Montagem sobre imagens do filme O Gabinete do Dr. Caligari – Fotomontagem: Vinicius Vieira/Jornal da USP

Cem anos depois, "O Gabinete do Dr. Caligari" reflete pânico atual

Filme de Robert Wiene, marco do expressionismo no cinema alemão, chega ao centenário com inquietante atualidade

Por: Leila Kiyomura e Atílio Avancini
Arte: Vinicius Vieira

Um tempo claro-escuro, dias e noites sem luz. Há um pânico no ar. Todos com a mesma máscara. Olhos tensos. A realidade é um pesadelo. De quem é a culpa? Quem trouxe a morte? Quem é o vilão dessa história que ninguém sabe como vai terminar? Um cenário de ruas tortas, onde todos caminham cambaleantes, ameaçados.

É assim que O Gabinete do Dr. Caligari, dirigido por Robert Wiene (1873-1938), apontado como um dos primeiros filmes do cinema expressionista alemão, é lançado em preto e branco na efervescência artística de 1920 – mas em pleno clima de insegurança política, econômica e social, quando a sociedade alemã estava arrasada e humilhada pelo desfecho da Primeira Guerra Mundial. Período conhecido como República de Weimar, que vigorou de 1919 até 1933, com o início do regime nazista.

Cena do filme O Gabinete do Dr. Caligari – Foto: Reprodução

Jornal da USP conversou com estudiosos de cinema sobre O Gabinete do Dr. Caligari, que tecem um panorama do filme dirigido por Robert Wiene, da arte de seu roteiro, montagem, fotografia, cenografia, interpretação, maquiagem, coreografia, iluminação e também o seu contexto social e político.

“O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, é um dos clássicos da história do cinema mundial, associado ao expressionismo alemão em virtude da direção de arte de Hermann Warm, Walter Reimann e Walter Röhrig”, explica Eduardo Morettin, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Eles tomaram do movimento artístico de vanguarda a distorção e a sinuosidade para conferir ao cenário do filme o ambiente adequado à história de Caligari e Cesare, sonâmbulo que age sob o seu mando.”

Morettin – também professor visitante do Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine da Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 – comenta que o filme foi realizado em uma Alemanha que sentia os efeitos tanto da derrota na Primeira Guerra Mundial quanto da tentativa de organização socialista e revolucionária comandada pela Liga Espartaquista, uma organização socialista e marxista liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. “O Gabinete do Dr. Caligari representa, em 1920, o cartão de visitas ao mundo do novo cinema alemão. Atualização do film d’art, ponto de encontro inédito com a arte moderna, filme comercial da produtora Decla destinado a reconquistar o prestígio do cinema alemão, O Gabinete do Dr. Caligari abre a chamada República de Weimar sob o signo das sombras e do terror.”

Eduardo Morettin – Foto: Acervo pessoal

O professor destaca uma crítica polêmica causada pelo estudioso de cinema Siegfried Kracauer em seu livro De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Filme Alemão, publicado em 1947. O escritor atribui a ação de Caligari, que manipula o sonâmbulo para cometer vários crimes, como símbolo das ideologias autocráticas e imperialistas do sistema alemão. Não é à toa que o historiador alemão Kracauer enxerga em Caligari o início da procissão de déspotas que marcará o período até a ascensão do maior deles, como referido no título de sua obra”, comenta. “A despeito da perspectiva teleológica, é um dos que perceberam em Caligari sua força, capacidade de mobilização e impacto visual.”

Todos os anos, o professor Morettin exibe O Gabinete do Dr. Caligari aos alunos da disciplina História do Audiovisual I do curso de Audiovisual da ECA. “A estranheza que suas imagens provocam, bem como a atuação de Werner Krauss como Caligari e, principalmente, Conrad Veidt como o sonâmbulo Cesare, impressiona os que talvez conheçam pouco desse período e de cinema. Esse mundo representado como verdadeira alucinação, surgido após a dilaceração intestina da guerra e da tentativa de revolução, marca a desesperança que apenas se acentuará depois. Cabe a nós resgatá-lo hoje, a fim de atribuir ao nosso futuro outro destino.”

“A utilização dramática da luz é de central importância nos filmes do expressionismo alemão, movimento ao qual pertence O Gabinete do Dr. Caligari”, afirma Fernanda Riscali, fotógrafa e artista paulistana que fez mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA. “O momento pós-Primeira Guerra Mundial é um período marcado por grande instabilidade social e política, e as características formais e narrativas desse cinema são consideradas o espelho do inconsciente coletivo nacional reinante. Incerteza e medo foram levados à tela, por meio de uma visualidade que remetia à profunda crise de identidade na sociedade de massas e que causava impacto emocional no espectador: perspectivas deformadas, personagens obscuros, interiores claustrofóbicos, luz marcada por contrastes profundos.”

Fernanda Riscali – Foto: Acervo pessoal

Fernanda atua com fotografia no cinema desde 1997. Trabalhou em filmes no Brasil, Europa e Estados Unidos. Uma experiência que a levou a pesquisar as questões sobre a imagem nos estudos de pós-graduação. “No livro A Tela Demoníaca, Lotte Eisner demonstra que os efeitos de claro-escuro, bem como a utilização dramática da luz, já eram uma preocupação na Alemanha antes de Caligari”, constata.

A fotógrafa lembra que, numa conferência sobre as possibilidades artísticas do cinema, proferida em 1916, quatro anos antes do filme de Wiene, o diretor Paul Wegener ensinava que o verdadeiro poeta do filme deve ser a câmera e a iluminação. “Ele defendia que a técnica, a forma dão ao conteúdo seu verdadeiro significado. E acrescentava: ‘Eu me dei conta de que a técnica da fotografia ia determinar o destino do cinema. A luz e a escuridão desempenham no cinema o papel do ritmo’.” A luz era tão importante para o diretor que, em O Estudante de Praga (1913), fotografado por Guido Sibber (1879-1940), a iluminação já estava prevista nos esboços do filme.

A importância da luz em O Gabinete do Dr. Caligari, segundo analisa Fernanda, também é evidenciada no cuidado da preparação do filme. “O diretor de arte Hermann Warm produziu aquarelas indicando não apenas o cenário, mas também efeitos de iluminação. A partir desse planejamento, o diretor de fotografia Willy Hameister criou um desenho de luz que resultou na atmosfera desejada por Robert Wiene.”

Para a fotógrafa, em termos de utilização expressiva da iluminação, o filme continua atual. “É uma obra que deve ser vista e revista. Assisti-lo no momento da pandemia é uma decisão muito pessoal pelo impacto emocional que cria no espectador. Sugiro prestar atenção na forma como a luz do filme é impactante para a narrativa e como traduz os estados emocionais dos personagens.”

“Os livros e filmes clássicos sempre formaram e transformaram a estrutura de uma cultura, mesmo que pouco se fale ou se saiba deles. Quase esquecidos, mas nunca ignorados, estão lá, no ‘lugar-nenhum’ da realidade cotidiana”, comenta Manuel Reis, fotógrafo, artista, escritor e professor aposentado de Fotografia da Universidade Metodista e da ECA. “São as narrativas ‘modernas’ que resgatam e reciclam, quando precisam, o imaginário guardado nas obras clássicas. A Disney, como exemplo, faz isso a toda hora.”

Manuel Reis – Foto: Acervo pessoal

Segundo Reis, a originalidade de O Gabinete do Dr. Caligari foi amplamente recompensada. “Ilustres autores dialogam com o filme, onde ouso incluir Franz Kafka, Mary Shelley, Lovecraft e, quem diria, até Jorge Luís Borges. Este último, no conto There Are More Things, do Livro de Areia. Cito Borges por ter usado no cenário do conto a descrição de uma casa com estranho inquilino, daí inferiu a invisível e monstruosa presença de seu ocupante. O terror sempre virá do desconhecido e o desconhecido sempre será o outro.”

Para Reis, em Caligari o terror vem do cenário, do desenho. “Os personagens, a meu ver, se reapresentam hoje um tanto toscamente, ingenuamente, conquanto vetores do comportamento essencial aos psicopatas e obsessivos. Depois do expressionismo alemão dos anos 1920, nada mais precisaria ser cartesiano no cinema, na pintura e até na arquitetura. Afinal, naquele momento a psicanálise começava.”

O professor chama a atenção para o uso das sombras e da iluminação que incide de baixo para cima, dando o efeito que demoniza a expressão dos personagens. O comportamento da câmera sugere a angústia do confinamento ao nos restringir a percepção do espaço como se o víssemos através de um tubo com paredes escuras. O mais é desenho. Hoje é mais uma obra de teatro e pintura do que de cinema.”

Na aproximação de literatura e cinema, Reis compara: “Na Divina Comédia, outro clássico, a viagem ao inferno é conduzida por narrativa poética. Em O Gabinete do Dr. Caligari, a viagem ao inferno do medo e da loucura é conduzida pelo espaço cênico. É um personagem, supostamente morto, que diz ‘há espíritos por toda a parte, estão ao nosso redor’”.

“Entendo o expressionismo como um movimento do grito. Um movimento do desespero, da ausência de nuanças, de meios-tons, que reflete a insegurança, o medo, o pesadelo”, observa o professor Heitor Capuzzo, mestre e doutor pela ECA, docente titular da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da State University of New York e da Nanyang Technological University de Singapura. “E por isso mesmo é impactante e surge como uma resposta ao que estava acontecendo na Europa. Estou me referindo especificamente ao início do século 20, aquelas crises econômicas todas, aquele rearranjo do mundo, mas no sentido extremamente autoritário e concentração de renda, a expulsão do campo, as grandes migrações. Enfim, parece que o mundo estava de ponta cabeça.”

Heitor Capuzzo – Foto: Acervo pessoal

Na avaliação de Capuzzo, O Gabinete do Dr. Caligari vem com uma concentração de tudo o que havia sido feito antes no movimento expressionista das artes plásticas, que teve ramificação no teatro, inclusive na literatura, e aí condensa todas as propostas anteriores. O filme é icônico porque traz todos os elementos estéticos do expressionismo numa única obra e de modo amplificado”.

Capuzzo chama a atenção para os objetos deformados do filme, tendendo ao desequilíbrio. “É um onírico do pesado, do pesadelo, quase não tem tons de cinza. É uma luz chapada e forte em preto e branco. O ângulo nunca vai ser obtuso. Será um ângulo agudo, tudo com pontas, tudo afiado. Os atores caminham na cenografia como se fossem ser alvejados por facas, por pontas que podem dilacerá-los.”

No filme de Robert Wiene, a ambiguidade está presente em toda a narrativa. “O próprio assassino do filme não permite uma análise racional com seus desacertos, desequilíbrios e exageros. Isso vai ser fundamental dentro da temática do filme porque aquilo que seria um vilão, um assassino, era um sonâmbulo. Ele também é uma vítima. A ambiguidade está em quem é quem ali, inclusive a história toda, no final não sabemos se ela realmente ocorreu ou se é fruto do delírio das pessoas que estão dentro do sanatório.”

Diante desse delírio – continua o professor -, fica a dúvida: “O Caligari é doutor ou é paciente que na sua própria narrativa se torna doutor? Estamos sempre pisando em ovos. Não existe porto seguro no expressionismo. Tudo está frágil. Tudo é perigoso. Tudo é ambíguo, inseguro, como um pesadelo”.

Capuzzo acrescenta: “O expressionismo é aquilo que Freud chamaria de pulsão de morte, mas num sentido de alerta, não destruidor. É um chacoalhar do comodismo, tirar a gente da zona de conforto – falsa e escamoteada – para que possamos enxergar o mundo com olhos abertos e arregalados. Aliás, esse é um elemento comum: a grande metáfora sobre o nazismo. Nas artes plásticas, o expressionismo é premonitório do que futuramente será a Primeira Guerra Mundial. Mas no cinema, com a Primeira Guerra terminada, é a constatação do horror. Todo esse pessoal vai ser exilado e até preso durante o nazismo. E vai voltar o cinema bem arrumado, bem iluminado e às vezes falando do passado de modo leve”.

Foi no período da República de Weimar que surgiram as revistas ilustradas alemãs com preços acessíveis. A inovação não estava apenas em publicar fotografias ou no diálogo texto-imagem, mas na importância que a visualidade passaria a exercer ao desembocar na comunicação de massa. Capuzzo observa: “A cultura pop transforma tudo em perfumaria ao pegar os elementos do expressionismo e colocá-los em gibis. Faz o Batman expressionista, misturando um pouco as vitaminas no liquidificador, mas isso é o lado mais ‘pobre’ da estética, porque o expressionismo vem com uma proposta também de visão de mundo e não de decoração”.

Sabemos que essa estética centenária é contemporânea ao revelar as sombras, as feridas abertas e as dicotomias do cotidiano, diz Capuzzo. E o professor conclui: “É claro que se torna algo atual porque estamos vivendo o mundo reagindo à ação do homem na pandemia e na natureza. Agora há a nuvem de poeira que vem da África às Américas ou a nuvem imensa de gafanhotos. Sempre existiram problemas, mas nunca nessa dimensão tão poderosa. A natureza está respondendo. Percebemos que fomos longe demais e inconsequentes. Aí veio a conta. Por isso mesmo estamos todos perdidos, inseguros e o pesadelo parece que está ocorrendo com os nossos olhos abertos. Completamente perturbador. Mas um alerta para a forma como estamos caminhando”.


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