Pesquisadora premiada vai avaliar impacto de remédios no comportamento de peixes

Raquel Moreira é uma das selecionadas no prêmio Para Mulheres na Ciência; cientista acredita que antidepressivos e ansiolíticos vão alterar o comportamento de espécies aquáticas

Pesquisadora da USP é uma das contempladas na categoria Ciências da Vida no programa Para Mulheres na Ciência, da L’Oréal Paris em parceria com a Unesco e a Academia Brasileira de Ciências – Fotomontagem Jornal da USP feita com imagens de rawpixel.com/Freepik, upklyak/Freepik, xvector/Freepik e vectorpounch/Freepik

 Publicado: 26/11/2024 às 16:06     Atualizado: 06/12/2024 às 15:55

Texto: Tabita Said

Arte: Beatriz Haddad*

Leia este conteúdo em InglêsFluoxetina, citalopram, diazepam e lorazepam são alguns dos principais antidepressivos e ansiolíticos utilizados para tratar distúrbios psiquiátricos. Embora seus efeitos sejam bem conhecidos na saúde humana, não se sabe ao certo quais são os efeitos colaterais da presença desses psicoativos em ecossistemas aquáticos. Seja por descarte inadequado, seja por excreção, compostos fármacos não retidos nos centros de tratamentos seguem os caminhos das águas, chegando a riachos, lagos e mares.    

Para além do perigo de extinção de espécies, antidepressivos e ansiolíticos podem gerar distúrbios ambientais com consequências para o comportamento, desenvolvimento e reprodução de animais aquáticos. O aumento do consumo desses medicamentos expõe a biota aquática a uma contaminação constante, ainda que pequena – da ordem de nanogramas (ng/L) e microgramas (μg/L). 

Raquel Moreira, bióloga pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e professora de Ecologia e Zoologia da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP em Pirassununga, lembra que contaminantes de preocupação emergente, como os fármacos, ainda não são devidamente tratados nas estações de águas residuais do Brasil. 

“As espécies sofrem essa exposição crônica, em que podem até não ser afetadas no que diz respeito à sobrevivência, mas tantos outros parâmetros do ciclo de vida delas podem ser comprometidos: a busca por alimentos, a fuga de predadores, o crescimento, a respiração, a reprodução, a viabilidade da prole, da geração posterior. Até a capacidade de fuga para habitats não contaminados podemos avaliar”, explica Raquel. A pesquisadora foi uma das contempladas na categoria Ciências da Vida no Programa Para Mulheres na Ciência, da L’Oréal Paris em parceria com a Unesco e a Academia Brasileira de Ciências. 

Raquel Moreira é uma pesquisadora de cabelos cacheados e escuros, vestindo um jaleco branco. Atrás dela, aparecem vidraçarias de laboratório
Raquel Moreira vai investigar o impacto de antidepressivos e ansiolíticos no ciclo de vida de peixes e crustáceos – Foto: Reprodução/Lattes

Desde 2006, o programa premia anualmente, com uma Bolsa Auxílio Grant, jovens doutoras brasileiras com projetos científicos de alto mérito, a serem desenvolvidos durante 12 meses em instituições nacionais. Raquel foi selecionada com o projeto Os efeitos colaterais ambientais de medicamentos para o bem-estar: quando os antidepressivos e os ansiolíticos perturbam o comportamento animal.  

Nascida em Manhuaçu, Minas Gerais, é a quarta vez que Raquel se candidata ao prêmio. O recebimento da bolsa permitirá que ela inicie as atividades de pesquisa, colaborando com pesquisadores de todos os níveis de formação junto ao Laboratório de Ecologia Aplicada e Ecotoxicidade (Leatox) da USP, coordenado por ela. O objetivo geral será investigar os impactos humanos nos ecossistemas aquáticos. Neste caso, os efeitos colaterais de psicoativos em três espécie de água doce: a Daphnia magna, um microcrustáceo da ordem Cladocera muito utilizado em pesquisas para determinação de toxicidade; o Hyalella meinerti, um anfípoda que vive em sedimentos de rios e represas; e o Danio rerio, o peixe-zebra ou paulistinha, considerado um modelo de bioindicador do estado ecológico da água.  

Hyalella meinerti é uma espécie de anfípoda geralmente encontrada no Brasil e pertencente ao gênero Hyalella, utilizado com sucesso em estudos toxicológicos – imagem extraída da monografia de Késsia Marçal De Lorena (Curso de Engenharia Ambiental da Escola de
Engenharia de São Carlos da USP)

Um espécime fêmea de um peixe-zebra da raça Danio rerio com caudas de leque – Wikimedia Commons / Azul

Fêmea de Daphnia magna com uma ninhada de ovos assexuados – Dieter Ebert, Basel, Switzerland

Ficar ou fugir?

Especializada em avaliação de risco ecológico, Raquel realizou estágio de pós-doutorado no Instituto de Ciências Marinhas de Andaluzia, na Espanha, onde aperfeiçoou a técnica conhecida como Sistema de Ensaio Multi-Habitat Heterogêneo (HeMHAS, em inglês), que pretende utilizar em seu projeto de pesquisa selecionado no prêmio L’oréal.

A abordagem, considerada nova na área da ecotoxicologia, consiste em criar um sistema de exposição não forçada, simulando um ambiente mais amplo e conectado do que o confinamento. A técnica permite avaliar o comportamento de evasão dos animais expostos à contaminação, verificando sua distribuição em espaços mais ou menos tóxicos. A principal hipótese da pesquisa é a de que nem todos os ambientes contaminados serão evitados, indicando um possível efeito colateral de “bem-estar” proporcionado pelos psicoativos.

Ainda a ser constatado, o comportamento dos animais após a exposição pode alterar seu padrão de natação, suas interações sociais e a percepção química do ambiente, levando ao declínio populacional ou à evasão espacial. 

“O comportamento das populações de animais, tanto vertebrados quanto invertebrados, poderá ser alterado; porém, tem a questão de uma maior vulnerabilidade, especialmente no que diz respeito a uma possível dependência pós-exposição. É o que estaremos avaliando, sobretudo se peixes expostos a esses compostos criam algum tipo de dependência. Outro parâmetro que será avaliado é a escolha de habitat contaminado em diferentes níveis por esses compostos, se os animais preferem ficar e por quê. A atividade natatória dos animais, o comportamento social com outras espécies vão ser melhorados ou eles vão preferir ficar distantes? Então, todas essas questões serão avaliadas”, afirma a pesquisadora.

Apesar da expectativa de sobrevivência dos peixes e crustáceos, Raquel pondera que o ambiente aquático é um ecossistema dinâmico e complexo, com efeitos ainda desconhecidos da contaminação para outras espécies que compõem a biota aquática. “Tem os produtores primários, as algas, as macrófitas, os detritívoros, os fungos, as bactérias… é um mundo à parte em que não sabemos como isso pode estar interferindo.”

Ilustração mostra três tanques isolados à esquerda contendo peixes e diferentes graus de contaminação da água; à direita, um sistema conectado de tanques onde peixes podem se movimentar
A imagem à esquerda mostra a abordagem tradicional de exposição forçada; à direita, a nova abordagem de exposição multicompartimentada não forçada (HemHAS Heterogeneous Multi-Habitat Assay) que criará um gradiente de contaminação - Ilustração: cedida pela pesquisadora

Vulnerabilidade animal e social

Raquel se inspirou no trabalho realizado pelo biólogo e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Luis Schiesari, que avaliou padrões de contaminação por antidepressivos nas águas de 53 riachos da Bacia do Alto Tietê. O trabalho Tamanho populacional, renda e saneamento precário interagem para explicar a contaminação generalizada de águas de riachos por antidepressivos na Região Metropolitana de São Paulo ainda não foi revisado por pares.

Para a pesquisadora, o trabalho é importante por ter conseguido dimensionar a concentração dos contaminantes e demonstrar que a ocorrência era maior nas regiões periféricas e de vulnerabilidade social.

“A partir dessas concentrações em que já foi feita a caracterização ambiental, vamos ver quais são os efeitos na biota. O que, justamente, foi uma possibilidade de continuidade de estudos levantada por esse professor, e a gente nem tinha conversado! Assim é a ciência, cada um contribuindo para ampliar esse histórico de poluição ambiental por fármacos, que ainda é muito negligenciado”.

Desde a inspiração até a execução, o trabalho de Raquel deve se apoiar na colaboração e no conceito de saúde única, em que não é possível separar o bem-estar animal, humano e ambiental. Ao Jornal da USP, a pesquisadora explica que todos os resíduos resultantes dos experimentos serão tratados por uma empresa especializada. As análises químicas serão realizadas em parceria com a professora Cassiana Montagner, do Laboratório de Química Ambiental da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Já os experimentos no sistema de exposição não forçada serão realizados em parceria com o professor Evaldo Espíndola, do Laboratório de Ecotoxicologia e Ecologia Aplicada da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP. 

Raquel também integra um projeto temático da Fapesp que investiga os efeitos da contaminação da poluição plástica combinada com a poluição por agrotóxicos em ecossistemas terrestres e aquáticos. Para isso, criam “mesocosmos”, que são pequenas lagoas artificiais em caixas d’água de 2 mil litros contendo elementos reais da vida presente nas lagoas. 

A técnica também deverá ser usada no projeto com ansiolíticos e antidepressivos, fornecendo informações sobre como a exposição crônica prolongada pode afetar não apenas a distribuição dos animais no espaço, mas também mudanças nas condições ambientais de toda a área adjacente à contaminação.

A pesquisadora lembra que apenas desfechos com morte de espécies e declínio populacional são considerados para gerar a criação ou a alteração de regulamentações. No entanto, ela espera apresentar dados consistentes para recomendar melhorias nas estações de tratamento de água.

“O nosso intuito em fazer pesquisa é a construção de conhecimento, mas também contribuir para as políticas públicas dos compostos emergentes, que são aqueles para os quais ainda não existe legislação nacional sobre a ocorrência máxima; não existe tratamento e não são retidos em estação de tratamento de água residual. São ações futuras que podem ser desencadeadas a partir do momento em que são apontados efeitos ambientais da presença de contaminantes nos ecossistemas aquáticos”, diz.

Mais informações: raquelmoreira@usp.br, com Raquel Aparecida Moreira

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

+Mais

O Mar Não Está Pra Peixe - USP
O Mar Não Está Pra Peixe – USP
O Mar Não Está Pra Peixe #4: Destruição à beira-mar
/



Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.