A crítica de arte internacional tem à frente Lisbeth Rebollo

Professora da USP é eleita pela segunda vez presidente da associação que reúne 5 mil críticos de 95 países

 27/11/2020 - Publicado há 3 anos
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Lisbeth Rebollo recebendo o Prêmio Mário de Andrade, da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), em 2016 – Foto: Divulgação

A arte brasileira está no mundo. E tem se destacado em todas as modalidades pela criatividade, liberdade e resistência. As artes visuais são um exemplo desse reconhecimento que tem à frente a professora Lisbeth Rebollo Gonçalves, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Na semana passada, ela foi eleita em segundo mandato consecutivo para a presidência da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica). Pesquisadora, crítica, curadora, é a primeira brasileira a ocupar a função na instituição mais representativa das artes visuais, que reúne 5 mil críticos de 95 países.

Em entrevista ao Jornal da USP, Lisbeth Rebollo falou sobre a importância da Aica – surgida após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando a Europa estava devastada – para a história da arte. Também analisou o espaço que a arte brasileira vem conquistando. “Isso se dá seja por sua vitalidade, seja pelo fenômeno da globalização que cria e consolida um circuito internacional, através de bienais e feiras de arte, galerias e museus, gerando um sistema como nunca tinha sido visto antes”, comenta.

Lisbeth Rebollo também lembra a sua história entre artistas. Filha do pintor Francisco Rebolo, fundador do Grupo Santa Helena, a menina, paulistana como o pai, tem o nome da mãe, Lisbeth Krombholz Gonsalez. “Crescer num ambiente de arte é um privilégio. Desde pequena pude conviver com artistas, críticos, escritores, poetas. Hoje compreendo que foi uma experiência de imersão constante no mundo da arte.”

Lisbeth entrou na USP em 1967. Graduou-se em Ciências Sociais e, no mestrado e no doutorado, seguiu uma área até então inusitada, a sociologia da arte.

Leia a íntegra da entrevista.

“A Associação Internacional de Críticos de Arte surgiu no cenário do pós-Segunda Guerra Mundial, numa Europa devastada por esse conflito, dentro de seu projeto de promover a reaproximação dos povos e o reconhecimento da diversidade cultural.”

Lisbeth e seu pai, o pintor Francisco Rebollo, em 1973 – Foto: Acervo pessoal

Jornal da USP – Professora, como a senhora está se sentindo como a primeira brasileira a ser eleita pela segunda vez consecutiva à presidência da Associação Internacional de Críticos de Arte, a Aica?

Lisbeth Rebollo Gonçalves – Creio que é significativo para o País e fica-se emocionada quando anunciam o resultado da eleição, dizendo que a presidente para o período 2021-2023 é da “Aica Brasil”, referindo-se à Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). Mas, sobretudo, entendo que houve um reconhecimento do trabalho realizado no primeiro mandato, que pretendo ampliar e consolidar nesta próxima etapa.

Entrei para a Aica no início dos anos 1990, quando Esther Emílio Carlos, então presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, me incentivou a fazê-lo. Eu tinha acabado de receber o Prêmio da ABCA pela publicação do livro Sérgio Milliet, Crítico de Arte e já havia recebido um outro prêmio, quando a Editora Perspectiva lançou o livro Aldo Bonadei, o Percurso de um Pintor. Em 2000, fui eleita presidente da ABCA e procurei recuperar a estreita aproximação que tivemos, no passado, com a Aica. Passei a frequentar as reuniões e fui ocupando funções nos comitês da Associação Internacional, cabendo-me, em certo momento, a direção do comitê de finanças e por duas vezes fui eleita vice-presidente.

Entre 2005 e 2007, coube-me organizar um congresso da Aica no Brasil, o segundo, porque o primeiro tinha sido preparado por Mario Pedrosa e Mário Barata, em 1959, pouco antes de Brasília ser inaugurada. O congresso que organizei debateu o tema A Institucionalização da Arte Contemporânea: os Museus, as Galerias, as Bienais, o Mercado de Arte. Muito da confiança que tenho dos colegas para ser eleita presidente vem, em parte, da história que vamos construindo e do trabalho que fazemos.

JUSP – Qual a importância da Aica na arte contemporânea mundial? Como surgiu e quais são as atividades da associação?

Lisbeth Rebollo Gonçalves – A Aica surgiu no cenário do pós-Segunda Guerra Mundial, numa Europa devastada por esse conflito, por iniciativa da Unesco e dentro de seu projeto de promover a reaproximação dos povos e o reconhecimento da diversidade cultural. No final dos anos 40, críticos de arte, historiadores e diretores de museus de arte se reuniram em dois congressos na sede da Unesco, em 1948 e 1949, para pensar a arte e o papel da crítica de arte. O objetivo era comparar seus pontos de vista sobre a vocação da crítica de arte, analisar sua responsabilidade em relação aos artistas e ao público e delinear a natureza particular de suas contribuições em relação aos desenvolvimentos no campo da história da arte. Eram provenientes de muitos países, entre eles André Chastel, Jorge Crespo de la Serna, Pierre Courthion, Charles Estienne, Chou Ling, Miroslav Micko, Sergio Milliet, Marc Sandoz, Gino Severini, James Johnson Sweeney, Albert Tucker, Lionello Venturi, Eduardo Vernazza e outros.

Após esses dois congressos internacionais na Unesco, a Associação Internacional de Críticos de Arte foi fundada em 1950 e foi admitida em 1951 como ONG vinculada à Unesco. A Aica guarda ainda hoje essa vocação de sua formação inicial, reunindo críticos, historiadores, curadores e jornalistas da área de cultura, desejosos por desenvolver uma cooperação internacional no campo da criação artística, divulgação e desenvolvimento cultural.

“A Aica está particularmente bem representada em todas as partes da Europa, Austrália, América do Norte e do Sul e Caribe. Possui também seções nacionais muito ativas em países do Oriente Médio e da Ásia.

Lisbeth em viagem na França com o pai pintor – Foto: Acervo pessoal

JUSP – Quantos associados a Aica tem? Que países eles representam?

Lisbeth Rebollo Goncalves – A Aica reúne cerca de 5 mil profissionais de arte de 95 países, organizados atualmente em 56 seções nacionais e uma seção aberta, em que atuam críticos em cujos países ainda não há uma seção nacional. A Aica está particularmente bem representada em todas as partes da Europa, Austrália, América do Norte e do Sul e Caribe. Possui também seções nacionais muito ativas em países do Oriente Médio e da Ásia, como Israel, Cingapura, Japão, Hong-Kong, Paquistão e Coreia do Sul, e seções africanas foram formadas nos últimos anos. Uma prática importante da Aica está nos seus congressos anuais, que vêm sendo realizados por iniciativa das seções nacionais, com foco em temas e problemas significativos da realidade do momento em que acontecem. O penúltimo, por exemplo, debateu em Taiwan o tema Democracia e Inteligência Artificial. O ultimo aconteceu no ano passado, na Alemanha, colocando em debate A Cultura em Tempos de Nacionalismos e Populismo.

 

JUSPQual a importância de presidir a Aica em sua trajetória como professora e também como diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) por duas gestões, de 1994 a 1998 e de 2006 a 2010?

Lisbeth Rebollo Gonçalves – Essas experiências de dirigir instituições importantes como a Aica e o MAC são gratificantes porque representam um mergulho na prática da cultura e a possibilidade de edificar alguns projetos nos quais acreditamos, voltados para a sociedade como um todo.

JUSP – No contexto global, como a arte brasileira tem repercutido?

Lisbeth Rebollo Gonçalves – A arte brasileira tem conquistado espaço internacional, e isso se dá seja por sua vitalidade, seja pelo fenômeno da globalização, que cria e consolida um circuito internacional através de bienais e feiras de arte, galerias e museus, gerando um sistema como nunca antes visto. Discutimos esse tema já no congresso de 2007 da Aica, aqui no Brasil.

“A arte sempre foi um espaço de liberdade e de resistência, reveladora do que acontece no mundo. Por isso mesmo, muitas vezes, é objeto de repressão.” 

Lisbeth criança com o pai, pintando – Foto: Acervo pessoal

JUSP – A arte no Brasil ainda é uma “resistência”? Pergunto considerando momentos como a ditadura militar, com os jovens artistas que se movimentaram nas décadas de 1960 e 70.

A arte sempre foi um espaço de liberdade e de resistência, reveladora do que acontece no mundo. Por isso mesmo, muitas vezes, é objeto de repressão. Na arte que chamamos de contemporânea, em meio à diversidade que a caracteriza, e justamente por ser um espaço libertário, encontramos esse ativismo, atitudes críticas diante da realidade social. Assim foi nos anos 60 e 70 e ainda é agora.

JUSP – Professora, como a senhora está acompanhando a movimentação da arte e dos artistas nesta pandemia?

Entre os dias 25 e 27 de novembro, houve um debate promovido pela Aica Turquia sobre esse tema. As novas tecnologias abrem novas perspectivas para a comunicação das exposições de arte e para a realização de congressos e debates, trazendo uma cultura que, por certo, permanecerá no futuro ao lado das atividades presenciais. No entanto, o contato vivo, direto, presencial com as exposições de arte não pode ser substituído. O contato presencial do visitante de uma exposição é único e insubstituível como experiência estética. Mas muito se pode usufruir das lives e mostras on-line.

“Meu pai era agregador, em minha casa havia sempre a presença de artistas. Todos os finais de semana vinham seus colegas e amigos, artistas de sua geração, poetas, escritores, e as conversas atravessavam o dia e muitas vezes avançavam pela noite.” 

Desenho de Francisco Rebolo, retratando a filha Lisbeth – Foto: Acervo pessoal

JUSP – Como foi crescer em um ambiente de arte? O seu pai, Francisco Rebolo, foi um incentivo para a sua dedicação às artes?

Lisbeth Rebollo GonçalvesCrescer num ambiente de arte é um privilégio. Desde pequena pude conviver com artistas, críticos, escritores, poetas. Hoje compreendo que foi uma experiência de imersão constante no mundo da arte. Meu pai era agregador, em minha casa havia sempre a presença de artistas. Todos os finais de semana vinham seus colegas e amigos, artistas de sua geração, poetas, escritores, e as conversas atravessavam o dia e muitas vezes avançavam pela noite. E não eram só artistas brasileiros, também intelectuais estrangeiros que vinham a São Paulo para aqui permanecer ou em viagens ocasionais. As visitas eram constantes. Cresci ouvindo vários idiomas.

Gostava de ver meu pai trabalhar, desenhar e pintar. Minha mãe era uma pessoa dinâmica, organizava almoços e jantares para as reuniões e ela também gostava de arte. Viajamos pela Europa quando eu tinha 9 anos de idade, na ocasião em que meu pai recebeu o Prêmio de Viagem do Salão Nacional de Arte Moderna. Foi uma experiência e tanto. Visitamos muitos museus e lugares históricos. Moramos na Itália, mas viajamos para vários países. Ela tinha também o nome Lisbeth.

A menina Lisbeth com os pais, em 1950 – Foto: Acervo pessoal

JUSP – Como surgiu a crítica de arte em sua trajetória?

Lisbeth Rebollo Gonçalves – Até os 22 anos, morei com os meus pais e, quando me casei, morei na casa ao lado, era sua vizinha. Assim continuei a ter a companhia deles diariamente. Pude ver o surgir das diversas fases que se definiram na obra do meu pai. Interessei-me por conhecer mais e comecei a pesquisar seus documentos, catálogo e tudo o que ele guardava. Vi que havia muito o que estudar, pesquisar e, através do curso de Ciências Sociais, na USP, orientei-me para a sociologia da arte. Na USP, recebi o estímulo do professor Ruy Coelho, que me motivou a estudar a pintura paulista, o grupo Santa Helena ao qual meu pai pertenceu. Fiz uma dissertação de mestrado sobre Aldo Bonadei, um dos membros do grupo e amigo da família ao longo da vida. A pesquisa da pintura me levou ao interesse pela crítica de arte, e o doutorado foi sobre Sergio Milliet. Quando cheguei na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, criei na pós-graduação a disciplina História da Crítica de Arte Moderna no Brasil, resgatando a cena intelectual da arte moderna em São Paulo.

Aí está um pouco da minha história como filha de artista.


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