Biografia de Frans Krajcberg revela o homem por trás do artista

Pintor, escultor e fotógrafo, polonês naturalizado brasileiro assumiu a natureza como matéria-prima e a defesa do ambiente como sua luta, mostra novo livro

 Publicado: 31/01/2025 às 16:42
Por
Capa de livro com imagem de uma obra de arte abstrata.
Ao entrelaçar o talento de Krajcberg e sua personalidade controversa, biografia revela o “herói de carne e osso”, como define o autor do livro, João Meirelles – Foto: Divulgação/Edusp

Quando João Meirelles conheceu o pintor, escultor e fotógrafo Frans Krajcberg (1921-2017), nos anos 1980, tinha 24 anos. Não demorou muito para o filho de um empresário da colonização da Amazônia e o artista do naturalismo integral se juntarem em uma viagem improvável, saindo do sítio de Krajcberg, em Nova Viçosa, na Bahia, rumo a Juruena, no Mato Grosso, percorrendo mais de 3 mil quilômetros rumo à Floresta Amazônica. Contudo, em vez da exuberância do verde, o que encontraram foi a desolação de uma paisagem consumida pelo fogo.

O nocaute daquele cenário de destruição da natureza deixaria sequelas no artista e em sua obra. E a devastação das árvores consumidas pelo fogo da expansão civilizatória, patrocinada por sua família, também faria o jovem Meirelles encontrar sua vocação como ativista ambiental e escritor. Foi talvez por perceber isso que Krajcberg tenha lhe confiado, ali, a missão de escrever sua biografia.

Homem calvo e de óculos.
João Meirelles, autor de Frans Krajcberg: A Natureza Como Cultura – Foto: CV Lattes

Passaram-se quase 40 anos, mas a tarefa finalmente foi concluída e a história, contada. Ou melhor, as histórias. Porque em Frans Krajcberg: A Natureza Como Cultura – livro que acaba de ser lançado pela Editora da USP (Edusp) e Sesc Edições – Meirelles encara a espinhosa demanda de tornar coerente a trajetória de um artista que fez da própria biografia um emaranhado de autoficções, construída a partir de versões muitas vezes contraditórias das passagens de sua vida. E também se debate com o desafio de apresentar, sem condenações nem condescendências, uma figura que aliou sensibilidade e talento a uma personalidade sobre a qual recaíram adjetivos pesados como ingrato, monstro e egoísta.

Para isso, Meirelles valeu-se não só do material acumulado durante sua convivência de três décadas com Krajcberg, mas também foi atrás de pessoas e documentos que poderiam comprovar, corrigir ou ponderar as histórias e passagens apresentadas pelo próprio artista ao longo da vida. Dessa alquimia biográfica resulta um indivíduo complexo, cujos traumas de uma infância pobre, do antissemitismo e da catástrofe da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto encontraram sublimação na arte – seja nas telas, esculturas e fotografias, seja nas histórias que preparou de si mesmo.

Homem de barba e de boné, em camisa de mangas compridas, tendo ao fundo uma floresta.
Frans Krajcberg – Foto: TV Brasil (EBC) via Wikimedia Commons/CC BY 3.0 BR

Krajcberg nasceu no vilarejo polonês de Kozienice, dentro de uma família pobre da comunidade judaica. Aos 17 anos, assistiu à invasão da Polônia pelas tropas da Alemanha nazista e foi levado para um campo de trabalhos forçados. Conseguiu fugir, juntando-se ao Exército Popular da Polônia e, perto do fim da Segunda Guerra Mundial, abrigou-se em um campo de refugiados controlado pelos Estados Unidos em Stuttgart, na Alemanha. Foi lá que frequentou a Academia Estadual de Artes e teve aulas com o alemão Willi Baumeister, sua única instrução formal no campo das artes. Antes de emigrar para o Brasil, em 1949, passou uma temporada em Paris, na França, onde tinha intenção de estabelecer moradia.

Essas são as linhas gerais que Meirelles apresenta dos primeiros anos do artista, costurando a difícil reconstrução da época com documentos da comunidade judaica internacional, relatos de sobreviventes e declarações por vezes contraditórias de Krajcberg. Um trabalho áspero, em grande medida, porque ele próprio se esforçou para esquecer a vida antes do Brasil. Krajcberg detestava ser enquadrado como polonês e sentia que não fazia parte da Polônia. Considerava ter nascido “pela segunda vez” no Brasil e, sintomático desse processo, não sabia ao certo sua própria data de nascimento. Também se recusava a falar iídiche e polonês e tratou de cortar laços com seus parentes, deixando mágoas e ressentimentos naqueles que o ajudaram nos momentos difíceis.

Não há explicação exata para as posturas um tanto egoístas e descompromissadas com que Krajcberg saudou durante a vida parentes, amigos e admiradores, e seria simplista atribuí-las apenas às experiências da guerra. O que o livro de Meirelles sublinha é que sua conduta se organizava a partir da preferência pela natureza, vocalizada pelo próprio artista, em relação aos homens, especialistas em destruição, como tão bem demonstraram ao longo do século 20. “A natureza é a minha cultura”, disse Krajcberg, como registra o biógrafo. “É ela que me dá o desejo de viver. Muitas vezes o diálogo é mais rico com a natureza que com os homens. Um pedaço de pau no meio do mato chega a me dizer mais que algumas pessoas.”

Isso não significa que Krajcberg viveu como um eremita. Longe disso. Teve diversas namoradas, passou boa parte da vida em cafés, restaurantes e bares, conviveu com uma longa lista de artistas e colaboradores e se hospedou diversas vezes com familiares, amigos e admiradores. Foi assim no Rio de Janeiro, por exemplo, primeira parada brasileira, em 1949, recebido por um tio com conforto, espaço para se dedicar à pintura e um noivado marcado. Levou seis meses para renegar tudo isso, ávido por tentar a sorte em São Paulo.

Meirelles não foge de retratar a personalidade controversa do artista. Depoimentos reunidos pelo biógrafo mostram as dificuldades de suas relações, a série de rompimentos e os afastamentos que acabaram deixando a impressão de um indivíduo interesseiro. “As pessoas se cansavam dele”, declara o gravador e amigo Rossini Perez. “Ele vai, vai… até exaurir a pessoa! Mas, apesar disso, ele tinha um lado muito humano. Ele tinha um lado criança, adorável, e o lado monstro; e um lado artista, grande artista, realmente!”

Faceta que não demorou para ser reconhecida em solo tropical. Em 1950, Krajcberg participaria de duas exposições coletivas e, no ano seguinte, realizaria sua primeira mostra individual. Ainda em 1951, integrou o Primeiro Salão Paulista de Arte Moderna e a Primeira Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Seis anos depois, em 1957, já naturalizado brasileiro, foi reconhecido como melhor pintor nacional na 4a Bienal e também ganhou o Prêmio Aquisição no 6o Salão Paulista. Seus trabalhos com temática de samambaias, resultado de sua vivência na Mata Atlântica paranaense, anunciavam o interesse pela natureza, que se tornaria a obsessão de sua produção.

Em sua temporada em Paris – para onde se mudou em 1958, esperançoso de permanecer lá para sempre –, pôde visitar Ibiza, na Espanha, quando começou a utilizar a natureza como matéria-prima de seus trabalhos. Fez “impressões” diretamente das pedras, com papéis japoneses molhados sobre as rochas, criando em seguida “quadros-de-terra”, dispondo objetos como areia, pedras e terra em painéis de madeira. Lá passou também a coletar materiais durante suas andanças, método que se estenderia por décadas. Data desse período ainda o início de seu interesse pela fotografia.

Depois, Krajcberg avançaria para os pigmentos naturais e as flores de madeira na região do município de Itabirito, em Minas Gerais, onde também aprofundou o uso da fotografia. Aos 50 anos, em 1972, teve pela primeira vez “sua própria cama”, com o sítio Natura, em Nova Viçosa, no sul da Bahia, encantando-se com os manguezais. Em 1978, empreenderia uma viagem pelo Rio Negro ao lado do artista plástico Sepp Baendereck e do crítico francês Pierre Restany, aventura que gerou o Manifesto do Rio Negro, redigido por Restany e assinado pelo trio, advogando um “naturalismo integral” no qual a arte se basearia na natureza brasileira.

O ponto, indica Meirelles, é que não eram as pessoas que mobilizavam Krajcberg, mas as formas vegetais, vivas ou mortas. E foi isso que o levou para a luta quixotesca, aponta o biógrafo, contra os moinhos da incompreensão humana no trato com a natureza. O artista diria sobre si mesmo: “O que faço é denunciar a violência contra a vida. Esta casca de árvore queimada sou eu”. A experiência da guerra e do Holocausto encontraria, décadas depois, a sensibilidade diante da floresta consumida pelo fogo. A materialidade da madeira carbonizada se tornaria símbolo para uma obra tornada manifesto.

As árvores queimadas e os cipós retorcidos tiveram impacto tremendo sobre o artista, como o próprio Meirelles testemunhou em 1985, em Juruena, no Mato Grosso. O biógrafo posiciona essa experiência como central para a trajetória de Krajcberg dali em diante. Por isso, é justamente o relato de seu encontro com a floresta calcinada que abre o livro:

“Naquela manhã de calor, ele finalmente decidiu vencer o ciclope de uma grande queimada”, escreve Meirelles. “Estancou a camionete e saiu correndo em direção às chamas. O fogo consumia os troncos, que choravam e chiavam, exaustos… Frans, revoltado, discursou para as grandes castanheiras que testemunhavam tudo, em pé, desoladas de dor. Gritava, gritava até enrouquecer.”

Para o artista, o próprio nome da pátria que o adotara estava equivocado. “Brasil, Brasil, Brasil, país nome de árvore, deveria chamar Queimada!”, exclamava. Diante desse cenário, era impensável a arte pela arte. Escultura e fotografia passaram então a ser armas de protesto, os troncos consumidos pelo fogo tornaram-se obras de arte empunhadas como alerta. Veio então o ativismo. Sua militância o faria conselheiro da SOS Mata Atlântica e Krajcberg seria convidado, dos anos 1990 em diante, para uma série de conferências ambientalistas ao redor do planeta. Se dispensava aos humanos tratamento duvidoso, rasgava seu coração para a natureza, sua verdadeira cultura, como afirmou Restany.

“A obra de Frans serve um pouco como despertador, acordando nossa sensibilidade para formas, objetos, questões e momentos que sempre estiveram presentes na paisagem e no cotidiano brasileiros, mas que nunca foram observados suficientemente em seus aspectos artístico, estético e conservacionista”, analisa Meirelles no livro. “Raras são as pessoas que saem ilesas no contato com suas obras ou suas falas. Difícil manter-se impassível diante de um cemitério de árvores como carvão no chão, ou perante um grande painel fotográfico de um homem iniciando uma queimada. É como se as chamas alcançassem o paraíso que nos prometeram. E isso diante de nossos olhos, à luz do dia, a troco de mais alguns quilos de carne bovina, num processo violento que elimina a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica”, denuncia o biógrafo.

Impossível não imaginar, após a leitura do livro, a agonia que teria tomado conta do artista se estivesse vivo em 2024, quando nuvens de floresta queimada tornaram-se a paisagem diária do Brasil durante semanas. Não fosse a certeza de que há nome e endereço certos de quem incendiou a floresta, seria fácil concordar com o tratamento dispensado por Krajcberg à humanidade.

Frans Krajcberg: A Natureza Como Cultura, de João Meirelles, Editora da USP (Edusp) e Edições Sesc, 376 páginas, R$ 122,00.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.