Aos 60 anos, Brasília transcende a imaginação de Lúcio Costa

Patrimônio da arquitetura brasileira, a capital dos sonhos de Juscelino Kubitschek se reinventa no dia a dia

 22/04/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 24/04/2020 as 18:25
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Brasília na época da sua inauguração, em 1960 – Foto: Acervo de Hugo Segawa

O que diria Lúcio Costa se presenciasse os panelaços e as manifestações em Brasília, “a cidade que inventou”, como ele próprio definiu? Ou Simone de Beauvoir, que, em sua visita, com Jean-Paul Sartre, à então recém-inaugurada capital dos sonhos, profetizou: “Esta cidade jamais terá alma, coração, carne ou sangue”?

As pesquisas do professor Hugo Segawa, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, levam a crer que o arquiteto brasileiro e a escritora francesa bem que gostariam de constatar a vitalidade humana de Brasília. “Conversei com Lúcio Costa no final dos anos 1980. Ele se manteve longe da cidade que projetou durante a ditadura militar e voltou no início da redemocratização do Brasil”, lembra. “Tinha uma crença inabalável sobre o destino da cidade, mesmo em tempos de exceção. Só que a cidade real que ele visitou naqueles anos pós-redemocratização transcendeu a imaginação do inventor. Adorou ver a ‘sua’ Brasília contrariar tantos vaticínios ruins que ele teve que ouvir por mais de três décadas. É a cidade que ele pensou, com a vitalidade que ele não imaginou. Lúcio Costa teria hoje 118 anos. Conhecendo o mestre, creio que ficaria exultante com o som dos panelaços.”

Ficaria admirado e feliz como em 1987, quando viu o movimento da população na plataforma rodoviária e também no centro de compras. “Era muito diferente do espaço requintado e cosmopolita que imaginou”, comenta o especialista do Departamento de História e Arquitetura de Estética do Projeto da FAU. “Ele percebeu que uma outra cidade havia sido inventada.”

A inauguração de Brasília, em 1960, e o então presidente Juscelino Kubitschek foram destaque das revistas da época – Fotos: Reprodução

Diante dessa nova realidade, Costa observou: “Quem tomou conta dos espaços foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. Eles estão com a razão. Foi uma bastilha. Brasília tem raízes brasileiras reais. Não é uma flor de estufa como poderia ser. Está funcionando e vai funcionar cada vez mais”.

Admirado e sentindo-se como um pai que vê o filho crescer e buscar o próprio caminho, Lúcio Costa comentou: “Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade. A realidade foi maior, mais bela. Eu fiquei satisfeito, me senti orgulhoso por ter contribuído”.

A líder feminista Simone de Beauvoir viajou pelo Brasil por dois meses e meio com o filósofo Sartre. Estavam, na maior parte da programação, acompanhados pelos casal de escritores Jorge Amado e Zélia Gattai. Fez críticas ferrenhas sobre Brasília. Em uma carta endereçada a Nelson Algren, seu amante norte-americano, a escritora, na elegância dos seus 52 anos, desabafou: “Estou em Brasília, a mais demente elucubração que o cérebro humano jamais concebeu, no caso, o de Juscelino Kubitschek. Notáveis arquitetos o seguiram, e alguns deles conseguiram imaginar criações de primeira ordem, insólitas e harmoniosas, mas que loucura erguer uma cidade tão artificial no meio de um deserto”.

No entanto, segundo Segawa, a escritora aprovou quando viu o movimento dos operários. Declarou: “O lugar transborda de poeira e de vida. Gostei muito de andar por lá e tomar uns tragos em cafés minúsculos”.

“Brasília é uma síntese dos paradoxos de uma nação que é ao mesmo tempo hiperdesenvolvida e subdesenvolvida”, segundo o professor da USP Hugo Segawa – Foto: Acervo de Hugo Segawa

Segawa cita também o depoimento de Jean-Paul Sartre, elogiando, em entrevista à imprensa brasileira, a estética de Brasília. “A Praça dos Poderes é uma das coisas mais belas que já vi. Niemeyer deu essa contribuição da cultura do Brasil ao mundo, pela síntese que conseguiu entre a linha funcional moderna e o barroco português. As linhas são admiráveis e ele é, talvez, um dos maiores arquitetos do mundo.” Porém, criticou a estrutura urbana: “Não gostei, entretanto, da maneira como foi tratada a vida do habitante. Os conjuntos residenciais organizam a vida da população de maneira demasiadamente rígida, até em seus movimentos pelas avenidas”.

 

É uma cidade com alma, coração, carne e sangue. É uma síntese dos paradoxos de uma nação que é ao mesmo tempo hiperdesenvolvida e subdesenvolvida.”

Na avaliação de Segawa, o reconhecimento, em 1987, como Patrimônio da Humanidade trouxe um significado importante para a cidade que nasceu como a capital do amanhã e dos sonhos. “Brasília é a caçula das cidades reconhecidas pela Unesco, ao lado de Lijiang, cujas origens remontam ao século 12, Quito ou Potosí, inventadas pelos colonizadores espanhóis há quatro séculos, ou as brasileiras Olinda ou Goiás Velho, cujas pátinas e ruínas fazem parte do charme urbano.”

O professor destaca também a consolidação do turismo desde o final do século passado. “Brasília nem é a ‘cidade do amanhã’ nem a ficção científica de ontem. É uma cidade com alma, coração, carne e sangue. É uma síntese dos paradoxos de uma nação que é ao mesmo tempo hiperdesenvolvida e subdesenvolvida. Não superou suas contradições, e nem as superará.”

Segawa afirma que Brasília maturou territorialidades simbólicas. “Seus espaços abrigam ritos populares num cenário monumental. A permeabilidade entre espaço público e lugar político estabelece uma relação que configura e reforça identidades sociais e a construção da cidadania.”

A paisagem do Plano Piloto de Lúcio Costa pode dar a impressão de que Brasília permanece imutável. “Mas a cidade se move constantemente. Entre a exuberância formal dos monumentos criados por Niemeyer e a efervescência social nas cidades-satélites, conforma-se a memória urbana da capital. Ela se tornou uma cidade real. Uma cidade em mudança, tão dinâmica como deve ser a historiografia e crítica da arquitetura e do urbanismo”, observa o professor.

 

A construção de Brasília convoca a intelectualidade brasileira a refletir sobre a relação entre modernidade e tradição a partir de uma chave menos literal.

 

A então futura capital do Brasil ainda em construção – Fotos: Acervo de Hugo Segawa

Na análise de Rodrigo Queiroz, professor do Departamento de Projeto da FAU e do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da USP, Brasília, aos 60 anos, é a imagem de uma modernidade nacional em seu estado mais puro. “Se a perspectiva mais radical e utópica do projeto moderno, nas artes visuais, design, arquitetura e urbanismo, foi uma relação de indistinção absoluta entre arte e vida, a partir do desenho de um espaço universal e infinitamente extensível poderíamos dizer que a construção de Brasília representa a materialização mais monumental e emblemática do próprio projeto moderno.”

O professor tem se dedicado à pesquisa da arquitetura moderna e das obras de Oscar Niemeyer e Le Corbusier. Afirma que a modernidade figurativa e literal das décadas de 1930 e 1940, perceptível nas personagens femininas nativas de Di Cavalcanti, nas curvas sinuosas de Oscar Niemeyer e nas sinfonias de Villa-Lobos, passa por um processo de síntese de sua própria linguagem a partir da segunda metade da década seguinte, 1950. “O temário e a invenção quase ficcional de um Brasil profundo, primitivo, e a coreografia falsamente dinâmica e cambaleante das curvas de sua nova arquitetura dão lugar a um projeto de síntese visual e espacial lastreado pela abstração, mais precisamente a abstração construtiva.”

Queiroz afirma que a integração das artes, defendida por Lúcio Costa em Brasília, dá lugar à ideia de síntese. “Agora, as formas solenes, monumentais e silenciosas de Niemeyer resultam do contraste radical entre luz e sombra, cheio e vazio, transparência e opacidade.” Destaca que a construção de Brasília convoca a intelectualidade brasileira a refletir sobre a relação entre modernidade e tradição a partir de uma chave menos literal. “A autenticidade da modernidade, aqui, não se constitui mais a partir do reconhecimento das virtudes e da beleza extraídas da austeridade do nosso passado colonial. Mas é consequência de um gesto capaz de vislumbrar um cotidiano uniforme e universal a partir da construção de formas e espaços que sejam, ao mesmo tempo, a história e a utopia.”

 

Brasília possui a maior área tombada do mundo, com 112,5 quilômetros quadrados, tendo se expandido muito além do Plano Piloto com novos subcentros.

Desenho do Plano Piloto de Brasília em revista da época – Fotos: Acervo de Hugo Segawa

“Não há dúvida de que a parte planejada de Brasília trouxe ao urbanismo contemporâneo brasileiro um conjunto de experiências de grande valor na tentativa de organizar uma cidade da era industrial, mesmo que sua função primordial seria de sediar o governo federal e as funções de apoio para os seus habitantes”, defende o professor Bruno Roberto Padovano, titular do Departamento de Projetos da FAU e conselheiro do Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo (Nutau) da USP.

Segundo o professor, o Plano Piloto de Lúcio Costa, vencedor do Concurso Nacional de Projetos em março de 1957, foi elaborado de forma a conectar-se com o projeto do lago Paranoá, concebido em 1893 pela Missão Cruls. “A inauguração da cidade em 1960 e seu tombamento como Patrimônio Mundial pela Unesco pelo seu impressionante conjunto urbanístico e arquitetônico, elaborado com base ao paradigma racionalista-funcionalista preconizado pelos CIAMs, Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, realizados na Europa principalmente nos entre-guerras mundiais, trouxeram fama internacional à capital brasileira”, destaca o professor.

Padovano acrescenta: “Brasília possui a maior área tombada do mundo, com 112,5 quilômetros quadrados, tendo se expandido muito além do Plano Piloto, previsto para apenas 300 mil habitantes. Tem novos sub centros, perfazendo uma população de um pouco mais de 3 milhões de habitantes. É a terceira maior do Brasil.”

Em suas idas e vindas de Brasília, o professor constatou, ao longo do tempo, que a cidade criada para ser a capital da utopia, de um amanhã feito de sonhos, virou realidade. “A cidade como um todo parece mais com uma colcha de retalhos, um patchwork costurado por todas as classes sociais. Tem a mistura que tanto caracteriza o povo brasileiro.”

Brasília, segundo destaca o professor, foi pensada como uma alternativa às cidades tradicionais, com suas ruas estreitas e congestionadas, falta de verde e de melhores condições sanitárias, visando a ser expressão de uma era industrial em processo de expansão global, na qual a circulação era priorizada e as diversas áreas ficavam fisicamente separadas, ou seja, espaços para moradia, trabalho e lazer, por exemplo. “Foi fortemente influenciada pelas cidades modernistas inovadoras concebidas pelo urbanista franco-suíço Le Corbusier, ou seja, uma solução mais horizontal da sua Ville Radieuse de Paris de 1931, entre as duas grandes guerras mundiais, consolidadas pela Carta de Atenas, de 1933.”

Para o professor da USP Bruno Padovano, “a parte planejada de Brasília trouxe ao urbanismo contemporâneo brasileiro um conjunto de experiências de grande valor na tentativa de organizar uma cidade da era industrial” – Foto: Acervo de Hugo Segawa

“O Plano Piloto do urbanista Lúcio Costa seguiu com inventividade os ditames do paradigma racionalista-funcionalista, inspirado pela ideia de constituir uma cidade-símbolo de um país que se industrializava. Juscelino Kubitschek, o então presidente da República, realizador da transferência da capital do Rio de Janeiro para o planalto no Cerrado, havia aberto a economia nacional às multinacionais que fabricavam automóveis, e seria ele mesmo vítima fatal de um acidente rodoviário”, completou o professor Padovano.

Apesar de reconhecer que há defeitos urbanísticos na cidade, muito voltada ao automóvel, Padovano considera que a sexagenária Brasília não deixa de inspirar os brasileiros com sua carga formal e espacial inovadora, especialmente para a época em que foi concebida. “Ela é o palco de alguns dos principais monumentos do indiscutível gênio da arquitetura brasileira Oscar Niemeyer, na época um grande colaborador de Lúcio Costa. Juntos, eles fizeram história.”

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