Três vezes Jair

Por Paulo Martins, professor de Letras Clássicas e diretor da FFLCH/USP

 22/01/2021 - Publicado há 3 anos
Paulo Martins – Foto: Cicero Wandemberg
Sob Jair M. Bolsonaro, colecionamos uma série de irregularidades, que, em dois anos, já deveriam ter desaguado no processo de impeachment. Entretanto, nossa experiência histórica com esse tipo de processo, seja por certeza, seja por incerteza de sua aplicabilidade, o deixa, talvez, mais incerto. Hoje, porém, afora o trauma de uma experiência passada, a peste e o vírus o tornam mais complexo e menos provável. Alguns argumentam que sem o movimento das ruas e do grito uníssono do “povão” seria quase impossível a demoção do presidente, sob a acusação de crime de responsabilidade. Como vivemos um momento absolutamente incomum, nossa privação do convívio social coloca o causador disso, o vírus – a covid-19 –, no cerne da atenção de todos, mas ações da peste – o Executivo do governo nacional – a cada dia se tornam mais urgentes de avaliação.

Ainda que possa parecer apenas um inventário de males, uma coleção de mazelas, creio que os limites da pandemia e os traumas antigos não podem nos furtar, brasileiros, de responsabilizar JMB.

Mal acabamos 2020 e iniciamos 21 e a porta do Alvorada já recomeçou a grunhir. Bolsonaro e seu assecla mais atuante hoje em dia, o general Pazuello, desfilam uma tropa de mentiras, mostram-se desequilibrados, acenam com falta de decoro, abraçam a improbidade e flertam com a irresponsabilidade e a charlatanice, afora o cinismo, ingrediente sine qua non no atual desgoverno. Isso contrastou, curiosamente, com a reunião da diretoria colegiada que, no domingo passado (17 de janeiro), aprovara o uso emergencial das vacinas CoronaVac/Butantan e da AstraZenica/Oxford onde observamos seriedade, imparcialidade e decoroso serviço público em nome do bem comum atualmente tão maltratado.

O momento, que deveria ser de júbilo, afinal começamos a nos imunizar contra o vírus, tornou-se a estreia de uma ópera bufa cujo personagem principal é o presidente. E essa, quem sabe, poderá acabar em tragédia. Há que se poder transformar seu desfecho, em breve, com a responsabilização das mortes em Manaus e, assim, promover o impeachment do presidente e do ministro da “Insalubridade” e, dessa maneira, consagrar o retorno à normalidade democrática.

“Quem decide se o povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”, bravateou Bolsonaro. Faço algumas considerações. O artigo 1º da Constituição afirma: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito…” (grifo nosso); afora isto acredito que suas condicionantes possam ser observadas no artigo 14, caput: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei…”.

Mais do que isso, a democracia é garantida pelo artigo 60, § 4º, que informa quais são as cláusulas pétreas, isto é, aquelas que só podem ser alteradas e promulgadas por uma nova Assembleia Nacional Constituinte, entre elas temos: a) a forma federativa de Estado; b) o voto direto, secreto, universal e periódico; c) a separação dos Poderes; e d) os direitos e garantias individuais. Ainda que não fale em democracia, o artigo em questão aponta não só suas caraterísticas mínimas como também defende o conceito de república. E no Brasil hoje vemos tanto a democracia como a república sob ameaça explícita do presidente da República.

Por outro lado, cabe às Forças Armadas, de acordo com a nossa carta magna, entre outras funções: “à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O que significa, in limine, defender a Constituição e, por consequência, a democracia. Parece-me que o presidente ainda não leu a Constituição que “jurou” obedecer e defender. Sapateia sobre o nosso diploma e nada acontece.

A segunda bobagem, quando arrota: “a Coronavac não é a vacina de nenhum governador, ela é a vacina do Brasil”. Todos hão de lembrar que o governo de São Paulo criou o slogan da CoronaVac, “a vacina do Brasil”. O cinismo de Jair M. Bolsonaro é deslavado. Além disso, muitas vezes o presidente desdenhou a vacina do Sinovac/Butantan, fazendo deboche, ao mesmo tempo que defendia a da AstraZeneca/Oxford. Por exemplo, em outubro, diante do acordo de compra de 46 milhões de doses da CoronaVac pelo Ministério da Saúde, diz o presidente que o imunizante era “vacina chinesa de João Doria” e obrigou o seu fantoche Pazuello que desfizesse o negócio (“um manda e o outro obedece”) e publicamente reafirmou que a vacina não seria comprada. Por essas e outras, talvez os chineses estejam hoje dificultando a entrega de vacinas e insumos. Isto sem falarmos da Índia.

Em outro momento, alardeou que o governo federal não compraria uma vacina antes do registro na Anvisa, afinal o brasileiro não seria “cobaia de ninguém“. Em seguida, o fanfarrão bazofiou que não adquiriria vacina de origem chinesa, pois esse país teria um “descrédito muito grande”. Quanta inabilidade! Mas nosso mandatário não termina aí suas investidas contra a vacina do Butantan. Logo após a divulgação dos resultados da fase três no Brasil, solta mais uma: “a eficácia daquela vacina em São Paulo parece que está lá embaixo”. Pois bem, como podemos acreditar num presidente que age dessa maneira? Como poderemos justificar sua atuação como presidente da República?

Mas a última não foi um dislate, foi um crime sério: “A gente está sempre fazendo o que tem que fazer. Problema em Manaus, terrível o problema lá. Agora nós fizemos a nossa parte, recursos, meios [sic]”. Como assim? Mandar cloroquina ao invés de oxigênio? O governo já sabia, seis dias antes, que haveria colapso nos estoques e nada fazer é crudelíssimo, é desumano, é vergonhoso, não é digno do ser humano. Ninguém pode ser tratado dessa maneira. Desumano, nada empático, desonesto, mentiroso, irresponsável são alguns adjetivos que devem sempre ser aplicados ao desgoverno de JMB.

Se nossos representantes permanecerem calados diante de facínoras, deverão ser considerados cúmplices desse e de outros crimes. Se a Procuradoria Geral da República engavetar investigações que devem ser realizadas ou ser capa do presidente, isso tem nome: prevaricação. Neste dia 20, os subprocuradores da República, diante da falta de lisura de Augusto Aras, o interpelaram duramente. Por seu turno, o STF não pode, em hipótese alguma, sentar sobre um possível e necessário processo. Afora isso, há de ser realizado também um processo político de impedimento. Seja no Congresso Nacional, seja no Judiciário, o “comandante” do Executivo já se mostrou absolutamente incapaz de orientar a nós todos.


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