A "nostalgia soviética” é caracterizada pela revalorização da experiência vivida pela Rússia a partir de 1917, quando aconteceu a revolução socialista que culminou na criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), até 1991, com a dissolução da URSS - Foto: Moises Gonzalez/Unsplash

Nostalgia russa pela antiga União Soviética reforça poder de Vladimir Putin

Pesquisa analisa o fenômeno saudosista da "nostalgia soviética", que impacta toda a produção cultural da Rússia e é usada como instrumento de poder pelo presidente russo

 04/02/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 14/02/2022 as 15:21

Autor: Ivanir Ferreira
Arte: Guilherme Castro/Jornal da USP

O mundo inteiro tem acompanhado a tensão entre Rússia e Ucrânia. Isso já havia ocorrido em 2014, quando os dois países entraram em conflito pela reanexação da Crimeia. Já a crise atual envolve o desejo do presidente russo, Vladimir Putin, de impedir que a Ucrânia se torne aliada da União Europeia e traga para as fronteiras com Rússia as tropas e equipamentos militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), formada pelos Estados Unidos e os países da Europa Ocidental. Uma pesquisa realizada pelo historiador Henrique Canary ajuda a entender esse desejo de poder de Putin: a população russa tem experimentado um sentimento nostálgico em relação aos tempos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Trata-se de um fenômeno contemporâneo que impacta toda a produção cultural da região e vem sendo usado como um projeto de manutenção de poder pelo presidente russo, que promove uma nova ideia nacional, profundamente patriótica, cristã ortodoxa e nacionalista. Os dados são da tese de doutorado de Canary, defendida no último mês de outubro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“Nostalgia soviética” foi o nome cunhado por pesquisadores para a revalorização da experiência vivida pela Rússia entre 1917, quando ocorreu a revolução socialista que culminou na criação da União Soviética, até 1991, ano da dissolução da URSS.

Canary viveu na Rússia de 1996 a 2003, onde se graduou em História e, em seguida, fez mestrado. Nesse período que esteve na região, teve a oportunidade de observar in loco como esse saudosismo vinha influenciando todos os campos sociais – cultura, política, relações comerciais e interpessoais.

Segundo o pesquisador, a produção cultural também foi impactada por essa visão romanceada do passado. Filmes, livros, músicas e programas televisivos remetiam a uma era nostálgica soviética, tempos em que a URSS era uma potência mundial. Ressurgem também marcas tradicionais que lembram o “cheiro e o gosto” da infância e da juventude dos russos: vodka, sorvete, suco, embutidos, iogurte, cerveja, etc.

“Nem mesmo as inúmeras tentativas de apagamento da memória (desconstrução de símbolos soviéticos, mudanças de nomes de ruas e derrubada de monumentos ícones do comunismo, por exemplo) conduzidas por Boris Yeltsin (1991-1999), o primeiro presidente da Rússia após o colapso econômico da União Soviética, e suas reformas traumáticas liberalizantes foram suficientes para deixar no passado lembranças do império soviético”, relata Canary ao Jornal da USP.

Produção cultural impactada - TV Russa

A pesquisa para a tese de doutorado Nostalgia Soviética: memória e cultura na Rússia contemporânea foi baseada, principalmente, na análise de um programa chamado Namiédni – 1961-1991 (tradução: Recentemente 1961-1991 – nossa era), documentário de alta audiência que foi levado ao ar diariamente pela rede estatal russa, entre os anos de 1997 e 1998. O pesquisador também analisou outras produções culturais das décadas de 1990, 2000 e 2010, além de pesquisas de opinião sobre temas relacionados ao passado soviético. 

O programa Namiédni  fazia uma retrospectiva de fatos positivos acontecidos entre os anos de 1961 e 1991, com enfoque apenas no processo do “lembrar”, sem se ater à profundidade dos fatos históricos. “A proposta era valorizar e captar o sentimento nostálgico (nostalgia reflexiva) que já vinha sendo gestado na sociedade, que passou, a partir de então, a ter seus representantes na mídia de massa”, diz o pesquisador.

Henrique Canary, autor da pesquisa que deu origem à tese "Nostalgia soviética: memória e cultura na Rússia contemporânea.

Henrique Canary, autor da pesquisa que deu origem à tese "Nostalgia soviética: memória e cultura na Rússia contemporânea" - Foto: Arquivo pessoal

Iuri Gagarin

Um dos fatos abordados pelo programa foi a viagem espacial do cosmonauta soviético Iuri Gagarin, primeiro humano a viajar pelo espaço, em abril de 1961. A abordagem do voo foi feita com grande entusiasmo e sentimentalismo pelo apresentador, igualmente a outras reportagens que valorizavam o balé soviético, a qualidade do espumante russo, eventos esportivos, dentre outros. De modo geral, a vida era apresentada no programa Namiédni como alegre e com “bem-estar geral”, exatamente o oposto da imagem cinzenta e predominante dos anos de 1990, quando, sob o comando de Yeltsin, tudo que estava relacionado ao comunismo era visto como atrasado, diz o pesquisador.

Questionado sobre a veracidade histórica da programação, o apresentador Parfiônov dizia que “o importante não era a ordem dos eventos, mas os estereótipos que se formavam da experiência nacional”. Ao todo, foram exibidos 60 programas, de 45 e 60 minutos, cada.

A programação era dirigida a um público que viveu pessoalmente os fatos narrados e procurava resgatar e exaltar conquistas econômicas e políticas, além de acontecimentos cotidianos das pessoas comuns. “Esse formato acentuava a sensação de pertencimento e de identidade do telespectador com o programa”, diz o pesquisador.

O impacto do programa foi tanto que, desde a estreia, em 1997, ele já foi reprisado quatro vezes pela TV russa em 2011-2012, 2012-2013, 2014-2016 e em 2017. Também deu origem a uma coleção de livros e a outras séries similares.

Canary analisou também dados do Instituto de Pesquisa Levada-Tsentr, sediado em Moscou, que, desde março de 1992, realiza pesquisas anuais sobre a relação dos russos com o passado soviético. Diante da pergunta “Você lamenta a dissolução da URSS?”, para o período de 1992 até 2018, a maioria dos entrevistados respondeu sim à pergunta. Resultado semelhante foi obtido pelo VTsIOM, um outro instituto de pesquisa.

Projeto de poder: do saudosismo reflexivo ao restaurativo

 

“Aquilo que era um mero lembrar (saudosismo reflexivo) se transformou em uma política cultural específica (saudosismo restaurativo), voltada para o renascimento da grandeza passada”explica Canary.

Segundo a pesquisa, o saudosismo reflexivo (o tipo disseminado pelo programa televisivo), a saudade do lar ou dos tempos passados, é parte fundamental da experiência humana ao longo da história. “Esse fenômeno não teria grandes consequências se não estivesse sendo manipulado de forma estratégica como projeto de poder e de dominação do povo russo”, avalia o historiador.

Com a ascensão de Putin ao poder, nos anos 2000, o Estado passou a promover “uma nova ideia nacional, profundamente patriótica, cristã ortodoxa e nacionalista, diferentemente da orientação do governo Yeltsin, que caminhava em direção ao Ocidente. Aquilo que era um mero lembrar (saudosismo reflexivo) se transformou em uma política cultural específica (saudosismo restaurativo), voltada para o renascimento da grandeza passada”, explica.

Perguntado sobre fatos concretos que demonstrem que Putin venha utilizando a política de memória como instrumento de poder, o historiador cita o envolvimento da Rússia nos conflitos com a Ucrânia, em 2014, pela reanexação do território da Crimeia.  “A conduta de Putin serve para manter na órbita de influência da Rússia regiões que antes faziam parte da União Soviética, como é o caso da Crimeia“, explica o historiador.

Até os anos 50, a península da Crimeia fazia parte da Rússia, quando Khruschov (secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética), por um ato administrativo, passou a Crimeia para a Ucrânia.  “Por pertencer historicamente ao território russo, Putin encontrou apoio na população para sua reanexação”, explica o historiador.  “Por trás do conflito atual entre Rússia e Ucrânia, Putin deseja impedir que a Ucrânia se torne aliada da União Europeia e da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte]“, diz.

A escritora russa Svetlana Boym, professora de literatura comparada da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, citada na pesquisa, diz que “a nostalgia reflexiva (a saudade pura e simples do que se passou) se transformou em nostalgia restaurativa (desejo de restauração do passado glorioso), se referindo aos planos de manutenção do poder do atual presidente. Segundo Svetlana, a nostalgia restaurativa está na base de inúmeras ideologias patrióticas e nacionalistas, supostamente portadoras da verdade e catalisadoras de uma certa força social.  

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O estado russo, partindo da nostalgia reflexiva, cria nostalgia restaurativa com vistas ao fortalecimento de suas posições, ou seja, como uma simples saudade torna-se um projeto ou sustentáculo de poder, diz a pesquisa. Em seu aspecto restaurativo, a nostalgia soviética acabou significando aceitação pela maioria dos russos do novo capitalismo oligárquico (governo de poucos) imposto por Putin, conclui o estudo.

A tese de doutorado Nostalgia Soviética: memória e cultura na Rússia contemporânea teve a orientação da professora Fátima Bianchi, do Departamento de Letras Orientais da FFLCH, e foi defendida em outubro de 2021.

Lembrando a história

Em 1917, deu-se início a um período de conflitos na Rússia, a chamada Revolução Russa, que derrubou a monarquia do czar Nicolau II, levando ao poder Vladimir Lenin, do Partido Bolchevique. Nessa época, a Rússia vinha sofrendo diversos problemas sociais e econômicos, principalmente pelo atraso na industrialização e participação na Primeira Guerra Mundial. Os operários e os camponeses estavam insatisfeitos por excesso de trabalhos e poucos ganhos. A soma dos fatores levou a manifestações populares que fizeram o monarca renunciar e, no fim do processo, deram origem à União Soviética, o primeiro país socialista do mundo, que durou até 1991.

De lá para cá, governaram a Rússia, Boris Yeltsin (1991 a 1996), Vladimir Putin (2000 a 2008), Dmitri Medvedev (2008-2012) e Vladimir Putin (desde 2012).

Lideranças URSS/Rússia – 1894 a 2022

Lideranças URSS/RússiaPeríodoCaracterística
Czar Nicolau II (dinastia Romanov)1894 a 1917Último imperador da Rússia
Vladimir Lenin (URSS)1917 a 1924Revolução Russa, que levou a criação da URSS, em 1922
Joseph Stalin  (URSS)1924 a 1953 
Nikita Khrushchev  (URSS)1953 a 1964 
Leonid Brejniev  (URSS)1964 a 1982 
Yuri Andropov  (URSS)1982 a 1984 
Konstantin Tchernenko  (URSS)1984 a 1985 
Mikhail Gorbatchev (URSS/Rússia)1985 a 1991Último líder comunista. A URSS é dissolvida
Boris Yeltsin (Rússia)1991 a 1996 
Vladimir Putin (Rússia)2000 a 2008 
Dmitri Medvedev  (Rússia)2008-2012 
 Vladimir Putin (Rússia)Desde 2012 

Mais informações: e-mail henriquecanary@yahoo.com.br, com Henrique Canary


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