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Notícias falsas sobre covid exploraram aspectos culturais para manipular população
Os saberes populares, as tradições, as crenças religiosas e os hábitos alimentares foram usados na produção de notícias falsas em posts que circularam em mídias sociais no Brasil e no México
Fotomontagem do Jornal da USP com imagens de Krzysztof Ziarnek/Wkimedia Commons/CC BY-SA 4.0, Reprodução/FOX, pvproductions/Freepik e alexeyzhilkin/Freepik
Os produtores das fake news sobre covid-19 exploraram estrategicamente aspectos culturais como saberes populares, tradições, crenças religiosas e hábitos alimentares para manipular a população durante a pandemia. O objetivo foi dar sentido de proximidade e verossimilhança às informações falaciosas propagadas pelas redes sociais. A conclusão é do estudo realizado pela relações públicas Ana Paula Dias, a partir da análise de notícias falsas disseminadas no Brasil e no México, entre janeiro de 2020 a novembro de 2021, em plataformas digitais como o Youtube, WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram. Essas notícias tiveram a veracidade do conteúdo analisada pela plataforma latino-americana Latam Chequea-Coronavirus, que reúne 35 agências de checagem de informações.
“Os conteúdos falsos impactaram negativamente mais alguns grupos sociais do que outros, como foi o caso dos povos indígenas do Norte do Brasil que sofreram atraso na vacinação pela recusa do imunizante. Estes, influenciados por notícias falsas, acreditavam que, se fossem imunizados, virariam jacaré, mudariam de sexo, contrairiam o vírus HIV e poderiam até morrer. Outro grupo social também bastante afetado foi o de pastores evangélicos, proporcionalmente os profissionais que mais morreram de covid-19 em 2020”, relata ao Jornal da USP, a autora da pesquisa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam).
A pesquisadora cita o estudo publicado na revista Frontiers, que demonstra que a taxa de incidência de covid-19 foi 136% mais alta do que a média nacional na Amazônia Legal (Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Maranhão, Rondônia, Mato Grosso e Tocantins – estados pertencentes à Bacia Amazônica) e 70% maior do que a média entre todos os habitantes da região. A taxa de mortalidade indígena por 100 mil habitantes foi 110% superior à média brasileira.
De acordo com a Ana Paula, em algumas comunidades indígenas no México, mensagens de áudio diziam que o governo estaria disseminando doenças para acabar com essa população. Boatos como esses, junto a outros fatores, como a falta de infraestrutura médica, contribuíram para que houvesse maior taxa de mortalidade por covid-19 entre os indígenas mexicanos.
O Brasil e o México foram escolhidos como objeto de estudo porque a América Latina foi uma das regiões mais afetadas pela propagação das notícias falsas sobre covid-19, de acordo com dados do Covid-19 Infodemics Observatory, da Fundação Bruno Kessler. Neste contexto, em ambos países, o presidente Andrés Manuel López Obrador, do México, e o ex-presidente Jair Bolsonaro, do Brasil, apoiaram informações falsas, minimizando a importância do uso de máscaras faciais e contradizendo os conselhos médicos, chegando a negar a pandemia.
A pesquisa, que analisou 736 notícias, também identificou que a produção das notícias falsas, em geral, partia ou era apoiada por grupos políticos, empresários, autoridades de governos, personalidades públicas e perfis falsos em redes sociais com o objetivo de espalhar pânico na população e manipular seu comportamento para reafirmação de interesses ideológicos ou financeiros.
Entre os temas das narrativas falaciosas das notícias analisadas, estão: interesses político-partidários, situação da doença em outros países, vacinas, medidas de prevenção, impacto da pandemia em empresas, tratamentos, origem do vírus, religião, entre outras (veja quadros abaixo):
Explorando elementos culturais
A partir da classificação dos temas, Ana Paula Dias avançou nas análises procurando encontrar elementos culturais inseridos nas postagens falaciosas sobre covid-19. Segundo a pesquisadora, o modus operandi dos produtores de fake news foi semelhante nos dois países no que diz respeito à exploração de saberes populares, das crenças religiosas e adulteração de mensagens. No entanto, houve algumas diferenças quanto ao uso de elementos culturais específicos de cada região.
No Brasil, por exemplo, se falou muito do uso de chás de erva-doce, boldo, limão, jambu, laranja e melão para curar a covid-19 ou sobre o consumo de fígado bovino para evitar a doença. No México, foi explorado o uso de ervas, de chás de mel com limão, de alho, e gargarejos de água, sal e vinagre para combater o coronavírus e o consumo de gemada e cebola para evitar a contaminação pelo sars-cov-2.
Apropriação de saberes populares
No Brasil, uma postagem no Facebook recomendava as pessoas a tomarem chá de erva-doce duas vezes ao dia para se prevenir da covid-19, pois a bebida teria a mesma substância que um medicamento chamado Tamiflu, usado para tratar gripes. No México, uma postagem no Twitter sugeria que o coronavírus poderia ser curado utilizando diariamente gengibre, mel, alho e cebola.
Na avaliação da pesquisadora, as postagens se apropriaram de saberes tradicionais (o uso de chás de erva-doce, gengibre, mel, alho e cebola) e informação médico-científica imprecisa (Tamiflu) para induzir as pessoas a comportamentos que não as resguardariam da doença.
Hábitos alimentares
No Brasil, fake news publicada no Facebook e que circulou no WhatsApp dizia que o diretor do Hospital das Clinicas (HC) havia recomendado comer fígado de boi para evitar a contaminação do coronavírus. No México, pelo Facebook, uma postagem recomendava a automedicação com oito fármacos e uma dieta baseada em gemada de ovos e refrigerantes como medida preventiva contra covid-19.
Neste caso, houve a apropriação de hábitos alimentares (ingestão de fígado bovino e gemada) e a implícita credibilidade de uma autoridade médica que, supostamente, teria feito essa recomendação como medida de prevenção contra a covid-19.
Crenças religiosas
No Brasil, um post do Facebook dizia que um pastor evangélico comercializava máscara espiritual que supostamente protegeria as pessoas do coronavírus, do H1N1 e do HIV. Outro post dizia que a Igreja Universal tinha emitido comunicado que estava cancelando as reuniões de cura durante a pandemia. No México, uma publicação do Facebook falava de uma profecia existente na Bíblia de que a pandemia teria inaugurado uma nova ordem mundial.
Nos exemplos brasileiros, foram utilizadas crenças religiosas para promover a venda de produtos potencialmente milagrosos para proteger as pessoas contra o vírus e um discurso subliminar contra a medida de isolamento social. Na publicação mexicana, a narrativa foi classificada como teoria da conspiração e negacionismo da pandemia, diz o estudo.
Os Simpsons: teoria conspiratória
Uma notícia falsa circulou no Brasil e no México, via Facebook e Twitter, envolvendo o desenho Os Simpsons. Imagens adulteradas do desenho diziam que um episódio que teria ido ao ar em 1993 havia previsto a chegada do novo coronavírus.
No México, outro post chamava a atenção para uma pintura no mural do aeroporto de Denver, Estados Unidos, datada de 1994, mostrando um grupo de crianças usando máscaras com a bandeira de diferentes países. Segundo o estudo, a postagem induzia as pessoas a acreditarem que a pandemia era um plano global criado internacionalmente para fins políticos e econômicos.
Canais de propagação das fake news
No Brasil, 50% das notícias falsas circularam no Facebook; 12,18% no WhatsApp; 3,04% no Twitter; 0,76% no YouTube; 0,5% no Instagram e 33,5% circularam em mais de uma rede social, combinando dois ou mais canais, incluindo as plataformas Telegram e TikTok. No México, as proporções foram 39,2% no Facebook; 10,3% no Twitter; 9,43% no WhatsApp; 1,82% no YouTube; 0,92% no Instagram e 38,6% das notícias falsas foram disseminadas em duas ou mais plataformas, incluindo e-mail, TikTok e Telegram.
Sobre os formatos das mensagens, no Brasil, 54,52% foram disseminadas em textos; 21,35% em vídeo; 17,83% em imagens; 4,77% em imagens e texto; 0,25% em áudio; 0,5% em texto e vídeo; 0,5% em imagem e vídeo; e 0,25% em áudio e vídeo. No México, as proporções foram parecidas: 52,4% foram disseminadas na forma de textos; 23,9% em vídeo; 12,1% em imagens; 0,06% em imagem e texto; 1,18% em áudio; 0,6% em texto e vídeo; 0,9% em texto, imagens e vídeo; 1,2% em formato não especificado.
Estudos transdisciplinares e políticas educacionais
Para o professor Felipe Chibás Ortiz, co-orientador da pesquisa e professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da USP, a contribuição do estudo foi compreender o fenômeno da fake news para além do aspecto tecnológico midiático, trazendo para a discussão do tema a dimensão sociocultural sob a qual os receptores (quem recebe esse tipo de conteúdo) estão inseridos; e estes, estando sob a influência de notícias falaciosas, sofrem o risco de ter seu comportamento manipulado em favor de interesses políticos, econômicos e ideológicos.
Ortiz propõe que as fake news sejam estudadas de forma transdisciplinar envolvendo profissionais de comunicação e da saúde, uma vez que a compreensão da “saúde e dos processos de cura da doença” também varia de acordo com o universo sociocultural da população.
A professora Rita de Cássia Marques Lima de Castro, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), orientadora da pesquisa, sugere a criação de políticas públicas educacionais que proponham alfabetização da população para que as pessoas sejam mais críticas no consumo das notícias, e dá como exemplo um programa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que propõe que a alfabetização comece com a formação dos educadores, que, por sua vez, disseminaram seus saberes para seus estudantes, criando assim uma espiral positiva de alfabetização midiática.
A pesquisa Usos e apropriações de elementos culturais pelas fake news sobre COVID-19 propagadas no Brasil e no México está disponível para consulta neste link.
Mais informações: e-mails ana2.dias@usp.br, com Ana Paula Dias; chibas_f@yahoo.es, com o professor Felipe Chibas Ortiz; e ritalimadecastro@usp.br, com a professora Rita de Cassia Marques Lima de Castro
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