Pesquisadora da USP desenvolve nova ferramenta para diagnosticar desnutrição infantil
Batizada de MULT, a curva de altura para a idade pode ser uma opção às da Organização Mundial da Saúde e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos EUA, já aplicadas na prática clínica
Por Fabiana Mariz
Arte: Rebeca Alencar/Jornal da USP
Pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em parceria com a Universidade do Porto, em Portugal, desenvolveram uma nova referência de crescimento de altura para a idade, baseada em dados longitudinais de populações multiétnicas de oito países e duas cidades. Batizada de MULT (multiétnico), essa pode ser uma nova opção disponível para avaliar o estado nutricional de crianças e adolescentes de 0 a 20 anos.
Os resultados do trabalho, intitulado A new height-for-age growth reference and its efficiency in the classification of the nutrition status of multiethnic children and adolescents, foram comparados com duas referências já adotadas na prática clínica, propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos.
As curvas de altura para idade mostram a trajetória de crescimento infantil e são consideradas o melhor indicador geral de bem-estar da criança, além de ser uma ferramenta crucial para detectar riscos nutricionais. “Porém, alguns países têm desenvolvido as suas próprias curvas de crescimento por considerarem que as curvas internacionais existentes não são adequadas para a aplicação nos seus países”, explica Joana Araújo, pesquisadora do Grupo de Investigação: Epidemiologia da Nutrição e da Obesidade da Universidade do Porto e coautora do estudo. “Com os nossos resultados, acreditamos que a referência MULT pode ser uma outra opção disponível para profissionais de saúde avaliarem o estado nutricional de crianças e adolescentes multiétnicos.”
A curva MULT apresentou uma população mais alta, ou seja, meninos com maior estatura entre as idades de 5 a 14 anos e 16,5 a 20 anos, e meninas com o mesmo perfil entre as idades de 5 a 12 anos e de 15 a 20 anos, quando comparados às curvas de crescimento da OMS e do CDC.
“Isso indica que houve tendência secular de crescimento, que é qualquer mudança de tamanho corporal em determinado grupo populacional em longos períodos de tempo”, explica Mariane Helen de Oliveira, nutricionista e primeira autora do estudo. “Além disso, a pesquisa demonstrou uma maior concordância com a referência de crescimento da OMS, especialmente para crianças menores de 5 anos.”
A faixa etária de 2-5 anos apresentou a prevalência de déficit de altura mais próxima entre curvas de crescimento, variando de 7,07% a 7,97%, e houve uma concordância quase perfeita entre a OMS e a MULT para esta faixa etária.
Para o estudo, foram selecionados dados antropométricos, demográficos e socioeconômicos de 17.600 crianças e adolescentes multiétnicos, menores de 20 anos, nascidos entre 1990 e 2002, de quatro estudos longitudinais: Young Lives (YL), Millenium Cohort Study (MCS), Adolescent Nutritional Assessment Longitudinal Study Cohort (ELANA) e Investigação Epidemiológica em Saúde de Adolescentes do Porto (EPI Teen).
Desnutrição: um tema mundial
A desnutrição é um problema importante de saúde pública e atinge cerca de 149 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para Crianças, Ciência e Cultura (Unicef). Ocorre, principalmente, em países de baixa e média renda. Somente na África e na Ásia há, respectivamente, 59 e 82 milhões de crianças com baixa estatura, o que significa que cerca de 94% de todas as crianças nessas condições vivem nesses dois continentes.
Monitorar o desenvolvimento e o crescimento logo após o nascimento é essencial para prever riscos nutricionais e à saúde. “Se o diagnóstico é feito precocemente, conseguimos prevenir doenças e outros riscos que podem aparecer mais tarde”, destaca Mariane Helen de Oliveira.
O Brasil conseguiu reduzir a taxa de desnutrição crônica entre menores de 5 anos de 19%, em 1990, para 7%, em 2006. Mas, de acordo com o Ministério da Saúde, em 2018, a desnutrição crônica entre crianças indígenas menores de 5 anos era de 28,6%.
Como consequência, a desnutrição causa uma redução do crescimento físico e um menor desempenho intelectual em crianças. Por isso, monitorar o desenvolvimento e o crescimento logo após o nascimento é essencial para prever riscos nutricionais e à saúde. “Se o diagnóstico é feito precocemente, conseguimos prevenir doenças e outros riscos que podem aparecer mais tarde”, destaca Mariane.
As principais ferramentas utilizadas por pediatras e profissionais de saúde para acompanhar o crescimento de indivíduos de 0 a 20 anos são a antropometria e o gráfico de crescimento de altura para a idade, que mostra como se dá o desenvolvimento de forma linear.
Ao longo dos anos, algumas organizações, como o CDC e a OMS, propuseram referências de crescimento de altura para a idade para serem usadas em todo o mundo. Os gráficos do CDC foram desenvolvidos na década de 2000, com base apenas na população dos Estados Unidos e usando cinco pesquisas nacionais realizadas entre os anos de 1963 e 1964.
Já os indicadores da OMS foram produzidos em 2006 para crianças menores de 5 anos e em 2007 para crianças e adolescentes de 5 a 19 anos. Para crianças menores de 5 anos, os gráficos de crescimento foram construídos com base em amostras transversais e longitudinais de crianças consideradas como padrão (lactantes, saudáveis, com boa condição socioeconômica para garantir um desenvolvimento adequado) e de populações multiétnicas de seis países (Brasil, Estados Unidos, Gana, Noruega, Índia e Omã). Mas, para a população dos 5 aos 20 anos, as construções dos gráficos de crescimento foram baseadas apenas no estudo transversal com amostra da população de uma unidade dos Estados Unidos: crianças brancas, negras, hispânicas e asiático-americanas, nascidas nas décadas de 1950 e 1960.
Vários países têm questionado a aplicação das referências da OMS, principalmente para crianças menores de 5 anos. A Comissão Europeia de Nutrição e o Ministério da Saúde da Argentina, por exemplo, recomendam apenas o uso das tabelas da OMS para crianças menores de 5 anos, pois os dados para os diferentes grupos étnicos dessa idade são mais consistentes.
Trabalhando com informações
O artigo publicado por Mariane faz parte do doutorado-sanduíche que ela está desenvolvendo com a Universidade do Porto. Para iniciar o trabalho, o primeiro passo foi buscar bancos de dados disponíveis. A pesquisadora, então, selecionou quatro deles.
Young Lives é um estudo de 15 anos que pretende compreender as causas, dinâmica e consequências da pobreza infantil em quatro países: Etiópia, Índia, Peru e Vietnã. Fornece dados de 12 mil crianças de duas coortes (acompanhamento de longo prazo), uma mais jovem (YLYC) com crianças nascidas na década de 2000, e outra mais velha (YLOC) com aquelas nascidas na década de 1990. No YLYC, os participantes foram avaliados com 1, 5, 8, 12 e 15 anos de idade, enquanto no YLOC os participantes foram avaliados com 8, 12, 15, 19 e 22 anos de idade.
O Millennium Cohort Study investigou cerca de 19 mil bebês nascidos entre os anos de 2000 e 2002 no Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte). A pesquisa fornece múltiplas medidas do desenvolvimento físico, socioemocional, cognitivo e comportamental dos membros da coorte ao longo do tempo, bem como informações detalhadas sobre sua vida diária, comportamento e experiências. A linha de base do estudo começou aos 9 meses de idade e eles reavaliaram as crianças aos 3, 5, 7, 11, 14 e 17 anos de idade.
A Coorte de Estudo Longitudinal de Avaliação Nutricional de Adolescentes (ELANA) é um estudo com 1.848 adolescentes de duas coortes, uma do ensino fundamental e outra do ensino médio. Esses adolescentes nasceram entre os anos de 1990 e 2000 e eram oriundos de quatro escolas particulares e duas públicas do Rio de Janeiro, Brasil. O grupo foi avaliado algumas vezes durante o período escolar.
Já o EPITeen é um estudo de coorte de quase 3 mil adolescentes nascidos na década de 1990 que frequentavam escolas públicas e privadas na cidade do Porto, em Portugal. A pesquisa iniciou-se em 2003, quando os adolescentes tinham 13 anos. Eles foram reavaliados aos 17, 21, 24 e 27 anos. Além disso, os dados antropométricos, desde o nascimento e durante a infância, foram coletados de seus prontuários.
Com os dados em mãos, Mariane contou ao Jornal da USP que, no passo seguinte, é feita uma filtragem minuciosa dos dados disponíveis. “Precisamos avaliar se existem erros de medida e informações faltantes, por exemplo, para então chegarmos ao total de indivíduos aptos a participarem do trabalho”, relata Mariane. “Selecionamos o quintil mais rico do nosso banco de dados e, no final, tivemos 2.611 crianças e 15.299 medidas elegíveis para a construção da curva MULT.”
As crianças foram divididas em quatro grupos por idade: 0 a <2 anos, pois nessa idade elas são avaliadas deitadas; 2 a <5 anos, por serem analisadas em pé e estarem no período anterior à puberdade; 10 a <15 anos, por ser o início da adolescência e, nesta fase, iniciam-se as mudanças físicas, geralmente com um salto de crescimento, seguido pelo desenvolvimento dos órgãos sexuais e características sexuais secundárias ; e 15 a ≤ 20 anos, por se tratar do final da adolescência e início da vida adulta.
Com os dados mais importantes selecionados, os pesquisadores passam a desenhar as modelagens que serão aplicadas na nova ferramenta. E, por último, é feita a comparação dos resultados com as referências da OMS e do CDC.
Referência MULT
A referência MULT mostrou meninos mais altos entre as idades de 5 a 14 anos e 16,5 a 20 anos, e meninas com o mesmo perfil entre as idades de 5 a 12 anos e de 15 a 20 anos, quando comparados aos valores médios de altura para a idade da OMS e do CDC.
Utilizando a referência do CDC, houve mais crianças e adolescentes classificados com baixa estatura quando comparados às referências de crescimento da OMS e MULT. Para a faixa etária dos 2 aos 5 anos, as referências de crescimento do CDC, OMS e MULT apresentaram prevalência de nanismo muito equivalentes, variando entre 7,07% e 7,97%.
O estudo encontrou concordância substancial entre as referências de crescimento MULT para toda a amostra e para a maioria das faixas etárias, com exceção da que vai de 2 a 5 anos – esta apresentou concordância quase que perfeita.
Já a concordância entre as referências da OMS e do CDC foi quase perfeita para adolescentes a partir dos dez anos, e foi substancial entre crianças menores de dez anos.
Mais trabalho
Ainda no doutorado, Mariane pretende construir uma outra curva do Índice de Massa Corporal (IMC) para a idade. “Vamos validá-la por meio do porcentual de gordura existente em outros bancos de dados”, explica. “Na última fase, vou trabalhar com o canal de crescimento, que é a quantidade, em centímetros, que uma criança deve crescer em determinado período.”
Para Louise Cominato, pediatra do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e membro da Sociedade de Pediatria de São Paulo, a nova curva precisa ser testada na rotina médica. “Mas, como a curva da OMS para determinada idade usa modelos matemáticos, se a curva MULT foi construída utilizando dados de pesquisa, pode ser bem interessante.”
Joana acredita que o diferencial está em usar a curva MULT para diferentes populações, já que ela foi construída com uma amostra bem heterogênea.
Depois de prontas, a pesquisadora irá disponibilizar as novas ferramentas a profissionais de saúde. “A prática clínica vai mostrar a acurácia da MULT”, conclui.
O trabalho de Mariane foi considerado o melhor na categoria Comunicação Oral, no 20º Congresso de Nutrição e Alimentação & 2º Congresso Internacional de Nutrição e Alimentação, realizados em Portugal nos dias 23 e 24 de setembro pela Associação Portuguesa de Nutrição.
Mais informações: e-mail marianehelen@usp.br, com Mariane Helen de Oliveira.