Acervo da USP revela as várias faces do Nordeste brasileiro

Guardada no Instituto de Estudos Brasileiros, coleção de Manuel Correia de Andrade – que receberá recursos do BNDES – se destaca em temas ligados a desenvolvimento regional, reforma agrária e ambiente

Fotomontagem com capas de livros de Manuel Correia de Andrade

Acervo da USP revela as várias faces do Nordeste brasileiro

Guardada no Instituto de Estudos Brasileiros, coleção de Manuel Correia de Andrade – que receberá recursos do BNDES – se destaca em temas ligados a desenvolvimento regional, reforma agrária e ambiente

 03/06/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 06/06/2022 as 12:10

Texto: Luiz Prado

Arte: Ana Júlia Maciel

Há quase sete anos, o imponente acervo de Manuel Correia de Andrade (1922-2007) – professor, geógrafo, historiador, advogado e escritor pernambucano – dormia nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Seus 80 mil itens, compostos dos livros de sua biblioteca pessoal, manuscritos, correspondências com intelectuais e documentação institucional de órgãos como a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e a Fundação Joaquim Nabuco, aguardavam o despertador dos recursos financeiros necessários para seu manuseio apropriado.

Agora, no ano do centenário de Manuel Correia de Andrade, esse despertador finalmente tocou e essa vasta coleção começará a ser catalogada e organizada. No final do ano passado, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) aprovou projeto que garante R$ 3,5 milhões para esse trabalho, a ser realizado durante dois anos e meio, tendo a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) como cogestora do projeto, ao lado do BNDES.

O Projeto Manuel Correia de Andrade – como é chamada a iniciativa – é coordenado por Alexandre de Freitas Barbosa, professor de História Econômica e Economia Brasileira do IEB. Guardado pelo instituto desde 2015, o acervo se assenta principalmente nas áreas de história, geografia, economia, ciências sociais e direito e se destaca em temas ligados a desenvolvimento regional, a reforma agrária e à questão ambiental, sobretudo do Nordeste. 

“Manuel Correia de Andrade não se restringiu à reflexão sobre o Nordeste, mas não podemos negar que esse era o espaço específico dele, onde teve atuação política, intelectual e científica e cujo legado nos permite dizer que o IEB, além de ter uma Brasiliana, tem também uma Nordestiniana, como estou chamando carinhosamente”, comenta o professor.

Manuel Correia de Andrade - Foto: Reprodução/ Universidad de Barcelona

Conforme conta Barbosa, a doação do acervo ao instituto foi uma vontade do próprio Andrade, que gostaria de vê-lo ao lado da coleção de Caio Prado Júnior, um de seus mestres e incentivadores. “Isso é um gesto singelo que demonstra parceria intelectual. O acervo de Caio Prado Júnior está aqui e ele foi um dos mestres de Manuel Correia de Andrade”, destaca o professor. “Isso mostra que a atividade intelectual é séria, comprometida e científica e, ao mesmo tempo, feita de lastros entre pessoas que buscam aprofundar o saber e transformar a sociedade, algo que unia os dois.” Andrade teria ficado ainda mais feliz por sua coleção aportar no IEB, assinala Barbosa, se soubesse que alguns anos depois, em 2019, o acervo de outro mestre, Celso Furtado, também chegaria ao instituto.

A terra e o homem no Nordeste

Autor de uma produção vasta na qual títulos acadêmicos se juntam a livros didáticos, Andrade tem como obra central A Terra e o Homem no Nordeste. Escrito em 1963, o volume foi revisto e ampliado ao longo de toda a sua vida, merecendo oito edições e sendo considerado pela Câmara Brasileira do Livro como um dos 100 livros brasileiros mais importantes do século 20.

Inserido no conturbado cenário pré-1964, no qual as reformas de base do governo João Goulart arrepiavam os conservadores e instigavam os progressistas, o livro inovou dentro da geografia ao propor uma abordagem da questão agrária preocupada com as relações de produção e trabalho. Andrade pensou o Nordeste a partir de subáreas – a zona da mata e o litoral, o agreste, o sertão e o litoral setentrional e, a partir de sua terceira edição, o meio norte e a Guiana maranhense – e tratou de analisar como se deu historicamente a ocupação da terra, a constituição fundiária e o desenvolvimento das classes sociais, assim como o lugar do Estado nesse processo.

“Encontra-se no livro algo de verdadeiramente inédito. É que, na extensa bibliografia relativa ao Nordeste, há uma questão que, por estranho que pareça, sempre se relegou a um quase esquecimento, apesar de constituir, sem dúvida alguma, a mais importante, e mais que qualquer outra merecedora de atenção. Refiro-me às relações de produção e trabalho”, escreveu Caio Prado Júnior a respeito de A Terra e o Homem no Nordeste, de Manuel Correia de Andrade.

A Terra e o Homem no Nordeste é a obra clássica de Manuel Correia de Andrade, publicada pela primeira vez em 1963 - Foto: Reprodução

Segundo a pesquisadora Thais de Lourdes Correia de Andrade, autora de uma tese sobre Manuel Correia de Andrade defendida em 2019 no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o geógrafo enfatizou, em sua análise do Nordeste, os processos históricos de conquista e ocupação do território, dando destaque para os sistemas de produção, a questão da estrutura agrária, as relações de trabalho, a proletarização do camponês e as questões ambientais surgidas desse processo.

Com isso, a explicação para os problemas da região deixavam de se centrar na natureza, no regime de chuvas e nas secas para se concentrar nas formas de povoamento e organização que desenharam as relações entre proprietários e trabalhadores. Entravam em cena categorias então distantes do imaginário da geografia da época e essa abordagem crítica, de inspiração marxista enquanto método de análise, incomodou alguns geógrafos quando da publicação da obra, que a consideraram pouco científica e muito política. Em áreas como a sociologia, contudo, o livro foi bem aceito e com o tempo tornou-se também referência para novas gerações de geógrafos.

De acordo com Barbosa, duas obras clássicas sobre a região, publicadas no mesmo ano de 1937, foram importantes para o trabalho de Andrade: Nordeste, de Gilberto Freyre, e O Outro Nordeste, de Djacir Menezes. Se na primeira o enfoque se concentra no litoral e na zona da mata, territórios da cultura da cana-de-açúcar, o livro de Menezes, por sua vez, apresenta a “civilização do couro”, o Nordeste agropecuário. Essa visão de um Nordeste múltiplo será operacionalizada e ampliada no pensamento do geógrafo.

A região, em sua perspectiva, não deveria ser tratada como uma unidade, mas um conjunto de territórios que interagem entre si no espaço e no tempo. Um Nordeste mais plural ainda do que os dois de Freyre e Menezes. “Ele passa pelo período da colonização e, obviamente, pela cana-de-açúcar, mas também mostra o Brasil da pecuária e o agreste da policultura e da pequena produção. Descreve como esses espaços convivem e se digladiam”, comenta Barbosa. “Em alguns momentos, inclusive, a natureza se antropomorfiza e existe quase que uma luta entre o algodão, uma cultura do agreste, e a cana do litoral.”

Do engenho para a academia

Manuel Correia de Andrade nasceu no Engenho Jundiá, em Vicência, cidade situada entre a zona da mata e o agreste de Pernambuco. A vivência no ambiente do latifúndio, ao lado dos pais e dos oito irmãos, se mostraria fundamental em suas reflexões sobre a questão agrária.

Em 1933 muda-se para Recife, onde faz os estudos secundários e em seguida ingressa na Faculdade de Direito, em 1941. Em pleno Estado Novo varguista, dedica-se ao movimento estudantil, toma parte em protestos contra o governo e se filia, por um breve período, ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Acaba preso em 1944, mas é anistiado no ano seguinte.

Documentos pessoais de Manuel Correia de Andrade - Foto: IEB-USP

Paralelamente ao estudo do direito, desde 1943 integra a primeira turma do curso de Geografia e História do que viria a ser a atual Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Ainda estudante, dá aulas em escolas secundárias e, formado, advoga para alguns sindicatos em questões trabalhistas. Em 1952, torna-se professor da Universidade do Recife, futura Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na qual atuaria até 1984.

Por sua participação no governo de Miguel Arraes, vinculada à direção do Grupo Executivo de Produção de Alimentos (Gepa), por sua ligação com o Movimento de Cultura Popular (MCP), orientado para a educação de adultos, e também em virtude da publicação de A Terra e o Homem no Nordeste, acaba detido durante alguns dias após o golpe militar de 1964. Mesmo liberado para retomar suas atividades profissionais, opta por passar um tempo na França, onde estuda na Sorbonne.

De volta ao Brasil, nos anos 1970 se torna pesquisador da Sudene. Nos anos 1980, assume a coordenação-geral de Estudos da História Brasileira da Fundação Joaquim Nabuco. Volta ainda para a UFPE, como titular da Cátedra Gilberto Freyre do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Filosofia e Ciências Humanas.

O geógrafo e professor da USP Milton Santos com Manuel Correia de Andrade - Foto : Arquivo IEB-USP

Quando morreu, aos 84 anos, acumulava um punhado de títulos, como o de Professor Emérito da UFPE e Doutor Honoris Causa por quatro universidades: a Federal de Sergipe (UFS), a Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a Federal de Alagoas (UFAL) e a Unicap. Recebeu a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico, do Ministério de Ciência e Tecnologia, em 2003, e a medalha Capes 50 anos, do Ministério de Educação, em 2001. Também foi agraciado com o Prêmio Milton Santos no Encontro de Geógrafos da América Latina, ocorrido na USP em 2005, e o Prêmio Florestan Fernandes, da Sociedade Brasileira de Sociologia, em 2001. Era também membro da Academia Pernambucana de Letras.

“Agora nós temos a certeza de que seu acervo estará bem conservado e em condições de pesquisa e acesso ao público depois desses dois anos e meio”, afirma Barbosa. “É muito importante ter registrados para os futuros pesquisadores os materiais de trabalho de intelectuais como Andrade. Os documentos falam, revelam elementos que não estão na obra do autor e podem revelar novas camadas dos métodos de seus sistemas de pensamento”, finaliza Barbosa.

De 2015 até 2022​

A vinda dos livros e documentos de Andrade, em 2015, foi recebida com entusiasmo no IEB, mas exigiu também mobilização de sua equipe de professores e funcionários. Quando chegou à instituição, a contaminação de parte do acervo por fungos e insetos fez com que a primeira tarefa fosse levar os materiais para o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), instalado na Cidade Universitária, em São Paulo, a fim de serem submetidos a um processo de irradiação ionizante.

Feito isso, mas com recursos financeiros insuficientes para prosseguir o tratamento adequado do acervo, o próximo passo foi procurar financiamento externo. O professor Paulo Iumatti, do IEB, e a técnica em conservação de documentos gráficos Caetana Britto, também do IEB, redigiram o projeto que foi apresentado ao BNDES, com o auxílio da diretora do instituto, professora Diana Vidal. Foram quase sete anos até a aprovação, vinda no final de 2021.

“Agora nós temos a certeza de que o acervo de Manuel Correia de Andrade estará bem conservado e em condições de pesquisa e acesso ao público. Os documentos falam, revelam elementos que não estão na obra do autor e podem revelar novas camadas dos métodos de seus sistemas de pensamento”, afirma o professor Alexandre de Freitas Barbosa, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

O professor Alexandre de Freitas Barbosa - Foto: IEA-USP

Além do trabalho de catalogação e organização do acervo, estão previstas oficinas de formação nas áreas de conservação e catalogação e o registro de todas as etapas do projeto, na intenção de que as atividades sirvam de referência para outras iniciativas na área de preservação do patrimônio cultural. “Há um componente de formação e de publicização desse processo, a partir de uma perspectiva integrada, para além do objetivo em si da conservação, descrição e organização dos documentos”, indica.

Também estão no horizonte seminários e outras atividades com instituições parceiras, como a Universidade Federal de Pernambuco, a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), a Fundação Joaquim Nabuco e a Universidade Sourbonne Nouvelle, na França, onde Paulo Iumatti, que coordenava o projeto antes de Barbosa, está atualmente. Um desses eventos – o Seminário Nacional A Terra e o Homem – já está programado para acontecer na UFPE, entre os dias 2 e 5 de agosto, e contará com a participação de Barbosa e Iumatti.


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