As rochas formadas durante as crises do megalago se tornaram falésias no litoral do Mar Negro, onde se manteve preservada a sua história geológica. Cabo Kaliakra, Bulgária – Foto: D. V. Palcu

Paratethys: uma história de cataclismos de quase extinção do maior lago do mundo

Pesquisa mostra que nos momentos de maior recuo das águas o ambiente aquático se tornou muito tóxico, dando origem a espécies exóticas como a baleia-anã. Remanescentes do Paratethys são os atuais mares Negro e Cáspio

Por Ivanir Ferreira
11/06/2021

Pesquisas geológicas revelam a história dos cataclismos que quase levaram à extinção do maior lago que já existiu na face da Terra: o Paratethys, de tamanho equivalente ao Mar Mediterrâneo e datado de 12 milhões de anos. Durante sua existência, o megalago passou por quatro dessas catástrofes paleoambientais que o deixaram inóspito e quase que totalmente seco. Com baixo volume de água, o ambiente aquático se tornou tóxico dando origem a uma fauna exótica, fazendo surgir baleias-anãs, golfinhos e algumas espécies que tiveram que passar por transformações adaptativas ao habitat quase sem vida. Remanescentes do Paratethys são os atuais mares Negro e Cáspio, localizados entre os continentes europeu e asiático.

Scientific Reports publicou artigo sobre o assunto no dia 1º de junho: Late Miocene megalake regressions in Eurasia. O primeiro autor, o paleo-oceanógrafo Dan Valentin Palcu, do Instituto de Oceanografia (IO) da USP, em entrevista ao Jornal da USP, falou sobre essas descobertas e da importância desse trabalho para os dias atuais.

“Além de entender os fenômenos que impactaram a vida do Paratethys, o conhecimento da cronologia e dos impactos desses processos de instabilidades hidrográficas (dessecação do lago e recuperação) nos possibilitam prever quando e como esses fenômenos poderiam voltar a acontecer em nossos mares e oceanos”, diz.

No caso do Paratethys, análises estratigráficas, que têm a função de estudar e analisar camadas rochosas para determinar os processos e os eventos que as formaram, revelaram que os principais episódios de dessecação desse megalago ocorreram entre 9,75 e 7,65 milhões de anos.

“Identificamos quatro regressões principais que se correlacionam com eventos de aridificação [processo de tornar árido], mudanças na vegetação e transformações na fauna em grande parte da Europa, onde possivelmente estava localizado o lago”, diz o pesquisador. Segundo Palcu, o Paratethys foi profundamente transformado durante esses episódios de regressão das águas, chegando a perder 1/3 do volume de água e 70% de sua superfície durante os eventos mais extremos, quando a toxicidade do ambiente aquático se elevou. Com o acúmulo de minerais de lagos marginais, a água se tornava mais tóxica, matando seus habitantes, o que provocou a extinção de vários grupos de animais.

O paleo-oceanógrafo Dan Palcu extraindo amostras de rochas com equipamento especial de perfuração. Os cilindros obtidos na perfuração são medidos nos laboratórios da USP para revelar a idade e descrever os ambientes do passado – Foto: I. S. Patina

“Além de entender os fenômenos que impactaram a vida do Paratethys, o conhecimento da cronologia e dos impactos desses processos de instabilidades hidrográficas (dessecação do lago e recuperação) nos possibilita prever quando e como esses fenômenos poderiam voltar a acontecer em nossos mares e oceanos”, diz.
O geólogo relata que esteve por quatro anos realizando estudo de campo em rochas na região do Mar Negro, que preserva até hoje as profundezas do lago Paratethys. Inclusive, na camada mais profunda do Mar Negro não há seres vivos devido à falta de oxigênio, que se mantém apenas nos 100 primeiros metros da superfície.

Palcu diz que, embora o megalago viesse sendo estudado há mais de 100 anos e tivesse, até então, sido considerado mar pela sua magnitude em volume de água e pelas características de seus ambientes marinhos, estudos paleogeográficos mais recentes mostraram que o Paratethys era, de fato, um lago de grandes dimensões – o maior já existente na Terra. “Em algum momento, o megalago se desconectou dos oceanos e, isolado no continente por cinco milhões de anos, passou a desenvolver uma fauna e uma flora completamente diferentes”, conta o pesquisador.

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Foto: Fotos Públicas / Roberto Parizotti

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A datação das dessecações parciais (flutuações hidrográficas) do Paratethys foi feita por meio de medidas paleomagnéticas. Comparando o campo magnético de amostragens das formações rochosas (que contém minerais ferromagnéticos) daquela época com a crosta terrestre atual, foi possível determinar como foi a cronologia dessas flutuações.

Um mundo exótico

Segundo Palcu, uma vez isolado dos oceanos, com recuos e avanços d’água, o Paratethys se tornou um ambiente único que favoreceu o desenvolvimento de uma fauna exótica (endêmica): moluscos, ostracodes (um tipo de microcrustáceo), golfinhos e baleias-anãs, de apenas três metros de comprimento. A baleia riabinini, da família Cetotherium, que habitava o megalago, foi considerada por zoólogos a menor que já existiu no mundo. Como referencial, a baleia jubarte fêmea tem em torno de 15 metros.

Cetotherium riabinini, a menor baleia da história da Terra, de 3 metros de comprimento em comparação com uma forma humana de 1,8 metro de altura – Foto: Wikimedia Commons

Em virtude das alterações climáticas, o lago passou a ser instável, com fases de secagem parcial devido a um desequilíbrio entre a precipitação e a evaporação, explica o pesquisador. Durante essas crises hidrológicas extremas, quando ocorria uma redução drástica do volume de água, o megalago se fragmentava e a baixa salinidade do Paratethys (1,2 e 1,4%) aumentaria atingindo níveis próximos aos valores marinhos (3,5%).

Após a última crise que o Paratethys sofreu, houve uma queda no nível da água de aproximadamente 250 metros e pouco do mundo exótico inicial sobreviveu. O pesquisador relata, no entanto, que as mudanças não ocorreram apenas no lago. Os cataclismos coincidem com o desaparecimento das florestas tropicais da Europa e a aridificação da região da Arábia, que parece ter empurrado ancestrais humanos da Europa para a África e ancestrais da fauna savana (por exemplo, as girafas) da região do Irã para a África, colocando os elementos da evolução humana em uma imagem comum, como mostra um estudo complementar liderado por Madeleine Bohme (Universidade de Tubingen, Alemanha)

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 As alternâncias em vermelho e branco nas falésias da Baía de Bolata (Bulgária) são como páginas de um livro sobre o clima do lago – o vermelho indica os ambientes áridos enquanto o branco reflete o intervalo de sua recuperação – Foto: D. V. Palcu

Pré-sal brasileiro

Luigi Jovane, do IO, traça um paralelo entre as condições geológicas que levaram à quase extinção do Paratethys aos aspectos geológicos que geraram a formação das reservas do pré-sal, no oceano Atlântico.

Segundo Jovane, o modelo do megalago apresenta as particulares condições da região do Mediterrâneo, há dez milhões de anos, “que, aliás, são muito parecidas àquelas dos sedimentos encontrados no pré-sal brasileiro, do período Barremiano (Cretácico Inferior). Estamos falando de 130-125 milhões de anos atrás, quando o Atlântico estava nas fases iniciais de abertura e existia uma série de bacias mais ou menos salgadas com pouca conexão com os oceanos abertos”, diz.

Jovane ressalta ainda que, para que essas condições se estabelecessem, ocorreram antes vários fatores que agiram conjuntamente e que contribuíram para a caracterização desses ambientes: variações do nível do mar e da circulação oceânica, mudanças climáticas, aumento da temperatura terrestre, precipitações irregulares, dentre outros.

A pesquisa do Paratethys faz parte do projeto temático Mudanças do Nível do Mar e o Sistema Monçônico Global: avaliação através de testemunhos marinhos no Brasil, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Mais informações: e-mail  jovane@usp.br, com Luigi Jovane, e e-mail d.v.palcu@usp.br, com Dan Valentin Pa


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