Pandemia de covid-19 reduz exportações brasileiras de bens de alta complexidade

Ações públicas emergenciais são necessárias para evitar regressão ainda mais profunda da competitividade da economia, aponta estudo da Rede de Pesquisa Solidária

 11/08/2020 - Publicado há 4 anos
De acordo com estudo da Rede de Pesquisa Solidária, a crise provocada pela pandemia de covid-19 afetou mais intensamente as exportações brasileiras de bens de alta complexidade, tais como carros, veículos para construção e turbinas a gás – Imagem: Montagem a partir de foto de Ivan Bueno/APPA

A pandemia de covid-19 reduziu as exportações brasileiras de bens de alta complexidade, como carros, veículos para construção e turbinas a gás, revela estudo publicado na nova edição do boletim da Rede de Pesquisa Solidária. De acordo com a pesquisa, os efeitos da crise na exportação de bens de alta complexidade foram maiores do que entre os bens de baixa complexidade, como petróleo cru, minério de ferro e milho, em especial nos Estados com estrutura produtiva mais complexa. O estudo aponta que os ganhos nas exportações estiveram concentrados nas regiões Norte e Centro-Oeste, além de Pernambuco, Piauí e Alagoas. Os demais Estados registraram queda nos bens exportados.

A pandemia gerou forte impacto nos fluxos de comércio internacional. O funcionamento da indústria foi paralisado ou desacelerado e o consumo foi reduzido por conta das restrições de circulação e aglomeração. Antes da pandemia, o Brasil ainda não havia se recuperado da crise econômica dos últimos anos, que alavancou os números do desemprego para patamares preocupantes. O PIB brasileiro cresceu 1,1% em 2019, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Foi o desempenho mais fraco em três anos, com o resultado afetado principalmente pela perda de ritmo do consumo das famílias e dos investimentos privados. Em valores correntes, o PIB do ano passado totalizou R$ 7,3 trilhões em 2019. Em 2019, as exportações somaram US$ 225 bilhões, uma queda de 5,8% em relação ao ano anterior (2018), que registrou US$ 239 bilhões. Já as importações somaram US$ 177 bilhões, uma queda de 2,1% sobre as compras internacionais em 2018.

No entanto, este cenário foi agravado pelo impacto do coronavírus. O FMI prevê queda de 9,1% para o PIB do Brasil neste ano. Além disso, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prevê que a desaceleração do comércio internacional provocada pela pandemia vai causar uma retração das exportações brasileiras entre 11% e 20% em 2020, levando as vendas do País para patamar inferior a US$ 200 bilhões. Este boletim da Rede de Pesquisa Solidária analisa os efeitos da crise atual sobre os fluxos comerciais nacionais e de cada um dos Estados brasileiros durante os primeiros seis meses de 2020. Para isso, foram utilizados dados de importação e exportação da plataforma Comexstat.

A análise foi desenvolvida a partir da divisão dos produtos comercializados e Estados segundo seu índice de complexidade. Em linhas gerais, produtos complexos são aqueles produzidos por um número pequeno de países com estrutura produtiva diversificada, o que indica maior capacidade para a produção competitiva desses bens. Países complexos, por sua vez, são aqueles que produzem competitivamente uma cesta de bens mais diversificada e de maior complexidade. A complexidade econômica reflete, portanto, o nível de conhecimento incorporado na estrutura produtiva da economia, de forma que países com complexidade acima do esperado para seu nível de renda tendem a crescer mais do que países de alta renda.

A classificação setorial dos bens e dos Estados é importante porque permite analisar como a produção de bens de maior complexidade estão associados a maiores taxas de crescimento do PIB per capita. Além disso, estudos recentes mostraram que o aumento da complexidade econômica está também associado à redução da desigualdade e à redução da intensidade de emissões de gases de efeito estufa, colaborando, assim, para um crescimento econômico mais inclusivo e sustentável. O estudo foi realizado pelos pesquisadores João Romero e Elton Freitas, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisa em que se baseou a nota técnica teve o apoio do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG). O Boletim pode ser lido na íntegra aqui.

Rádio USP

Ouça a entrevista realizada no Jornal da USP no Ar, na Rádio USP,  com João Romero um dos pesquisadores do estudo.

Exportações e importações
Segundo os pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária, em função da ausência de dados de comércio de outros países que possibilitem comparar os efeitos da epidemia, uma alternativa para analisar a profundidade do impacto da pandemia no comércio internacional brasileiro é comparar os valores das exportações e importações dos primeiros seis meses de 2020 com os valores dos mesmos meses de 2019. Na figura abaixo são apresentados os movimentos das exportações brasileiras nos primeiros seis meses de 2020 em relação aos primeiros seis meses de 2019.

Os números indicam a variação porcentual das exportações de cada mês em relação ao mesmo mês do ano anterior. Em janeiro de 2020 as exportações brasileiras foram 20% inferiores a 2019. Em fevereiro ocorre uma redução dessa diferença, e em março a valor exportado se torna 5,4% maior que o exportado nesse mês em 2019. A crise causada pela epidemia faz com que as exportações brasileiras se tornem novamente inferiores a 2019 em abril (-8,4%), e esse quadro se aprofunda em maio (-14,2%). Em junho, embora o valor exportado continue 2,7% inferior a 2019, já se observa uma redução dessa diferença de valores.

Nas figuras seguintes, a análise é feita dividindo os produtos exportados em dois grupos, produtos de baixa complexidade e de alta complexidade (à esquerda) e separando os estados entre aqueles com estrutura produtiva de baixa complexidade e aqueles com estrutura produtiva de alta complexidade (à direita). Os índices de complexidade das regiões e dos produtos são índices normalizados. Dessa forma, produtos que apresentam índice inferior a zero podem ser considerados produtos de baixa complexidade. Analogamente, os produtos com índice superior a zero são considerados produtos de alta complexidade. O mesmo vale para o índice de complexidade econômica utilizado para classificar as estruturas produtivas dos Estados.

Dentre os produtos de alta complexidade exportados pelo Brasil em 2019, os principais são carros, veículos de grande porte para construção e turbinas a gás, que responderam por cerca de 3,6% das exportações brasileiras em 2019. Quanto aos produtos de baixa complexidade, petróleo cru, minério de ferro e milho, são os mais exportados, representando cerca de 24% das exportações brasileiras em 2019. Para os produtos de baixa complexidade, somente em janeiro e maio as exportações de 2020 foram inferiores às de 2019, o que ressalta o bom desempenho das exportações desses bens durante os primeiros seis meses deste ano, apesar da pandemia.

Para os produtos de alta complexidade, os pesquisadores apontam que em todo o primeiro semestre de 2020 as exportações foram inferiores às de 2019, o que indica a piora desse setor. A queda observada nos meses de abril e maio foi particularmente impressionante: nesses meses as exportações brasileiras de bens de alta complexidade foram 44,3% e 44,8% inferiores aos mesmos meses de 2019, respectivamente. Além disso, a recuperação em junho foi também modesta, ficando ainda as exportações desses bens 33,7% menores do que no ano anterior. Na análise por grupos de Estados, o quadro é novamente semelhante ao movimento das exportações subdivididas por produtos de baixa e alta complexidade: a queda das exportações dos Estados de baixa complexidade é inferior à queda nos de alta complexidade, e a recuperação das exportações desse último grupo é mais lenta.

Exportações por Estado
Na figura seguinte são indicados os Estados que tiveram aumento (tons de azul) e os Estados que tiveram queda (tons de vermelho) das exportações em relação ao primeiro semestre de 2019. Os ganhos estiveram concentrados nas regiões Norte e Centro-Oeste, além de Pernambuco, Piauí e Alagoas. Santa Catarina ficou estável, e nos demais Estados observou-se queda das exportações. As quedas mais acentuadas (mais de 20%) foram em São Paulo (-20,6%), Rio Grande do Sul (-26,3%), Espírito Santo (-27,9%), Sergipe (-31,1%) e Rio Grande do Norte (-37,6%). Minas Gerais (-6,9%), Bahia (-8,8%) e Paraíba (-6%) tiveram quedas relativamente menores (abaixo de 10%).

Na figura abaixo, à esquerda, há um padrão bastante semelhante ao do gráfico anterior, quando se considera somente os produtos de baixa complexidade. Do lado positivo, as principais diferenças são o maior aumento de Amazonas e Pernambuco. Do lado negativo, as principais diferenças são as quedas menos expressivas de São Paulo e Rio de Janeiro. A figura da direita, porém, indica a alarmante e generalizada queda da produção de bens de alta complexidade no primeiro semestre de 2020 em relação ao primeiro semestre de 2019. Apenas Piauí, Roraima, Mato Grosso e Goiás tiveram aumento nas exportações desses bens, mas que incidem sobre uma base inicial ínfima. Por outro lado, 17 Estados tiveram queda das exportações de bens de alta complexidade superior a 20% em relação ao primeiro semestre de 2019.

O estudo indica que apenas nove dos 27 Estados tiveram aumento de importações em relação a 2019: Roraima, Piauí, Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Rio de Janeiro, Espírito Santo e o Distrito Federal (DF). Dez Estados tiveram aumento das importações de alta tecnologia, o que tende a reforçar a perda de competitividade da produção doméstica desses setores. A grande maioria dos Estados teve saldo comercial positivo em produtos de baixa complexidade e negativo em produtos de alta complexidade. Os pesquisadores também apontam que correu um crescimento expressivo (6,4%) na participação da China como principal destino das exportações brasileiras entre os primeiros semestres de 2019 e de 2020 e queda de 3,5% da participação dos Estados Unidos.

Considerando grupos de produtos, o movimento das exportações e importações brasileiras apresentou uma queda das exportações na maioria dos grupos de produtos. As principais quedas no primeiro semestre de 2020 foram de armas e munições (-41,3%), artes e antiguidades (-87,4%), instrumentos (-42,2%) e transportes (-55,3%). Em relação às importações, as quedas mais relevantes foram em plásticos e borracha (-3,5%), produtos de madeira (-11,6%), produtos de origem vegetal (-3,4%), produtos químicos (-2,1%), instrumentos (-8,9%) e máquinas (-3,2%). Por outro lado, houve um leve aumento nas importações de derivados de vegetais e animais (1,2%) e transportes (8,8%), além de um expressivo aumento nas importações de metais (27,8%) e armas e munições (98,2%).

Políticas públicas
Os pesquisadores ressaltam que a epidemia teve um impacto negativo sobre as exportações de bens de alta complexidade, que já vinham caindo nos últimos anos. Vários estudos indicam que a redução da produção competitiva de bens de alta complexidade, caso se torne permanente, gerará efeitos negativos sobre a taxa de crescimento do PIB per capita brasileiro, sobre o nível de desigualdade de renda e sobre a intensidade de emissões de gases de efeito estufa. Os autores do boletim destacam que é fundamental que as autoridades públicas elaborem e executem políticas voltadas para reverter os efeitos da epidemia sobre a produção de bens de alta complexidade, exatamente para evitar uma forte regressão na produtividade e na competitividade do País.

A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população. Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.

A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (FFLCH e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (FFLCH), Graziela Castello, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Fábio Senne (Nic.br) e José Eduardo Krieger (Incor). O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o Incor. A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise. As notas anteriores estão disponíveis neste link.


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