A insubmissa busca por espaços 

Livro conta de forma detalhada a vida profícua da arquiteta Lina Bo Bardi, criadora do Masp 

 18/06/2021 - Publicado há 3 anos
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Lina Bo Bardi, em 1945, na galeria romana de Pietro Maria Bardi (à esquerda), detalhe de desenho do vão livre do Masp feito por ela (no centro) e a arquiteta em 1988, em Salvador (à direita) – Foto: Reprodução/livro Lina – Uma Biografia

 

“Eu disse que o Brasil é meu país de escolha e, por isso, meu país duas vezes. Eu não nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu escolhi o meu país.” Esta frase, dita em tom confessional mas sem qualquer traço de autocomplacência, talvez seja aquela – entre tantas – que pode resumir a escolha que a arquiteta Lina Bo Bardi fez em meados dos anos 1940, ao trocar sua Itália natal, devastada pela Segunda Guerra Mundial, pelo Brasil – um “país inimaginável”, como ela certa vez afirmouÉ também com essa frase que começa o livro Lina – Uma Biografia, do arquiteto e escritor Francesco Perrotta-Bosch (Editora Todavia), certamente o mais completo estudo biográfico feito sobre a criadora de projetos marcantes como o Sesc Pompeia e – sua obra-prima – o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, ou, como é mais conhecido em um misto de simplicidade e retumbância, o Masp. O volume, um cartapácio de justificadas 576 páginas, narra em pinceladas largas e detalhadas (e detalhistas) a longa, profícua e um tanto polêmica vida da arquiteta, que nasceu Achillina em Roma, em 5 de dezembro de 1914, adotou o apelido caseiro de Lina, casou com o jornalista, galerista e curador de arte Pietro Maria Bardi, atravessou o Atlântico e fez do Brasil seu lar e seu grande projeto em um cavalete de ideais. Ao morrer, aos 77 anos, em 20 de março de 1992, ela era um ícone da arquitetura e da cultura do País.

Capa do livro Lina – Uma Biografia – Foto: Reprodução

Mesmo figura renomada e respeitada no Brasil e no exterior – a recente homenagem na Bienal de Veneza pelo conjunto de sua obra dá bem a medida de sua estatura –, o livro de Perrotta-Bosch traz luz a inúmeros fatos e eventos da vida de Lina Bo Bardi que certamente chamarão a atenção mesmo daqueles que achavam que a conheciam bem. E também servirão para tirar o ponto de interrogação da testa daqueles que pouco ou nada sabiam a respeito dela – sim, esses existem, e nos mais diversos andares do extrato social e político brasileiro. Apesar de ser um trabalho alentado e denso, suas mais de 500 páginas se vencem com tranquilidade e desenvoltura. Isso, por duas razões: a primeira, pela escrita fluida que Perrotta-Bosch imprime ao seu texto. Mesmo eivado de detalhes que vão desde os dizeres em uma carteira do Conselho Estadual de Engenharia e Arquitetura, o Crea, da distante década de 1950, até descrever com olhar atento uma foto antiga de uma Lina jovem, com seus cabelos cacheados, a “franja-rolo” tradicional de uma italiana de boa cepa, a sobrancelha desenhada em arco e os detalhes de seu vestido e sapatos, o autor sabe contar bem sua história, que se apresenta como um retrato vivo e tridimensional de sua biografada.

A segunda qualidade do livro – e o que também torna sua leitura interessante e bem agradável – é a formatação dos seus 42 capítulos. A obra não segue uma tradicional e até previsível narrativa cronológica, se estruturando em uma série de partes que poderiam ser chamadas de “ensaios biográficos”, cada qual com sua vida e história próprias, mas que dialogam uns com os outros, criando um belo e intercambiante mosaico sobre a vida e a obra de Lina Bo Bardi. Podem até ser lidos separadamente e de forma randômica – dependendo do interesse imediato do leitor –, mas vale a pena seguir o desencadeamento linear, mesmo com suas idas e vindas biográficas. O painel final que se forma é dos melhores. “Não é a história de imigrante que faz de Lina Bo Bardi uma figura singular, porém a relação que ela estabelece com um ‘país pobre, de gente pobre’, mas riquíssimo, maravilhoso, onde poderia se fazer’’, escreve Perrotta-Bosch.

Lina, Pietro Maria e o Brasil 

É óbvio que a vida de Lina Bo Bardi é indissociável da de sua cara-metade, seu parceiro por toda uma vida, Pietro Maria Bardi, que se tornaria o professor e orgulhoso senhor do Masp P. M. Bardi. Afinal, eles eram quase que uma entidade única – mas é bom falar isso baixo, pois Lina jamais aceitaria de bom grado uma afirmação dessas, independente do jeito que era. Mas eles se completavam, por mais que já tenha sido dito que havia um grande paradoxo nessa história de amor, arte, ideias e algumas tantas rusgas: como um jornalista especialista em arte e empreendedor cultural que foi subvencionado pelo governo fascista de Benito Mussolini na década de 1930 – até cair em desgraça, já quase no começo da guerra – foi se apaixonar e casar com uma comunista que participava de reuniões clandestinas de resistência contra o governo e que havia abandonado a Cidade Eterna e se mudado ainda jovem para Milão com a família, depois de concluir o curso de arquitetura em Roma e ver seu querido diploma arder em chamas durante um bombardeio aliado? Uma série de interesses em comum, para se resumir bastante, com o tema artístico e cultural em primeiro plano.

Lina e Pietro Maria se conheceram em Roma, já quase no final da Segunda Guerra, quando a capital italiana era uma “cidade aberta”, tomada pelos aliados. Lina havia deixado Milão depois dos inúmeros bombardeios que a cidade sofreu e empreendeu uma viagem para o sul, mas fazendo questão de parar em cada pequena cidade para ver e fotografar o casario e peças do artesanato tradicional do interior – um gosto que mais tarde ela transporia para o interior do Brasil. Ao conhecer Bardi, ela pensou, como relata Perrotta-Bosch: “Finalmente falava de igual para igual com um jovem que julguei um tipo oriental, elegante, gentil”. Os dois se casaram em 1946 e alguns fatores acabaram apontando a bússola do casal para aquele país “inimaginável” ao sul do Equador. Por um lado, Bardi estava em uma situação delicada na Itália do pós-guerra, já que a esquerda o tachava de fascista por suas relações anteriores com Mussolini, e os direitistas o viam com extrema desconfiança, já que havia sido censurado justamente pelo governo fascista. Some-se a isso o incentivo que o então embaixador brasileiro na Itália, Pedro de Moraes Barros, deu para que os dois se mudassem para o Brasil e o caráter de Bardi, que “não era dos mais domáveis” – como lembrou Lina certa vez –, e pronto: os dois italianos estavam preparados para fazer do Brasil sua nova pátria, e São Paulo, sua nova cidade.

Com Pietro Maria Bardi na Casa de Vidro, em São Paulo, em 1985 – Foto: Reprodução/livro Lina – Uma Biografia

 

E não é força de expressão, como se pode ver lá no começo deste texto. Lina Bo Bardi se tornou oficialmente brasileira em 28 de abril de 1953, abrindo mão da cidadania italiana. Uma curiosidade, relatada pelo autor da biografia, dá bem a dimensão do pensamento da época: para conseguir sua nova cidadania, Lina Bo Bardi teve que mostrar, além de toda a interminável documentação que a burocracia exigia, uma carta de Pietro Maria Bardi afirmando que sua mulher “vivia a suas expensas”. Lina não gostou da ideia, mas era necessária. No final das contas, o que ficou foi o amor pelo país de adoção. “Pietro nunca esqueceu a Itália. Ainda hoje! Eu não, não me lembro mais de nada, não me interessa nada. Só o Brasil, porque acho um país pelo qual tenho um carinho especial”, disse Lina poucos meses antes de morrer.

E esse Brasil, para Lina Bo Bardi, não era o Brasil das altas rodas, das classes altas, do superlativo. A arquiteta tratava com frieza e até um certo desdém os representantes dessa casta. O Brasil que Lina gostava e queria ver e conhecer a fundo era o país dos mais pobres, das tradições culturais de raiz, mais pé no chão do que em pisos acarpetados. Quando viveu em Salvador – dividindo seu tempo com idas a São Paulo, onde estava sua casa e Pietro Maria – a arquiteta deixou isso bem claro. Ela foi para a capital baiana em abril de 1958, primeiro para proferir palestras na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e depois para dar aulas na própria escola, por um curto período. Essa foi a segunda experiência de Lina Bo Bardi como professora. A primeira, um tanto traumática para ela, foi na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a FAU-USP, entre 1955 e 1956, quando a faculdade ainda estava no casarão da Rua Maranhão. Contratada como temporária e em regime emergencial para substituir um professor, Lina viu a grande chance de se integrar formalmente ao corpo docente da faculdade quando foi aberto um concurso. Mas surgiu um problema: como ela não tinha o diploma – queimado nos bombardeios a Milão, lembram? –, sua candidatura foi indeferida. Não satisfeita com a resposta administrativa (que ela via também como implicância e resistência a seu nome), ela entrou na justiça – como lembra o biógrafo, ela era “insubmissa diante de qualquer interlocutor, desvencilhando-se de imposições prévias”. E o caso se arrastou, com o concurso jamais sendo aberto de fato. A arquiteta nunca escondeu sua mágoa com a situação. Trinta anos depois, a volta muito por cima: Lina Bo Bardi foi homenageada em 1989 no auditório lotado da sede da FAU, na Cidade Universitária.

Mas voltemos a Salvador, já que a estadia de Lina na capital baiana até 1964 representa alguns pontos indissociáveis de sua biografia. Foi lá que a arquiteta manteve contatos e empreendeu trabalhos que foram marcantes. Foi dela o projeto para a criação do Museu de Arte Moderna da Bahia, o Mamb, fundado em 1960 e que ela também dirigiu, e a restauração do secular Solar do Unhão, debruçado sobre a Baía de Todos os Santos. Este velho casarão, um marco na cidade, ostenta uma obra indelével de Lina Bo Bardi: ali, onde passaram escravos e senhores de engenho, está instalada uma improvável e modernista escada que parece flutuar no amplo salão do solar.

A arquiteta no escritório do canteiro de obras no Masp, em 1968 – Foto: Reprodução/livro Lina – Uma Biografia

 

Foi também em Salvador que Lina criou afetos e desafetos, além de explorar ainda mais seu interesse pela cultura popular. Entre as pessoas mais queridas estava um jovem Glauber Rocha, que havia largado o curso de Direito para enveredar pelo cinema e que assistia embevecido às palestras da arquiteta. Lina, que o considerava seu pupilo mais querido, chegou a acompanhar o cineasta ao interior baiano para as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, aproveitando para conseguir peças de artesanato local para o Mamb, que ela queria que fosse também um museu de arte popular. Ela até poderia ter conhecido também um muito jovem Caetano Veloso, que sempre que podia acompanhava seus passos entre o hotel onde ela vivia e a sede do museu. Mas a timidez do futuro criador do Tropicalismo o impediu de chegar mais perto naquela época.

Ela também ficou muito amiga do artista Mário Cravo Junior, que a apresentou a Pierre Verger. Ao chegar à casa mal-ajambrada do fotógrafo francês, que havia deixado seu país natal, adotado a Bahia como lar e se apaixonado pelo candomblé, ela se encantou com “aquela moradia exótica”. Porque era disso que Lina Bo Bardi gostava: a simplicidade, o exotismo, do popular. Aos poucos interlocutores que a entendiam, ela gostava de perguntar sobre “um capoeirista qualquer, uma baiana de tabuleiro em certa rua, um terreiro de candomblé meio escondido e distante da região central”. Mas nem sempre ela era compreendida, principalmente na Salvador de finais dos anos 1950, começo dos 1960, ainda com uma grande carga provinciana. As pessoas a censuravam por usar calça comprida e camisa, quando as senhoras “de bem” usavam vestidos esvoaçantes – ela explicava que era uma forma de se impor, como mulher, junto aos trabalhadores de suas obras. Mas ela tinha que conviver com a misoginia e o machismo da época. Mas não aceitar. “Até os que se diziam amigos depois a caracterizaram como italiana de temperamento mercurial”, escreve Perrotta-Bosch em seu livro.

Um vão aberto para a arte 

Mas se Salvador é um ponto de inflexão na biografia de Lina Bo Bardi, foi em São Paulo que de fato ela escreveu sua história. Afinal, foi lá que ela ergueu seu primeiro projeto – justamente a chamada Casa de Vidro, em meio à mata do Morumbi, onde ela e Pietro Maria Bardi viveram por toda a vida e que hoje é uma fundação que leva o nome do casal. E foi lá também que ela criou suas obras mais icônicas, como o já mencionado Sesc Fábrica Pompeia e o Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa. Foi para Zé Celso, inclusive, que ela deu uma resposta que talvez possa contestar aqueles que a viam como um ser, digamos, complicado: “Eu não sou bruxa, sou arquiteta. Eu não atravesso, eu quebro paredes”.

A Casa de Vidro, no bairro do Morumbi, em São Paulo, que Lina Bo Bardi projetou e onde viveu com Pietro Maria Bardi – Foto: Reprodução/livro Lina – Uma Biografia

 

E entre tantas paredes que Lina quebrou ou tentou quebrar, metafóricas ou não, havia a parede da ditadura militar, instalada em 1964, mesmo ano em que a arquiteta deixou Salvador. Comunista convicta – “stalinista”, como ela gostava de afirmar –, ela bem que tentou derrubar aquela fardada, da forma que desse. Se relacionou com oposicionistas, recebeu na Casa de Vidro gente da resistência armada e até Carlos Marighela. Resultado? Um inquérito militar, em 1970, que a obrigou a se refugiar na Itália por sete meses e quase a levou à prisão. Ela passou anos respondendo ao processo em liberdade, mas a história acabou bem para o casal Bardi.

Porque, afinal de contas, aquela dupla, aqueles siameses de corpo, alma, gostos e temperamento, tinham a sua grande joia para mostrar: o prédio do Masp, instalado na Avenida Paulista, com seu famoso vão que se estende por 70 metros e é sustentado por quatro pilares vermelhos, talvez o mais famoso cartão-postal de São Paulo. Um vão aberto para a arte exposta não em paredes, como a tradição ensinava, mas sim em painéis de cristal suspensos, como que pairando à frente do visitante. Tanto a ideia dos painéis – que já haviam sido pensados na primeira sede do Masp, na Rua Sete de Abril, no começo dos anos 1950 – quanto o vão livre foram projetos de Lina Bo Bardi, respeitando um desejo do doador do terreno para a cidade, Joaquim Eugênio de Lima. Ele não queria que nada impedisse, dali, a vista para o centro da cidade. A solução seria fazer ou algo subterrâneo ou uma estrutura suspensa. Lina optou pelas duas ideias e coube ao engenheiro João Carlos de Figueiredo Ferraz colocar em pé aquele projeto inusitado. A sede na Paulista foi inaugurada em 1968, com a presença da rainha Elizabeth II. E a exposição inaugural não poderia ser mais Lina Bo Bardi: chamava-se A Mão do Povo Brasileiro, dedicada à cultura popular.

O Museu de Arte de São Paulo, o Masp: obra-prima de Lina Bo Bardi – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

O Masp, como se sabe, é uma ideia do empresário e jornalista Assis Chateaubriand de finais dos anos 1940, que queria um “museu de arte moderna e antiga” para São Paulo. E os Bardi foram os eleitos para a empreitada, não sem antes Pietro Maria determinar que deveria ser apenas “um museu de arte”, sem designações de períodos ou escolas. Bardi e Chatô trataram de garimpar obras na Europa falida do pós-guerra. Pietro Maria escolhia, Chatô fazia o cheque – que nem sempre era com seu dinheiro, mas sim de empresários que o dono dos Diários Associados, o maior conglomerado jornalístico da época, “convencia” de formas pouco ortodoxas a fazer doações. Foi assim que vieram para o Masp Van Gogh, Goya e outros mestres das artes plásticas.

Mas não podia faltar uma pitada de polêmica. Afinal, o projeto era de Lina Bo Bardi. E ela surgiu, em uma das vezes, em um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, escrito por Julio Tavares em 1970, que reclamava, com boa dose de elitismo, dos suportes expositórios adotados por Lina. Perrotta-Bosch recupera o texto: “Meter aqueles quadros todos como roupas no varal é um exercício de armar quebra-cabeças apreciável, mas não é um modo de apresentar quadros para informar, educar e satisfazer a emoção estética das pessoas. Debaixo de uma mulher de Renoir surgem as pernas de um senhor de Guarulhos que foi ver o museu e acaba sendo mais visto do que os quadros”, escreveu o cronista, frisando ainda que “adora Guarulhos” mas que não aprovava aquela simbiose entre visitante e obra. Lina Bo Bardi não fez por menos e deu a réplica, bem ao estilo de alguém que não só não tinha papas na língua como também não tinha qualquer pendor para tolerar o elitismo burguês. A ideia do museu, para ela, era “apresentá-lo de modo que possa ser compreendido pelos não iniciados, pelos senhores de Guarulhos tão diferentes dos elegantes visitantes dos grandes museus tradicionais, cujas ‘auras’ são sempre conservadas mesmo nos arranjos modernos”. A arquiteta, assim, fazia questão de frisar a característica cultural e educativa do Masp. E finalizou, com uma cutucada certeira: “O museu é dedicado às senhoras e aos senhores de Guarulhos”.

“A ideia por trás dos cavaletes de vidro do Masp é a mesma com que Lina Bo Bardi buscou arquitetar sua própria vida. Uma postura ativa perante os acontecimentos”, escreve Perrotta-Bosch em seu livro. E que ele finaliza com uma frase da biografada, quase como uma síntese: “Nunca quis ser jovem. O que eu queria era ter história”. Conseguiu.


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