Com as suas câmeras, eles lutaram contra o fascismo

Fotografias de Robert Capa, Gerda Taro e David Seymour sobre a Guerra Civil Espanhola – que ficaram perdidas durante 67 anos e agora são expostas em São Paulo – redefiniram o fotojornalismo contemporâneo, afirma professor da USP

 08/08/2016 - Publicado há 8 anos
Por
Foto Cecília Bastos/Usp Imagem
Gerda Taro na linha de frente da Batalha Brunete – Foto: Reprodução

Madri, fevereiro de 1937. Robert Capa e Gerda Taro, sua mulher, caminham entre as ruínas dos edifícios de Madri depois de um ataque aéreo nacionalista. A indignação do casal está em uma sequência de dezenas de imagens. A impressão é de que Capa e Gerda fotografam, lado a lado. Registram as fachadas destruídas dos edifícios, os destroços que se amontoam sobre as vítimas e as poucas pessoas que caminham pelas ruas em busca de um rastro de vida, recolhendo lenhas e buscando vestígios de seus pertences.

Os dois seguem documentando a vida nas trincheiras, o cotidiano dos soldados na defesa da cidade. Enquanto Capa e Gerda fotografam a linha de frente, o amigo David Seymour, mais conhecido por Chim, se atém a retratar as crianças, as mulheres, os soldados. Entre as suas imagens, destaca-se o movimento social, como a assembleia de populares sobre a reforma agrária. O foco é uma mulher de pé amamentando o filho. Chim faz questão de destacar o seu olhar sob o sol, e o que mais impressiona é o rosto dividido pela luz e pela sombra.

São essas imagens originais da Guerra Civil Espanhola que podem ser vistas na Caixa Cultural São Paulo pela primeira vez no Brasil. A exposição A Valise Mexicana tem também uma história singular. Nessa lendária valise estavam os negativos reunidos em três caixas com 4.500 imagens dos três fotógrafos sobre o conflito. Uma documentação que se extraviou diante do caos provocado pela chegada dos alemães, em 1940. E foi encontrada 67 anos depois, na Cidade do México.

“Essa mostra é uma oportunidade única e valiosa para conhecer o trabalho de fotógrafos que tiveram grande influência na definição do fotojornalismo moderno”, observa o professor Wagner Souza e Silva, que leciona Fotojornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Ao trazer imagens de Gerda Taro e Chim, a exposição tem o importante mérito de diminuir o foco sobre Robert Capa, que é um personagem consagrado na história da fotografia, justamente por ter encarnado, como nenhum outro, o fotógrafo destemido, aventureiro e engajado. E que traduziu, assim, uma visão romântica da profissão, que ainda é bastante celebrada.”

Foto: Cecília Bastos/Usp Imagem
Robert Capa registra o drama das crianças na guerra – Foto: Reprodução

O professor recomenda percorrer a mostra com calma. “Essa exposição pede uma segunda ou terceira visita”, observa. “O grande número de imagens apresentadas, além dos materiais de suporte, revistas e jornais da época, traz uma riqueza de informações que é explorada no projeto expográfico. É uma mostra para o público em geral, mas, especialmente, para os interessados em fotografia, jornalismo e história.”

Para o professor, é importante notar a intimidade do trabalho de Capa, Gerda e Chim. “Mas não somente a intimidade entre eles, coisa que surge de maneira espontânea em imagens que demonstram uma mútua documentação fotográfica. Por exemplo, a imagem de Gerda, na cama, acordando sob as lentes de Capa, é de uma beleza única. Trata-se, principalmente, de apreciar a intimidade de um ofício que é inevitavelmente solitário. Afinal, quantos olhos cabem no orifício da câmera? Isso porque, ao trazer os negativos na íntegra, por meio das ‘provas de contato’ dos fotógrafos, ou seja, as folhas que apresentam as imagens em forma de tiras dos filmes, a mostra propicia o momento mágico em que o fotógrafo se depara, pela primeira vez, com suas imagens positivadas. Assim, consegue revelar a intimidade dos percursos criativos de cada um e ganha ainda mais brilho quando, em alguns momentos, temos a possibilidade de compará-los em atuações simultâneas.”

Tema polêmico

O professor Everaldo de Oliveira Andrade, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, percorreu os dois andares da exposição analisando atentamente cada imagem. “A revolução espanhola, em seus 80 anos, vem sendo pouco rememorada. Segue sendo um tema polêmico na Espanha de hoje e tem atualidade se pensarmos também na situação vivida, no momento, em nosso país. Por isso, vejo com grande satisfação a oportunidade oferecida pela mostra ao permitir nos aproximar visualmente daqueles eventos”, ressalta. “Para se aproveitar bem da riqueza do acervo, é preciso acompanhar cuidadosamente a sequência de fotos, e muitas delas exigem que se use uma lente de aumento para se aproximar de detalhes importantes. É possível fazer consultas complementares a gavetas com exemplares originais de publicações em que as fotos foram publicadas, o que nos permite uma melhor aproximação com as leituras que se faziam na época dessas imagens. Dois pequenos filmes de época são transmitidos nos espaços de exposição e merecem ser vistos como documentos visuais complementares, mas também por revelarem os contextos de mobilização política em torno das atividades que registraram as fotos durante a revolução.”

Assembléia sobre reforma agrária, foto de David Seymor, o Chim - Foto: Cecília Bastos/Usp Imagens
Assembleia sobre reforma agrária, em foto de David Seymour, o Chim – Foto: Reprodução

Everaldo Andrade observa o testemunho pessoal dos fotógrafos. “Eles estão ao lado dos republicanos e buscam reforçar alguns temas que são importantes a essas forças. Mostram o heroísmo dos combatentes republicanos contra as forças fascistas de Franco, mas também a brutalidade da guerra, as cenas com mortos e cidades arrasadas pelos bombardeios. Registram as contradições de uma revolução que se desenrolava no decorrer da própria guerra civil”, descreve.

A tônica social, na avaliação de Andrade, alia o trabalho dos três fotógrafos. “Destacaria duas sequências interessantes: as grandes assembleias sobre a reforma agrária e a participação dos mineiros asturianos lutando com suas dinamites contra os fascistas muito melhor armados.” Essas duas passagens, segundo o professor, expressam a mobilização social que se desenrolava de maneira paralela e combinada com o próprio desenrolar da guerra. “A ênfase a alguns desses aspectos termina por construir uma estética que realça muito mais o caráter social das ações – como as grandes mobilizações políticas e sociais dos republicanos e os impactos humanitários – do que a suposta ‘modernidade’ das ações militares, representadas pelas novas tecnologias de guerra trazidas pela Alemanha e Itália para apoiar as forças de Franco.”

Arte e sociedade

Especialista na Guerra Civil Espanhola, o professor José Carlos Sebe Bom Meihy, também do Departamento de História da FFLCH, busca nas imagens de Robert Capa uma leitura em diversas camadas da estética das imagens e da realidade dos fatos. Ele orienta sobre a importância de ler cada imagem. “As fotos permitem observar o desdobramento da guerra através do olhar e da percepção de Capa. Quando ele fotografa, registra também a história de Endre Ernô Friedmann, judeu nascido em Budapeste que deixou a Hungria aos 17 anos e se tornou conhecido usando o pseudônimo Robert Capa no mundo inteiro.”

Chim registra os republicanos na defesa das artes - Foto: Cecília Bastos/Usp Imagens
Chim registra os republicanos na defesa das artes – Foto: Reprodução

Meihy assinala que a grande matriz imagética de Capa vem das gravuras de Francisco de Goya. “O fotógrafo tem como referência a série produzida pelo pintor entre 1810 e 1814. As cenas registradas por Capa têm a mesma percepção de Goya diante da guerra.”
Como o fotógrafo, o pintor testemunhou o conflito e o drama de cada cena que imprimiu nas gravuras. Registrou a fome, a destruição e a violência. Daí ter colocado o nome, nessa série, de Os Desastres da Guerra, mostrando os conflitos da luta dos espanhóis sob o domínio napoleônico nas cidades de Madri, Zaragoza e Aranjuez.

O professor destaca a arte como espelho da sociedade. “Veja também o painel Guernica, pintado por Pablo Picasso, que mostra o bombardeio daquela cidade espanhola, em abril de 1938.” Meihy lembra também, na literatura, o escritor norte-americano Ernst Hemingway, que foi correspondente de guerra em Madri durante a Guerra Civil Espanhola e escreveu Por quem os sinos dobram. Importante lembrar também o poeta e dramaturgo Federico García Lorca, fuzilado aos 38 anos, no início da Guerra Civil Espanhola.

Nas imagens da mostra A Valise Mexicana, vê-se a preocupação dos três fotógrafos na defesa das artes. Chim, por exemplo, registra em uma sequência de imagens o esforço dos republicanos para proteger a produção cultural de Madri, como o Palácio de Liria, do século 18, que pertenceu à duquesa de Alba, com importantes esculturas, pinturas e tapeçarias.

[cycloneslider id=”expo_robert-cappa”]

.

A exposição A Valise Mexicana está em cartaz até 2 de outubro, de terça-feira a domingo, das 9h às 19h, na Caixa Cultural São Paulo (Praça da Sé, 111, Centro, São Paulo). Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3321-4400.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.