioso das ambições pessoais. O Brasil composto pelos problemas efetivos: inflação; miséria e fome; desemprego elevado; crescimento pífio do PIB e redução da renda per capita; deterioração de nosso parque industrial e do meio ambiente; crise sanitária; vulnerabilidades em nosso comércio exterior; além da continuidade da corrupção.

Não há governo e também não há atuação dos organismos de controle, fundamentais no autocrático sistema presidencialista, pois é essencial a atuação fiscalizadora e repressora da Câmara dos Deputados e da Procuradoria Geral da República. Essas, por interesse político, renunciam à tarefa de processar as condutas ilegais promovidas pelo chefe do Executivo e seus sequazes.

Diante dessa ausência de governo e de fiscalização, quem ocupa o espaço de efetivação do orçamento, espinha dorsal do exercício do poder?

As emendas parlamentares já constituíam moeda de troca em outros governos. Todavia, até tinham valor igual para todos os parlamentares, a destinação era conhecida e sua pertinência, examinada pela Executivo.

Na gestão de Arthur Lira criou-se, todavia, o maior instrumento de corrupção, “o orçamento do centrão”, por via do qual se institucionalizou a Emenda do Relator, cujo valor alcançou R$ 21 bilhões em 2021. Por essa Emenda o relator indica diretamente a destinação de verba aos ministérios para aplicação em obra específica em determinado município. Fica-se sem saber, posto que oculta, quem é a figura parlamentar por detrás dessa indicação feita em valores de livre fixação a municípios escolhidos a dedo, conforme a importância do interesse político. 

(…)

A Academia Paulista de Letras, ao tomar ciência dessa situação, decidiu, como cultora da nossa soberania, fazer uma conclamação alertando sobre esses perigos que podem levar à bancarrota.

Assim, na ausência de lideranças efetivas, com o País em degenerescência, a Academia pede aos que se preocupam com o futuro do Brasil esforços para promover debate sobre as mudanças necessárias a enfrentar, com pensamento estratégico de médio e longo prazo, as nossas vulnerabilidades.


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