Ficar em casa nos dias de hoje chega a ser um ato de cidadania. Segundo especialistas em todo o mundo, as medidas de isolamento são das mais eficazes para controle da covid-19. Mas há cidadãos que não têm essa escolha e transformam as ruas em seus “lares”, onde passam os dias e as noites, se alimentam e tentam se cuidar, minimamente. Nos grandes centros estas pessoas fazem parte da cena cotidiana, mas chegam a ser imperceptíveis para o resto da sociedade. Tornam-se invisíveis, mesmo em números cada vez maiores.
De acordo com o último Censo da População em Situação de Rua divulgado pela Prefeitura Municipal de São Paulo, em janeiro deste ano, a cidade contava então 24.344 pessoas nesta situação. 11.693 estariam acolhidas e 12.651 em logradouros públicos ou na rua. O mesmo censo, realizado quatro anos antes (2015), contabilizou um total de 15.905 pessoas em situação de rua.
Em tempos de pandemia, quando a “casa” é a rua, a calçada ou abrigo sob a marquise, as ações do poder público são ainda mais essenciais. O Jornal da USP consultou, no início do mês de abril, a Prefeitura de São Paulo, para saber o que estava sendo feito por este grupo socialmente vulnerável. A reportagem também entrevistou pesquisadores que já vinham estudando de perto os modos de vida da população em situação de rua, sua realidade e problemas mais urgentes, em busca das melhores abordagens para suas questões.
Assistência
A Assessoria de Imprensa da Prefeitura de São Paulo informou algumas providências visando a minimizar os impactos da doença nas populações em situação de rua da cidade: “Por meio de sua Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, a administração municipal criou seis novos equipamentos de emergências para o acolhimento de pessoas em situação de rua, que funcionam 24 horas. Destes, um foi implantado na Vila Clementino, como Centro de Acolhida Especial para moradores em situação de rua já diagnosticados com covid-19, totalizando 314 vagas”, informou a Assessoria. Para a instalação dos outros cinco equipamentos foram selecionados centros esportivos preparados para acolher pessoas nesta situação, localizados nas regiões da Sé, Santo Amaro, Lapa, Santana e Mooca. Além disso, foi criado um núcleo de convivência emergencial na região da Nova Luz.”
Outra medida da administração municipal foi instalar na região central da cidade pias com água potável fornecida pela Sabesp, conforme notícia veiculada pela Assessoria, e, no final de março, anunciou a criação de um novo Núcleo de convivência emergencial na Cracolândia, na região central da cidade.
Ainda de acordo com a Assessoria, os serviços da rede socioassistencial intensificaram as orientações sobre os cuidados com a higiene para os conviventes, como lavar bem as mãos com água e sabão, cobrir a boca e o nariz ao tossir e espirrar, evitar tocar os olhos e não compartilharem objetos de uso pessoal. Os Centros de Acolhida são higienizados constantemente e mantidos com as janelas abertas, nos quartos as camas foram colocadas em distância segura. Todos os eventos agendados nos serviços foram cancelados e as visitas suspensas.
Como orientar?
Três estudiosos desta temática e que realizaram suas pesquisas na USP concordam que a atual situação da pandemia torna a vida de todos os envolvidos na questão das populações em situação de rua ainda mais complicada. A psicóloga Bárbara Cristina de Souza Barbosa é autora da pesquisa Três notas sobre a clínica com moradores de rua, ou aquilo que a clínica desvela a respeito do laço.
Neste estudo realizado no Instituto de Psicologia (IP) da USP, sob orientação da professora Ilana Mountian, Bárbara investigou a questão do laço social presente na vida dessas pessoas em situação de rua. A pesquisa no IP teve início em 2017, mas a psicóloga já trazia consigo a experiência de ter atuado num Centro de Atendimento em Uberlândia, Minas Gerais, e também em São Paulo, onde chegou a participar de equipes que atuam no trabalho de abordagem a essa população. Os seus três anos de experiências anteriores serviram como base para seu estudo e, a partir de suas anotações, ela construiu sua pesquisa que foi apresentada no ano passado no IP.
Para acompanhar, aconselhar ou orientar pessoas em situação de rua, o poder público disponibiliza serviços que vão da abordagem nas ruas ao acolhimento dessas pessoas, conforme informou a Assessoria de Imprensa. O órgão também destacou que a equipe do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), composta de 600 orientadores, intensificou as orientações nos cuidados de contágio do vírus. A equipe realiza busca 24 horas por dia para identificar pessoas ou famílias em situação de rua e oferecer acolhimento na rede socioassistencial.
A atuação é por meio de escuta qualificada, visando à aproximação, construção e fortalecimento de vínculos, atendimentos sociais, orientações e encaminhamentos. Das 22 horas às 8 horas, a abordagem é realizada pela Coordenadoria de Pronto Atendimento Social (CPAS). “Importante frisar que elas não são obrigadas a aceitar os serviços oferecidos”, comunicou a Assessoria.
E é justamente nesse sentido que a pesquisa de Bárbara Barbosa presta sua contribuição, no sentido de identificar os laços afetivos dessas pessoas. “Elas acabam estabelecendo laços fraternos com aqueles que estão ao seu redor. Com o comerciante que, por vezes, lhes fornece alimentos, com os moradores que lhes dão algum tipo de ajuda, seja um cobertor ou uma roupa. Seja com alguém que esteja na mesma situação. Há casos até de laços de amor que acabam se tornando relacionamentos que perduram por um bom tempo. Estabelecem laços também com as equipes dos serviços públicos de atendimento e assistência à saúde”, descreve a psicóloga, ressaltando que em seu estudo “não houve o interesse de ‘romantizar’ esses laços, como se isso tornasse a vida na rua ‘prazerosa’, mas apenas apontar que esses laços existem.” O conhecimento desses relacionamentos pode ajudar as equipes de abordagem e acompanhamento a melhor conduzirem seu trabalho.
Outros dois estudos realizados também por psicólogos, mas apresentados na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, tiveram também como objeto de pesquisa a cartografia da produção do cuidado pelos consultórios na rua, na cidade de São Paulo. Em ambos, os cientistas aplicaram a cartografia como metodologia para melhor analisar as questões que envolvem as diversas situações por que passam essas pessoas e os representantes dos órgãos públicos que atuam diretamente nessa temática. “A cartografia propõe que se caminhe junto com os grupos envolvidos para acompanhar as alterações no campo em que estes se encontram. Foi isso que fiz em meu estudo”, conta o psicólogo Mário César da Silva.
Em sua pesquisa, intitulada Das im-permanências do povo de rua à produção do comum: o Consultório na Rua como extituição, Silva analisou a atuação dos consultórios na rua, que são serviços vinculados à atenção básica na cidade de São Paulo, fazendo um contraponto com a sua experiência na saúde mental, como técnico de um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS AD) na região da Cracolândia. Já a psicóloga Paula Monteiro de Siqueira, autora do estudo (Des)Aprendências nômades com os viventes da rua: sobre os modos outros de estar na vida, avaliou a produção das existências das pessoas em situação de rua no sentido de melhor conhecê-las para além da invisibilidade a que são submetidas.
As pesquisas fornecem importantes subsídios para programas de assistência e acompanhamento das populações em situação de rua na cidade de São Paulo. Os dois estudos da FSP foram concluídos e apresentados no ano passado. Mário Silva contou com a orientação da professora Yara Maria de Carvalho, enquanto Paula Monteiro de Siqueira foi orientada pela professora Laura Camargo Macruz Feuerwerker.
Mário Silva descreve que o programa Consultório na Rua é formado por equipes multidisciplinares e que teve início em 2014 na cidade de São Paulo. “Trata-se de um programa que é vinculado às Unidades Básicas de Saúde e que trabalha desde a abordagem das pessoas nas ruas bem como nos Centros de Acolhimentos e envolve a saúde como um todo.”
O psicólogo também trouxe para sua pesquisa experiências anteriores, tendo atuado em outros programas nas áreas centrais da cidade, como na Cracolândia, e em bairros da periferia. Uma das ações do pesquisador foi exercitar entre as pessoas responsáveis pelos atendimentos o exercício da escrita coletiva. “Sugeri que narrassem em cartas as suas experiências durante uma semana”, conta. “Toda sexta-feira eu coletava o material e produzíamos as cartas coletivas contando como foi a nossa semana”, lembra.
Este trabalho versa principalmente sobre o encontro entre os próprios usuários com a equipe, com os pesquisadores, com a rede de serviços, comunidade, e os entraves advindos da gestão. Na maior parte do tempo, o trabalho das equipes era focado nos centros de acolhimento. “Um dos aspectos que mais me chamou atenção foi a velocidade imprimida no trabalho de atendimento, ou seja, era um sistema que posso considerar como de produção”, explica.
Segundo Mário Silva, o trabalho de leitura das cartas, semanalmente, acabou possibilitando às equipes pensarem num outro jeito de produzir cuidados destinados àquelas pessoas. “Foi uma forma de os próprios trabalhadores participarem da escrita da pesquisa a partir de sua própria perspectiva. Neste sentido, foi possível observar a produção do cuidado a partir da Redução de Danos, que é a lógica do cuidado oposta à proposta de Combate às Drogas, na medida em que se respeita o desejo e os direitos deles.”
O psicólogo ressalta que os usuários criam redes de conexões e que levam este mundo e forma de ser para dentro dos serviços. “Os profissionais têm dificuldade em entrar em contato com estas produções de vida. Deste modo, é como se os consultórios na rua tivessem o papel de trazerem a rua para dentro dos serviços.”
Melhor escuta
Para lidar com as pessoas em situação de rua é prioritário que a “escuta” seja apurada, para se compreender melhor o que faz sentido e o que conta para eles na organização de suas vidas. “Pois a saúde também lida com outras formas de produção de vida, como cultura, por exemplo”, cita Paula. Ela também levou para seu estudo experiências anteriores, como a de ter participado de uma pesquisa nacional sobre as redes de serviços destinadas a atender essas pessoas. “A cartografia me permitiu seguir essas pessoas e descobrir os caminhos pelos quais passavam, muitas vezes não percebidos pelos serviços de atendimento”, conta.
Para elaborar seu estudo, a psicóloga ficou cerca de um ano acompanhando equipes de atendimento do programa Consultório na Rua e seus processos de trabalho. Além disso, conectou-se a pessoas que moravam nas ruas, estabelecendo um vínculo de proximidade intensivo.
E foi numa destas “conexões” que Paula chegou a Rambo. “Era esse o apelido pelo qual era conhecido pelos moradores dos arredores. Segundo constava, ele já havia sido internado, involuntariamente, três vezes por sua presença incomodar os que residiam nas proximidades”, conta a psicóloga.
Por algumas vezes, equipes do Consultório na Rua tentaram contatos com Rambo, mas sem sucesso. “As internações involuntárias foram dificultando a relação. E o que lhe era oferecido, não era o que ele queria”, lembra Paula. Numa abordagem diferente do convencional, a pesquisadora conseguiu se aproximar de Rambo e conseguiu dar visibilidade a aspectos da vida daquele morador da rua que poucos conheciam.
Outro caso que a psicóloga relata em seu estudo é o de Alexandre. “Ele é um exemplo impressionante de outros modos de produzir vida e arte, pois além de cuidar da praça em que morava é um artista reconhecido pelos moradores e comerciantes dos arredores, que incorporam suas obras a seus espaços. Ele chegava a prestar serviços a moradores do bairro como pinturas e trabalhos de manutenção em geral”, conta. A pesquisadora reflete em seu estudo que o atendimento a essas pessoas deve priorizar principalmente a escuta. “A oferta de saúde deve ser feita a partir do entendimento do que o usuário tem ou necessita, respeitando seus valores e suas invenções, fundamentais na produção de suas vidas.”
Álcool, drogas e a “opção” pela rua
O uso de álcool e drogas por pessoas que estão em situação de rua, na maioria das vezes acontece, segundo os pesquisadores, em decorrência do sofrimento e solidão. “Mas não é opção da maioria”, afirma Bárbara Barbosa. “Num primeiro momento, tanto o álcool quanto a droga são usados até como uma espécie de ‘amortecimento’. O uso abusivo vem depois, em alguns casos”, descreve.
Viver nas ruas pode ser por motivos diversos, desde o abandono da família, uma desilusão amorosa ou por questões de saúde mental. Mas os pesquisadores concordam que, na maioria dos casos, a questão do desemprego e da precarização das relações de trabalho são as maiores causas da “opção” pelas ruas. “E quando estão nas ruas, a maioria tem como característica o nomadismo. Acabam circulando por pontos diversos da cidade, o que dificulta também o atendimento à saúde”, descreve Paula.
“Essas pessoas são cotidianamente estigmatizadas. E o estigma apaga a sua própria história e reconhecimento como sujeitos”, descreve Mário Silva. A expectativa, segundo Bárbara Barbosa, é que se tenha um aumento dessa população à medida que aumente o desemprego. “Há pesquisas que mostram isso”, diz. Ela cita que há alguns anos já vêm sendo identificadas pessoas de nível superior em situação de rua. Atualmente, segundo a psicóloga, o perfil dessas pessoas tem mudado também por conta do número de imigrantes nas grandes cidades. “Até mesmo pessoas que moram distantes de seus trabalhos acabam ‘optando’ pela rua”, conta a pesquisadora.
Além dos serviços públicos de atendimento à saúde dessa população, há trabalhos assistenciais de ONGs e pastorais ligadas às igrejas. De acordo com informações da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), no período de 30 de março até o dia 2 de abril, haviam sido acolhidas 15.711 pessoas em situação de rua nos Centros de Acolhida da capital.
Tensões e desencontros marcam relação entre o poder público e populações nas ruas
Para a professora Laura Camargo Macruz Feuerwerker, associada ao Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública, em tempos normais “já são muitas as tensões e desencontros entre as políticas, os serviços e as populações que vivem nas ruas.”
Dentre os problemas que a professora aponta estão os modos unilaterais de agir, pressupostos sem correspondências, preconceitos e julgamentos morais que acabam erguendo barreiras entre as ofertas e prescrições e as necessidades e desejos. Laura Feuerwerker destaca que as ações de parte do poder público no sentido de disciplinar vidas nômades, como excesso de horários, regras e exigências, entre outras, geralmente resultam em fracasso.
Segundo a professora, nessa situação de pandemia há tratamentos diferenciados, mesmo para os que vivem nas ruas. Para os que habitam o Centro há algum acolhimento. “Mas para os que vivem na Cracolândia presenciamos ações de extermínio para forçar a dispersão dessas pessoas”, aponta a docente, ressaltando que algum respiro nesse cenário é produzido a partir da multiplicação de ações solidárias, sejam espontâneas ou mobilizadas por movimentos sociais e entidades religiosas ou filantrópicas.
A docente, que trabalhou na orientação da pesquisa de Paula Monteiro de Siqueira, é autora do livro Micropolítica e Saúde: produção do cuidado, gestão e formação, que é resultado de sua tese de livre-docência pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.